O mal pelo mal, o bem pelo bem

Rodrigo Ortiz Vinholo
7 min readApr 1, 2021
"Esqueletos", Agostino Veneziano (Agostino dei Musi) (1518)

Sempre tive problema com algumas histórias ficcionais, especialmente as de terror, onde existem vilões cujo objetivo é “o mal”. Note que ainda que essa abordagem soe infantil, não faltam obras pretensamente adultas que levam essa mesma problemática.

Me lembro, em um exemplo recente, do trailer do filme de terror “The Unholy”. Veja, sei que estou falando apenas de um trailer, mas eu quero reforçar algo interessante sobre ele. Assista, ou simplesmente continue lendo aqui que eu explico.

A certa altura um personagem fala que rezar para o mal faz o mal crescer. A ideia do filme é de um demônio ou coisa do tipo se passando pela Virgem Maria e enganando pessoas. O objetivo dele provavelmente é algo mais objetivo que apenas “o mal”, como almas, ou controle e poder, ou a extinção da humanidade. Mas estou trazendo isso aqui não pelo filme, mas pela fala específica. O meu ponto todo é a retórica.

É legal pensar em um filme de demônios que “o mal” é uma coisa. “O mal” é o melhor vilão, porque ele simplesmente não é bom. E nessa, quem vai ser a favor do mal? Só quem é mal, porque quem é bom está a favor do bem, que é bom? Lógica perfeita, hein?

Já dizia o Homem-Sereia:

Mas aí é que está o ponto: o que raios é o mal? Na vida real, o mal não existe de maneira pura. Ele também não existe como objetivo. O mal pelo mal é uma coisa de histórias ficcionais.

Desconfie de qualquer retórica que coloca o mal como uma força por si mesmo. Se for na literatura, no cinema ou qualquer outro meio de entretenimento, ou o personagem que atua pelo mal é mal escrito, ou é uma representação ruim de algo que o autor quer demonizar, ou ele é um elemento de sátira.

Na vida real, isso é pior ainda. Se alguém me fala que está combatendo o mal, eu imediatamente penso que essa pessoa é ignorante, que está alucinando, ou que é totalmente desonesta. Pode até ser que as pessoas escolham fazer coisas boas por virtude, mas raríssimos são os que escolhem fugir da virtude simplesmente porque querem ser maus.

Um assassino pode matar alguém porque acha que está certo. Pode matar alguém porque acha que a outra pessoa é errada. Porque quer lucro, ou sossego, ou incontáveis outros motivos. Assassinos não atuam para reduzir a virtude do mundo, ou para aumentar um “mal” único. Chamá-los assim, bem como qualquer outro indivíduo que cometa crimes e/ou atente contra a moralidade é simultaneamente simplório e exato, porque ignora variáveis, mas também não está errado na maior parte dos códigos morais do mundo.

Você pode me perguntar o que é o mal e eu vou dizer uma coisa, e outra pessoa vai discordar de mim.

Duvida? Lá vai: eu acho que nenhum ser humano deveria poder matar qualquer outro ser humano, seja com a chancela de um Estado ou não, e isso também se estende a qualquer situação de punição. Se motivos de força maior levarem a um assassinato, esse deve ser encarado como tal não importando as ações do indivíduo que foi morto.

Várias religiões concordam comigo nesses pontos, mesmo que seus seguidores não necessariamente o façam. Muitas pessoas iam me xingar por ter essas ideias, e diriam que estou colaborando para que o mal continue vivo e atuante no nosso mundo. Muitas diriam que matar é ruim, mas que é um ato bom quando se trata de matar alguém que é mau. “Matar alguém que é mau”, claro, poderia significar “executar alguém com a chancela do Estado.”

Se estamos entre pessoas razoáveis, todos entenderemos em linhas gerais o que se diz quando se fala sobre “o mal”. Conseguimos pensar em assassinos e estupradores, em torturadores, ditadores, corruptos, manipuladores e tantos outros. Mas a questão é que, de perto, ninguém concorda totalmente, porque basicamente tudo é considerado discutível por alguém em algum contexto. E, por isso, quando mais longe falarmos sobre “o mal” em forma de um grande guarda-chuva, mais nós escondemos essas distinções e aceitamos ações que atuam para coibir versões específicas do “mal” com as quais pode ser que não concordemos.

Se nós misturamos isso com outras lógicas morais, como a religião ou a filosofia, sai de baixo. É assim que chegamos a pérolas como esta que andou rodando a internet:

Meu destaque maior aqui é para “Mantras (Tipos de música do Rouge)” e, claro, a inevitável perseguição à população LGBTQIA+ com “Homossexualismo”. Imagine que as pessoas que que seguem essa lista estão prontas para aceitarem que, mesmo que em níveis diferentes, “o mal” inclui todos esses itens.

Eu posso concordar com essa pessoa em boa parte dos itens, realmente. Mas imagine que se eu me manifestar assim, no entendimento dela, minha concordância na rejeição, por exemplo, da Necrofilia e da Bestialidade significaria o apoio à perseguição do resto da lista, incluindo ao inocente Tarô. Ou a gays.

Pela mesma lógica, para a pessoa que existe com a cabeça focada no “mal” como uma entidade única, se eu disser que rejeito que algo conste na lista, afirmando que, por exemplo, eu não tenho nada contra Rouge e que eu acho que pessoas LGBTQIA+ deveriam ter direitos iguais a todas as outras, eles vão subentender que eu aceito tudo mais que eles consideram “o mal”. A partir do momento em que você generaliza e categoriza, você torna binário dentro da sua categorização, por mais sem sentido que ela possa ser para o resto do mundo.

Tudo isso funciona junto com uma visão bem clara: a partir do momento em que você vê algo ou alguém como o mal, tudo é aceitável porque “o mal” tem que ser derrotado, e nenhuma motivação importa, porque toda motivação para “o mal” é má. Isso é perfeito e fácil de aceitar, até o momento em que alguém acha algo que você faz, como existir, ou ter uma religião específica, ou ter certa aparência ou cultura é “o mal”.

Você pode achar que é exagero, mas eu quero que você pense bem em todos os discursos que já ouviu por aí de pessoas em palcos de tipos diversos, e em entrevistas, e em vídeos. E aí eu quero que você pense no contrário, que você pense no que é “o bem”.

“O bem” inclui amor? Inclui, claro. Caridade? Certo. Respeito? Sim. Felicidade, animaizinhos e tantas outras coisas que nós gostamos e nos fazem bem? Evidentemente!

Mas aí a gente pensa de novo em morte, e podemos dizer que “o bem” inclui matar? Sei que não estou inventando a roda, e nem vou explicar de novo essa lógica porque entendo que esteja falando com adultos aqui, ainda mais depois do papo que tivemos há pouco. Não vou tratar ninguém como ignorante.

Eu quero que pense em quem fala que age “em nome do bem”. Todo aquele papo de generalização do mal é ainda pior aqui. E a linha é muito mais tênue, porque ética e moral são coisas complicadas.

Eu diria que quem fala muito sobre “o bem” pode ser tão perigoso quanto os que falam muito sobre “o mal”, mas geralmente são os mesmos. Quem geralmente chama um inimigo de “mal” chama a si mesmo de representando do “bem”, e a lógica é a mesma da lista de pecados acima: se você não concorda com ele, adivinha? Você é tão ruim quanto Astrologia, Perjúrio e “Homicídio (matar mesmo)”.

Qual é a solução pra tudo isso? Eu queria que fosse simplesmente todo mundo se dar conta, mas, convenhamos, é difícil. Este meu texto mesmo — e eu, de quebra — , entraríamos na lista de alguém como candidatos fortíssimos para “o mal”. Quem pensa assim não vai parar para ler isto aqui e, se ler, não vai levar a sério.

Então podemos melhorar o que podemos em nós mesmos e na nossa retórica. Primeiro, temos que evitar que qualquer discussão caia nesse terreno minado. Se o poço da discussão já está envenenado, por assim dizer, não adianta você jogar água limpa. A questão é tirar a discussão do paradigma de quem está envenenado esse poço.

E aí, depois disso, temos que focar o que podemos fazer não no macro, na visão geral que invariavelmente cai em “bem” e “mal”, mas em podermos falar sobre cada uma das coisas pequenas.

Ainda há muita gente que pensa que a comunidade LGBTQIA+ é “o mal”, e indivíduos do mundo inteiro, há décadas, demonstram que esse não é o caso. Hoje, várias religiões que rejeitavam completamente essas pessoas as aceitam, ainda que não totalmente. Leis que perseguiam essas pessoas vão aos poucos caindo. Lógico que ainda existem ignorantes para falar “o mal está vencendo” ou qualquer bobagem retrógrada do tipo, mas se saímos do campo da lógica torta deles, eles são vistos cada vez mais como o que realmente são: ignorantes falando bobagens retrógradas.

Isso dá uma esperança: enquanto não tentamos curar um discurso torto, nós estamos ganhando. E enquanto existirem rachaduras nesse discurso, e enquanto não alimentarmos o geral, o específico ganha.

E, claro, ajuda muito apontar todas as contradições de discurso. Ou você acha que os Dez Mandamentos disseram “Não matarás, mas se quiser pode”?

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Rodrigo Ortiz Vinholo
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Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

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