O que faz um insulto?
Eu vou falar de coisas óbvias. Coisas que, por vezes eu já falei, e que muita gente já falou. Eu vou falar de coisas que todo mundo entende. Mas como muitas das coisas que entendemos, este é um assunto que nós pensamos que não devemos falar a respeito, por darmos todas as percepções sobre ele como certas e óbvias. Então eu quero falar sobre ele, porque é assim que apontamos nossas hipocrisias.
Eu quero falar sobre insultos.
Você já parou para pensar o que faz um insulto? Em um nível simples, poderíamos dizer que um insulto é a atribuição, interpretação ou destaque de uma característica negativa ou desqualificadora a outra pessoa por algo que pode ou não ser característico dessa pessoa. É um ato de desrespeito, de desprezo. Nós podemos usar insultos contra coisas, locais e instituições, mas aqui vamos nos ater ao uso contra pessoas, para simplificar as coisas.
Podemos insultar alguém com base na inteligência, na falta de conhecimento, no comportamento/moralidade, na aparência, na honra, na crença/forma de pensamento, na capacidade ou falta de capacidade, no pertencimento ou não-pertencimento a um grupo, ou com base em uma combinação dessas características. Neste momento, sou incapaz de pensar em insultos que não entrem em alguma dessas características.
Bem óbvio, né?
Mas se saímos do campo teórico, dá pra ver que a conversa, como muitas coisas na vida, não é tão simples. Você já pensou no que é que te insulta?
Alguém me disse, certa vez, que nós devemos “não nos deixar insultar”, e que "insultos só existem se nós os aceitamos". Disseram que "uma pessoa só se sente insultada por algo se concordar minimamente que aquilo que lhe é dito é um insulto", e que "ser insultado é um ato de ceder controle para quem insulta". Depois de um bom tempo pensando nisso, cheguei à conclusão de que ainda que tenha alguns pontos interessantes nesse pensamento, ele não é de todo verdadeiro.
É verdade que algumas coisas que as pessoas usam como insultos não fazem sentido. Chamar um capitalista de “capitalista”, ou um comunista de “comunista”, ou um anarquista de “anarquista” não é um insulto para quem se considera capitalista, ou comunista, ou anarquista, mesmo que quem esteja xingando possa achar que alguma dessas palavras é um insulto.
Quando percebemos isso, insultos parecem subitamente inócuos. Ninguém pode te chamar de “magrelo” se você realmente achar que é, nem de “quatro-olhos” se seus óculos não te incomodarem. Sua confiança no que você é ou faz ou pensa deveria lhe bastar. Se aceitamos essa óptica, podemos até nos sentir culpados e nos julgar por “lidarmos mal” com os insultos. Essa ideia está errada.
Se paramos nosso raciocínio no pensamento acima, parece que tudo está solucionado, e que quem se sente insultado por algo está sendo apenas sensível. O problema, como já disse, é que na prática as coisas não são simples.
Aqui vem a primeira armadilha da conversa inteira: essa noção de “o insulto só existe porque nós deixamos” é venenosa tanto para quem é alvo de um pretenso insulto quanto para quem insulta. Ela reforça o ônus do insulto no alvo, em vez de naquele que insulta.
Quando ficamos nesse delírio de que um "insulto só é um insulto porque permitimos", nós ignoramos uma coisa básica: muitas vezes, um insulto só é insultivo porque a ideia que ele transmite é insultiva. Ou seja, quando alguém tenta diminuir uma pessoa lhe atribuindo uma característica, não apenas está dizendo que a pessoa é menos por aquilo, mas está dizendo que aquela característica é necessariamente negativa.
Assim, você pode até não achar que algo que é dito é xingamento, mas você pode se incomodar com a ideia de que aquilo foi usado como insulto, e na ideia de que aquilo alimenta uma cultura de transformar aquela ideia em insulto, podendo tornar algo que era neutro ou até elogiativo em algum ponto de vista, em um insulto, ao ressignificá-lo de alguma maneira. Trocando em miúdos, insultos necessitam de contexto e modificam contextos.
Se chamamos alguém de “gordo” tentando transformar isso em um xingamento, nós estamos necessariamente reforçando uma definição do que é um “peso ideal”, um “formato de corpo aceitável” e diversas outras ideias nocivas. Nesse sentido, mesmo alguém que não tenha problemas com a aparência de seu corpo pode se incomodar com seu insulto, pelo simples fato de que, em um contexto maior, a pessoa sabe que você colabora para piorar as vidas de outras pessoas como ela, geralmente sem motivo nenhum além de sua própria satisfação. A pessoa não foi pessoalmente insultada, mas a sua ação foi insultiva ainda assim.
Eu gosto muito desse exemplo, porque quando apontamos a incoerência de usar “gordo” ou “gorda” como xingamento, muitas pessoas se incomodam e surgem frases como “mas ser gordo não é saudável e a culpa é dele(a)” ou “mas uma pessoa gorda ocupa mais espaço e isso pode ser inconveniente” ou “mas é feio, as pessoas acham feio”, entre tantos outros argumentos que tentam simular que aquele que insulta está sendo razoável no que faz. Sem entrar nos detalhes específicos, esse tipo de insulto é um ótimo exemplo para o que estamos falando aqui, porque ele é a admissão da importância do contexto.
No argumento de saúde, aquele que xinga se baseia em um contexto de superioridade moral com base em um aspecto onde não cabe moralidade. O mesmo que insulta não tenta xingar fumantes de “fumante” ou sedentários de “sedentário”. Ele, em oposição, não cumprimenta e elogia aqueles que mantém hábitos saudáveis. O argumento sobre espaço funciona do mesmo modo, pois não é usado para alguém que for grande e forte, se as pessoas suporem que se trata de uma pessoa saudável.
Finalmente, achar alguém “feio” é o motivo mais inválido de todos, pois além de completamente subjetivo e de reforçar ideias muito específicas e que variam muito por época, pressupõe que a pessoa insultada necessariamente deve ser aprazível para você. Quem julga alguém pela aparência supõe que a outra pessoa deve necessariamente caber em sua concepção de aparência aceitável, especialmente quando o motivo para a feiura se dá pela explicitação de uma característica muito específica. Ou seja, esse tipo de xingamento pressupõe que aquele que insulta tem direito de controle sobre o corpo do alvo do insulto, ou ao menos cria uma situação falsa em que o alvo do insulto está em algum tipo de dívida de adequação com a sociedade.
Vamos pensar no lado óbvio do contexto de xingamentos e usar exemplos simples: se eu chamo alguém de “ignorante”, eu estou dizendo que essa pessoa não tem conhecimento, e que não ter conhecimento é ruim. Se eu chamo alguém de “hipócrita”, eu estou dizendo que uma pessoa finge ter uma virtude, ideia ou sentimento que na verdade não tem, e estou dizendo que agir dessa maneira é algo negativo. Se estou falando que alguém é “mentiroso”, é porque a pessoa supostamente disse mentiras, e também porque mentiras são reprováveis, e portanto ela é moralmente questionável por fazê-lo. Ninguém duvida desse tanto de contexto, e esses exemplos são, no geral, ainda que discutíveis para os alvos, entendidos amplamente como insultos.
A contradição que nós muitas vezes não enxergamos é que nós damos um passe livre para o insulto quando ele é mais fácil de descontextualizar. Nós falamos “você não deveria se incomodar por te chamarem de gordo se é verdade”, como se fosse a exata mesma coisa de chamarmos alguém de “hipócrita” ou “mentiroso”. Nós geralmente não dizemos ao mentiroso “não se incomode por te chamarem de mentiroso”, mas procuramos saber se o que ele disse era verdade ou mentira.
Se voltamos para o primeiro exemplo que eu dei, tudo continua meio óbvio: um capitalista que chama alguém de “comunista” o faz porque crê que é um insulto ser relacionado a esse sistema, e vice-versa. Eles têm contextos específicos que criam significações próprias para essas ideias, transformando-as em insultos. Mas eles inegavelmente sabem a importância do contexto, ainda que talvez nem sempre de modo totalmente consciente. E sabem, ainda, quando há dubiedade em um insulto.
Vamos pegar o feminismo como exemplo. Chamar uma feminista de “feminista” não será insultivo. Será, ainda, um elogio, ou ao menos a observação de uma verdade. Em um cenário de aceitação do feminismo, a afirmação do título sem qualquer subcontextualização específica sempre será neutra ou positiva. Em um cenário de rejeição, será sempre negativa, com subcontextualização tendendo a apenas piorar. Há uma dubiedade, especialmente quando o cenário geral contém mais de um contexto. É por isso, então, que as pessoas adicionam palavras ou alterações para transformar esses termos em insultos.
Se chamar uma mulher de “feminista” não é um insulto, aquele que o faz tenta chamá-la de “feminista do caralho” ou da deturpação “feminazi”. Um liberal pode ser um “liberaleco”, um capitalista pode ser um “porco capitalista”, um comunista pode ser um “comunistinha”, a direita pode ser "manifestoche" e a esquerda "mortadela". Se o contexto pode gerar dubiedade, ou quer-se piorá-lo ainda mais, ataca-se a ele conjuntamente, e a percepção de que isso é feito apenas adiciona à hipocrisia de insultar alguém e crer que um insulto se resume àquele que é insultado.
Quando você chama alguém ou algo de “gay” como se isso fosse um insulto, você reforça a ideia de que ser gay é algo negativo. É inescapável. Mesmo que você diga que não tem preconceito, porque você ainda está dizendo isso em um contexto em que ser hétero não leva ninguém a apanhar na rua, e não existe nenhum equivalente hétero para “bicha”, “boiola”, “pederasta” ou qualquer outra das inúmeras expressões usadas para insultar gays.
E isso não se resume necessariamente aos momentos em que o insulto se aplica ao alvo. Menosprezar alguém por ser gay é insultivo à pessoa e a todos os gays, mas considerar a expressão "gay" um xingamento e utilizá-la contra um homem hétero é ainda pior para os gays. Do mesmo modo, quando você chama um homem hétero de “mulher”, provavelmente ele pensará que ocorreu um engano, mas se você chamá-lo de “mulherzinha”, “moça” ou outros termos, você efetivamente está dizendo que ele é inferior por pretensamente se assemelhar a uma mulher. Duvida? Elogie qualquer amigo seu de “mulherão da porra” e veja se ele entenderá isso como um elogio de primeira.
Um tipo de insulto que ocasionalmente surge é a atribuição de comparativos de performance, e especialmente em conversas de gênero isso não falta. Mas há uma diferença por vezes sutil, por vezes gritante, em como fazemos isso. Já existem pressupostos completamente arbitrários quando definimos o que é masculino ou feminino em comportamento, e na maneira como podemos achar isso negativo ou positivo para cada pessoa. Deixo o pensamento para vocês: o que está implícito quando falamos para um homem “fazer algo que nem homem”, por exemplo? Ou quando falamos “aquela, sim, era mulher de verdade”?
O ponto final da conversa é lembrar que nós nunca observamos nada sem julgamento, ou seja, nunca estamos livres de contextualização. O que nós dizemos sobre as outras pessoas reforça ou enfraquece certas visões de mundo, e o que tentamos usar como insulto é um ponto forte disso. A maneira como insultamos reflete a maneira como pensamos e agimos no mundo em nível individual e como sociedade. Igualmente, o modo como caracterizamos aqueles que vemos sempre dirá algo sobre nós, e pensarmos bem no que dizemos reflete muito sobre o que queremos mudar no mundo, mesmo quando não estamos insultando.
Proponho mais um exercício: imagine neste instante um homem alto e magro, de óculos. Eu sou capaz de apostar que praticamente todos os leitores brancos pensaram em um homem branco. Nós vamos para as referências mais próximas de nós, sendo esse o motivo por que, ao meu ver, muitos de nós sejamos fixados em descrições como “olha aquele negão alto ali”, ou “olha aquele japonês de óculos”, mas nunca “olha aquele cara branco magrelo”. Agora, se algo tão simples assim afeta sua mente dessa maneira, imagine: o que você não enxergará de maneira deturpada por conta de como insulta?