Se o seu respeito é condicional, ele não é respeito

Rodrigo Ortiz Vinholo
8 min readJul 5, 2022
Charles I Insulted by Cromwell’s Soldiers, Delaroche (1836)

Como você xinga outra pessoa?

Isso não é algo que pensamos muito a respeito, né? Mas é algo que eu acho que devemos refletir com atenção. Eu mesmo já levantei, tempos atrás, alguns pensamentos sobre insultos em outro texto aqui no Medium.

Na época em que eu fiz esse outro texto, falei sobre como entendemos insultos, sugeri algumas reflexões, e foquei em questões de contexto. Mas quero falar algumas outras coisas, agora, e reforço essa necessidade de refletir, porque existe o insulto que fazemos para os outros, mas que afeta quem não queremos afetar, e o fato de que, quando isso acontece, um desrespeito nosso é explicitado.

Primeiro, porque o modo como você xinga diz algo bem específico sobre os seus valores e visão de mundo.

Segundo, porque muitas vezes o seu xingamento reflete que, por esses valores e visão, você não aceita — ou ainda odeia — quem finge respeitar.

Vamos aos detalhes:

Nós sempre prestamos atenção no que é diferente de nós. Veja que, por isso, eu não necessariamente estou falando que todos nós somos preconceituosos, mas estou trazendo uma observação que vem anterior ainda ao preconceito.

Nós vamos notar especificamente se uma pessoa é de outra etnia, se o corpo dela é diferente do nosso, se ela fala outra língua, se tem uma outra nacionalidade, se usa roupas diferentes, se ela tem outros hábitos. Nesse ponto, é possível que nós utilizemos essas diferenças para identificá-la.

Claro, é possível nós tratarmos características de qualquer natureza como identificadores? É, e muitas vezes conseguimos fazer isso de modo mais ou menos inócuo. Agora, se nós usamos as diferenças como meio de insulto, as coisas começam a ficar mais complicadas.

A maior parte das vezes em que especificamos alguém por uma característica, isso pode acontecer basicamente em dois contextos: a característica existe dentro de um grupo de variações comuns, ou a característica sai do que estamos tratando como comum no contexto.

Ou seja, nós raramente vamos dizer “um homem de dois braços” para identificar um homem, porque nós sabemos que essa é uma característica extremamente comum, enquanto “um homem com um braço só” é um diferenciador claro. Até agora, estou falando obviedades, certo?

E aí entramos no ponto que é óbvio: identificar alguém pela falta de um braço soa desconfortável. Pode ser que a pessoa não se importe, que já esteja acostumada, mas o assunto também pode ser sensível. E, mais, de uma maneira mais ampla, a pessoa pode ter várias outras características que a identifiquem, de modo que é mais amigável tentar qualquer outra.

Em geral, nós temos um termômetro social bom para essas coisas. Ainda que o brasileiro seja um pouco mais, digamos, informal na hora de seguir essa regra social nem sempre explicitada, ele entende bem. Nós vamos chamar o magro de “magro”, o gordo de “gordo”, vamos fazer referências étnicas e vamos caracterizar de mil outras formas que outros povos mais recatados não se sentiriam confortáveis em fazer. Mas nós temos dois pontos que não deixamos de seguir:

1- Nós sabemos quando estamos abusando dos limites dessa regra. Nós podemos discordar, mas sabemos que pessoas se incomodam se focarmos em certas características e, portanto, ainda que surjam os que usam algum identificador específico, eles sabem que usá-lo com alguém com quem não têm intimidade pode ser um risco, ainda mais se for uma característica que, por experiência e expectativa social, seja mais complicada de focar.

2- Junto disso, nós sabemos também que existem jeitos de falar cada coisa e, mesmo na nossa insistência em usar identificadores por vezes duvidosos, nós conhecemos variações que são apenas insultivas, porque elas existem em um contexto maior.

Ou seja, no nosso exemplo acima, pode até ser que algum de nós se refira ao homem de um braço só por essa característica, mas nós geralmente sabemos que chamá-lo de “aleijado” tem uma carga de significado bem diferente.

O mesmo acontece se uma pessoa branca identificar uma pessoa preta de certas formas. Ou se uma pessoa hétero identificar uma pessoa gay de certas formas. Ou o modo como um homem se refere a uma mulher.

De novo, creio que estou falando obviedades. Creio que todos que lerem este texto serão maduros o suficiente para entender a diferença entre usar uma característica de alguém de um modo que historicamente é visto como um insulto, e apenas se referir a ela como um identificador.

Só que aí damos o próximo passo.

Nas relações humanas, conflitos ocorrem. E nós queremos insultar pessoas, dentro desses conflitos. Não é bonito, não é respeitoso, mas acontece.

Repito a pergunta que eu fiz no começo do texto: como você xinga uma pessoa?

E aí vem o ponto: se você usa um desses termos, digamos, “carregados” na hora de insultar uma pessoa, isso aponta para uma adesão sua ao uso do termo, à carga dele e, por lógica, ao grupo de pessoas que o utiliza.

Claro, há contextos em que um termo pode ter sido bem banalizado a ponto de ser distanciado do contexto original, mas geralmente não é bem isso. Um exemplo simples é qualquer termo racista.

Afinal, se você não é racista, por que o seu xingamento a uma pessoa de outra etnia se utilizaria de um termo sobre isso? Não existe insulto condicional. Não existe você não achar que algo é um insulto e utilizar como um insulto.

A partir do momento em que você usa contra alguém um insulto referente a uma característica dela, você confirma que concorda com quem acha que aquele termo é um insulto, e que está usando porque sabe que o termo naquele formato é mais eficiente como um insulto. Repito: não existe insulto condicional.

Assim, se você é um "racista condicional", você é racista.

Se você xinga uma mulher que odeia de modo machista, você é machista.

Se você xinga um gay ou uma lésbica de modo homofóbico porque está com raiva deles, você é homofóbico.

Se você só respeita a identidade de gênero de uma pessoa que gosta, você é transfóbico.

O mesmo vale para qualquer referência pejorativa ao corpo, estado mental ou psicológico, para qualquer diferença de desenvolvimento e até doença, entre muitas outras coisas.

Isso não quer dizer que você necessariamente é o máximo de cada um desses termos, desejando a morte, inexistência, prisão ou negação de direitos dessas pessoas, mas você está demonstrando um preconceito em algum nível, e não há como fugir disso.

E tudo isso vale, claro, xingamentos em outros contextos. Usar um termo capacitista para descrever alguém que não é uma pessoa com deficiência é ainda capacitismo. E, sim, quando você chama alguém de "retardado", esse é um dos principais exemplos desse caso.

E aqui que eu quero chegar, finalmente, no ponto principal desta conversa: não adianta você respeitar uma pessoa e depois usar algo que a descreve como se fosse um insulto para outra pessoa. Isso significa que você não respeita quem você diz que respeita e, no máximo, está fingindo tolerar sua existência, características e/ou estilo de vida. Não existe respeito pela metade.

Talvez soe como exagero. Talvez você não seja uma pessoa racista ou homofóbica. Você, por exemplo, pode até ter amigos que são. Mas é justamente esse o meu ponto: se você não achasse que o termo era insultivo, ou não achasse que há a necessidade de ressaltar a característica da pessoa de alguma forma, você não teria dito isso.

Você não viu necessidade de descrever mais do que isso quando chamou um político de corrupto, ou incompetente, ou desonesto, ou mil outras coisas que eu sei que você já deve ter xingado. Mas realmente diz algo mais se você achar necessário ter um comentário sobre a orientação, ou a etnia, ou o corpo, ou a mente de uma pessoa junto com o xingamento em questão.

Sim, eu sei que nem todos xingam políticos só nessas áreas. Xingamentos homofóbicos para homens na política e machistas para mulheres da política são os que mais surgem. Estou simplificando porque sei que qualquer um de nós pode pensar no momento em que não houve essa necessidade.

E aí vem a coisa: o seu xingamento se reflete. Se você está chamando um homem de gay como um xingamento, você não apenas reforça uma imagem popular de que ser gay pode ser reprovável, como aponta em pessoas ao seu redor. Afetando ou não a pessoa que era o alvo, o efeito colateral existe, e se torna algo que não era sobre a pessoa que você mirou.

"Ah, mas ele tem masculinidade frágil e vai se sentir mais ofendido por isso." Pode até ser que esse seja o efeito para outra pessoa, mas a mensagem que você vai continuar passando ao resto do mundo é que, como o cara que ficou ofendido, você acha que tem algo de errado em alguém ser gay.

Vejo isso ocorrer aos montes mesmo com pessoas que se dizem progressistas e respeitosas. A pessoa não é homofóbica, até ter que insultar um homem, e então o chama de gay. Ou vai insultar um gay, e de algum modo essa característica dele não escapa à fala. Aí essa pessoa não é machista, até ter que insultar uma mulher. A pessoa não é transfóbica, até que chega o momento de ofender uma pessoa trans, e aí negam-se até mesmo os pronomes.

Se você faz algo assim, você está dizendo uma coisa muito simples: que o respeito que você reserva aos outros não tem um piso, uma base inalienável. Você está dizendo que só respeita as pessoas que diz respeitar porque elas não pisaram no seu calo, e não porque você entende que elas são dignas de respeito.

Se o seu respeito é condicional, ele não é respeito. Se o seu respeito é condicional, você é um aliado, amigo, cônjuge, colega, chefe tão bom quanto forem as circunstâncias, o que significa que você pode estar o tempo todo a um passo de tratar outra pessoa como lixo, de ser um inimigo dessa pessoa.

Sim, você pode não agredir, e provavelmente ajudaria essa pessoa se fosse necessário, mas você não deixa de ser cúmplice de um sistema maior, que vai deixar à vontade a pessoa que agrediria, sim. Você não apenas passa a mensagem de que só está “tolerando” a pessoa, como que segue colaborando com a incerteza ao redor da segurança dela.

Eu sei que muitas pessoas não vão ligar para este texto. Muitas vão falar como “antigamente” as pessoas não se importavam, e as que são alvo desses insultos até mesmo riam com quem falava, quando não usavam os termos elas mesmas. Vão falar que as pessoas estão "sensíveis demais" hoje em dia.

A essas pessoas, eu aponto o óbvio: o fato das pessoas, de acordo com vocês, não se importarem "antigamente", não muda a definição do que significam esses insultos. Se você está dizendo que uma mulher é incapaz simplesmente por ser mulher, você é machista hoje ou antigamente, da mesma forma. O conceito não mudou. Ele só está sendo considerado cada vez menos aceitável, e as pessoas que se omitiam sobre isso, fosse por medo, conformidade ou ignorância, hoje estão mais propensas a não ficarem mais quietas.

Você pode dizer que não é sua intenção, que você só se acostumou com um jeito de dizer, mas não há como consultarmos a intenção de uma pessoa, quando ela nos diz algo. Nós só temos acesso ao que ela nos diz diretamente.

E se, mesmo depois que as pessoas reclamarem, te explicarem, derem todos os exemplos, você ainda insistir nisso, discordando que não é uma pessoa desrespeitosa, você certamente não está fazendo um bom trabalho em demonstrar que é uma pessoa que respeita os outros.

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Rodrigo Ortiz Vinholo
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Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

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