Os medos que temos e não temos
Sempre me surpreendo pensando no que as pessoas mais temem. Do mundano ao sobrenatural, do óbvio ao improvável, nós somos seres cheios de vieses, que geralmente têm muita dificuldade de nos posicionarmos dentro da vida justamente porque nos apegamos demais a certas variáveis, impressões e experiências, bem como porque o mundo é um lugar bem complexo, e não sabemos lidar bem com isso.
Me lembro de ter visto certa vez uma citação cujo autor não consegui localizar, mas que dizia, aproximadamente, que se as pessoas estudassem estatística elas contratariam mais apólices de seguros e não jogariam na loteria. Há algo importante, aqui: nós temos dificuldade de enxergar a proporção certa de riscos e oportunidades. Entendo que seja por isso, também, que tantas pessoas caem em golpes financeiros, se achando mais espertas ou sortudas que outras pessoas que não enxergaram chances únicas de enriquecerem.
Vivendo na cidade de São Paulo, um viés que sempre me assusta é em relação à percepção que temos da violência urbana. Note que não estou dizendo que a cidade não tem um problema com isso: nós realmente precisamos melhorar muito nesse sentido, e a criminalidade é uma questão real. Só que, justamente por ser real, é muito fácil exacerbarmos essa realidade.
Convenhamos, não é difícil de entender por que alguém se assustaria: se ligamos a TV temos Datena e outros tantos apresentadores com seus programas sangrentos que passaram horas esmiuçando cada crime da cidade, no estado e Brasil afora, na lógica do “quanto pior, melhor”.
Nas redes sociais, perfis inteiros são dedicados a crimes, com fotos, vídeos, relatos e descrições detalhadas. Pessoas assustadas e/ou vingativas compartilham ocorridos em grupos de WhatsApp, com direito a imagens de corpos. E temos a experiência individual de cada um, também. Todos nós conhecemos alguém que foi assaltado, agredido e, em casos, até mesmo morto.
A cada eleição que passa, temos candidatos a todas as esferas de poder falando de suas preocupações com a violência e criminalidade, resumindo tudo amplamente como “segurança” e prometendo soluções de todo tipo, enquanto apontam a incompetência de seus antecessores (os competentes são sempre os aliados e, por vezes, nem eles). A imprensa corrobora preocupações diversas com dados e relatos, mas nem sempre com foco de longo prazo.
Eu fiquei curioso com isso. Esses medos, relatos e retóricas me cercam desde que me lembro. Vivendo quase 36 anos nessa cidade, chega um ponto em que você não questiona mais. Mas e essa percepção de que estamos com mais problemas, ao menos em São Paulo? Pois bem, eu fui no site da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e descobri que ele possui dados mensais de diferentes crimes no estado todo desde 2001.
E então eu resolvi exportar todos os dados, ano a ano, colocar em uma planilha, e usar uma formatação por cores para indicar tendências. E aí eu descobri uma série de coisas interessantes, incluindo uma que já era minha suspeita desde o início: nós não estamos com mais problemas com violência do que no passado. Ou isso, ou o estado de São Paulo está mentindo para nós.
Supondo que esses dados estejam corretos, veja só o que encontrei: (Clique para ampliar)
Quanto mais verde, mais baixa a incidência do crime. E o que podemos notar, bem rápido: homicídios e violência seguem caindo praticamente ano após ano desde 2001. Nossos anos mais violentos foram, em sua maioria, no começo dessa série histórica. Os “velhos tempos” são suspeitos.
Não há dúvida que temos problemas, com roubos e furtos caindo em algumas frentes, mas se mantendo frequentes e até piorando em outros sentidos. (Vale observar, por curiosidade, como todos os crimes se amenizaram no período de pandemia.)
Só que tem um crime que fica crescendo ano após ano: o estupro. E aqui, outra vez eu volto a falar dos medos que nos assolam, ou que deixamos de ter, e como pensamos neles.
Eu preciso fazer uma ressalva, aqui, que há quem diga que todos números de estupros são subnotificados. Amplas evidências apontam um número considerável de pessoas que deixaram de denunciar um crime por medo, ignorância ou até porque outros ao seu redor e mesmo as autoridades amenizaram o caso. Há quem diga que há algo muito maior aí.
Vale destacar que, olhando além de São Paulo, outros dados indicam uma alta nos crimes no Brasil como um todo, reforçando a observação de uma tendência. E vale destacar que há estatísticas que apontam que menos de 10% dos crimes de estupro são efetivamente denunciados, o que indicaria um total geral muito maior. (Fonte — 1, 2)
Eu tendo a acreditar, assim, que o crescimento vertiginoso desses registros de crime seja tendenciado por um movimento maior de registros que antes não ocorria, mas como não tenho respaldo para apontar alguma proporção, temos que refletir com os dados que temos: há um aumento anual de casos de estupro. A partir do momento em que temos a composição desses dados, fica ainda mais preocupante ao vermos a maioria deles sendo de estupro de vulnerável.
Voltamos, aqui, ao medo de violência que dissemos antes: nós estamos vendo um perigo real, com dados, com uma proporção de ocorrência maior que outros tantos crimes, mas esses não são nossa preocupação primária. Por que isso ocorreria?
Eu tenho alguns palpites, e eles nos levam a mais alguns vieses. Um deles é o fato de que lidar com estupro necessariamente nos leva a campos desconfortáveis. Primeiro há a questão de gênero: um homem estuprado é sujeito a uma lógica específica de humilhação, de modo que pode não ser representado nas estatísticas como diria, e pode se sentir coibido não só de denunciar, como de procurar algo efetivo para parar tais crimes. Uma mulher, vítima principal do crime, passa não só por essas questões, como também enfrenta questões de credibilidade que enviesam todos os envolvidos de uma forma.
É desconfortável para muitos homens entender que são homens os principais estupradores de mulheres. Incontáveis mulheres já foram amplamente criticadas por descreverem que enxergam homens como estupradores em potencial, enquanto tinham que enfrentar egos feridos dizendo que “nem todo homem”. Claro que nem todo homem, mas se foram homens, há uma questão de gênero a ser considerada.
A resposta a isso de muitos que se sentem injustiçados é levantar casos de denúncias falsas. Há até a lenda urbana, perpetuada até por autoridades, de que 80% dos crimes registrados seriam falsos. Falsa, claro, é essa estatística, que já foi refutada mais de uma vez. Pelo mundo, apontam pesquisas, denúncias falsas correm entre 2 e 10% dos totais. Ideias como essa intensificam teses misóginas de uma suposta “epidemia” de falsas denúncias, reforçadas por casos anedóticos. (Fontes — 1, 2, 3)
Depois disso tudo, entendo que haja o elemento familiar, que age em dois sentidos: primeiro, estatísticas apontam que muitos casos de estupro são perpetrados que as vítimas conheciam e, segundo, como podemos ver pelos dados da SSP, em diversas situações, a maior parte dos casos de estupro são de vulneráveis.
Outro ponto que existe é algum tanto de pensamento retrógrado que insiste em culpar a vítima. Para algumas pessoas, um estupro não é tanto uma agressão como algo que a mulher foi incapaz de impedir, ou que deixou acontecer. Não preciso dizer muito para dizer o quão imbecil tal ideia é, mas peço que mantenham em mente para compreender onde queremos chegar. (Fontes — 1 e 2)
Enquanto normalmente quando falamos de roubos, furtos e assassinatos é fácil falar que “são os outros”, que são “os criminosos”, “os marginais”, “vagabundos” e outras pessoas que conseguimos generalizar, fica tudo mais difícil quando chegamos ao ponto de que apontamos que os criminosos SÃO também pessoas comuns, e que nós compartilhamos características inescapáveis com eles.
Pensando nisso, não é tão difícil assim respondermos uma simples questão: por que temos tanto medo de homicídios, roubos, furtos, mas muito menos de estupros, se estupros seguem crescendo ano após anos? Por que preferimos desacreditar mulheres, em vez de termos o mesmo horror que temos com vítimas de crimes que normalmente consideramos abomináveis?
Não estamos errados em ter certos medos, mas precisamos entender o quanto eles são reais, e o quanto estamos sendo manipulados, se não por nossos vieses e ignorâncias, por pessoas mal-intencionadas, ou igualmente enviesadas e ignorantes.
Uma conversa mais longa renderia muitos textos maiores e melhores que esse, e sei que há muito em que se aprofundar sobre causas, efeitos e soluções. Mas esse não é o objetivo aqui.
Neste momento, caminhamos para o final, e quero que você que está lendo pense sobre seus medos e vieses, por mais difícil que isso possa ser. É sempre um excelente exercício.
Mais do que isso, proponho que pense no que estão falando para você sobre os medos que você tem ou deveria ter.
Proponho que reflita em quais são as prioridades quando falam de aumentar policiamento em determinadas circunstâncias, ou quando se omitem em outras. Proponho que reflita, nessa ideia, por que menos de 20% das delegacias da mulher atualmente funcionam 24h e por que elas sofreram tantos cortes de verba recentes.
Proponho que reflita o que imbecis alçados a papéis de autoridade estão pensando, exatamente, quando propõe que a falsa denúncia como crime hediondo, e qual precisamente seria o efeito disso em mulheres que já são coibidas por outros fatores de falar quando sofrem um abuso.
Mais do que isso, quero que reflita também sobre quem exatamente as autoridades — e as pessoas que as apoiam em suas decisões — pensam que é a prioridade de proteção em uma suspeita de estupro, e por quê. E, se possível, reflita se estamos lidando, nesses casos, com ignorância, má intenção, ou as duas coisas.
E é isso por agora. Abaixo, só alguns materiais extras:
Eu fiz um outro texto mais focado na análise dos dados históricos, com algumas das conclusões que estão aqui, mas outros pensamentos e apontamentos. Você pode ler aqui.
Se você quiser acessar as planilhas com as tabelas e gráficos que montei, incluindo muito mais material extra, você pode ver tudo neste outro link.
E, claro, já mandei antes, mas reforço: se quiser a fonte original dos dados das tabelas, é só clicar aqui para acessar o site da SSP.