Dá trabalho ser bom

Rodrigo Ortiz Vinholo
8 min readAug 12, 2019

Eu sei que nós já falamos, como civilização, muito sobre moralidade e ética. Mas eu também acho que estamos longe de atingir a perfeição nesses aspectos, então até lá nós temos que continuar falando a respeito, aprendendo e tentando novamente a cada erro.

Dá trabalho ser bom. Dá trabalho, mesmo que eu saiba o que é certo e o que é errado, e mesmo que minhas intenções sejam as melhores possíveis. E é claro que eu falo isso de todos nós. Todos nós temos essas dificuldades.

Primeiro que, para sermos bons, nós temos que definir o que é que isso significa. O que é mais complicado é que nós temos que definir exatamente o que é um ato bom, um objetivo bom e um resultado bom. Se uma dessas frentes não foi propriamente atendida, pode ser que não estejamos sendo bons, ou ao menos não plenamente.

Olha só, vamos considerar como exemplo algo que muitas religiões e filosofias concordam: matar é ruim. Que tal? Combina com nossa moral judaico-cristã tão bem quanto com o budismo e hinduísmo no oriente, e as com religiões africanas. Matar é ruim. Ponto final. Sem discussão. Não há exceção, em especial em casos como os mandamentos, que são categóricos nisso. Todos concordamos que é péssimo que um ser humano termine a existência de outro ser humano, e os motivos para isso podem variar, mas acabam discutindo similarmente o direito à existência, liberdade e felicidade que todos concordamos que devemos ter.

Então temos a definição que matar é um ato ruim. O segundo grande ponto da definição do que significa bondade e ter uma boa conduta é observarmos os outros aspectos. Nos resta observar, então, o que existe além do ato: objetivo e resultado. Alguém pode matar com um objetivo bom e um resultado bom? Eu diria que sim, pode acontecer. Mas o problema é o que vem depois.

Essa é uma discussão longa, e talvez eterna, mas eu proponho algumas respostas curtas.

Digamos que alguém mate porque gosta de matar, e o resultado é realmente só alguém morto. Temos os três aspectos sendo ruins, certo?

Digamos que alguém mate porque queria defender alguém, e acabe salvando uma ou mais vidas no processo. Dois bons e um ruim, por nossa lógica.

Agora, imagine que alguém mate porque queria defender alguém, mas acaba matando também um inocente. Dois ruins e um bom, mudando apenas um aspecto.

Pra terminar, imagine que alguém queria matar alguém porque gosta de matar, e ao assassinar alguém, acidentalmente salva a vida de outra pessoa. Dois ruins e um bom, mas mudando a posição das classificações.

Poderíamos tirar algumas conclusões desses exemplos. Poderíamos dizer que, invariavelmente, o objetivo é o que importa. Só que nós, como civilização, já concordamos que isso é falso. Se alguém causa a morte de outra pessoa, mesmo por acidente, ela é julgada e pode ser punida por isso. Do mesmo modo, um assassino que salve uma pessoa, mas cuja intenção era apenas de matar para matar (ou para roubar, ou qualquer outro motivo similar), será culpado como qualquer outro assassino, mesmo que acidentalmente tenha causado o bem. Ou seja, o objetivo ou intenção pouco importa, se o ato é considerado invariavelmente ruim.

Outro ponto que podemos pensar, vendo um resultado positivo, é que um ato considerado ruim pode causar um resultado bom. Essa é uma ideia amplamente difundida, com boa parte de nossa civilização concordando com isso, especialmente quando quem é morto é ruim e/ou teria efeitos deletérios para a civilização em geral por continuar existindo e agindo. Mas há diversos problemas, nela: a partir do momento em que nós concordarmos que basta uma intenção boa com um resultado final bom, criamos uma enorme zona cinzenta com aquele que não tiver boa intenção, mas criar um bom resultado. E, mais grave: nós nem deveríamos precisar discutir isso, porque já concordamos no exemplo anterior que não basta o resultado.

Se aceitarmos que um ato ruim, com bom objetivo e bom resultado é aceitável, e considerando essa incapacidade de diferenciação que pode surgir a partir de qualquer bom resultado, nós efetivamente anulamos, ou ao menos enfraquecemos gravemente qualquer chance de juízo moral sobre qualquer ato. Nesse sentido, nos tornamos hipócritas, a não ser que aceitemos que qualquer ato possa existir livre de moralidade, até que as consequências e intenções que o levaram a acontecer estejam claramente delimitadas.

Vamos inverter as coisas para facilitar.

Digamos que uma médica salva vidas. O ato dela, para fins de exemplo, será “salvar vidas”. Concordaremos, em nosso pressuposto de preservação de vidas humanas, que isso é um ato intrinsecamente bom. A intenção dela é sempre das melhores, então o objetivo também será considerado bom. Agora vamos ao resultado:

Ela salvou a vida de um garotinho. Ele saiu do hospital, pegou a arma de seu pai, e cometeu uma chacina em sua escola.

Ela salvou a vida de um idoso. Ele viveu por mais algum tempo uma vida sem qualquer grande feito e morreu de causas naturais.

Ela salvou a vida de uma jovem. Essa jovem se encantou pela medicina e se tornou uma pesquisadora que salvou milhares de vidas com descobertas revolucionárias.

Nos três casos, a intenção da médica não fez diferença alguma no caso, porque ela sempre foi a melhor. Mas o primeiro caso teve como resultado uma série de mortes e o terceiro teve uma série de outras pessoas sendo salvas.

A médica, na prática, não poderia ser culpada pelo primeiro caso, pois jamais saberia que isso poderia acontecer. Nenhum crime poderia ser relacionado a ela, por mais que ela fosse diretamente responsável pela possibilidade de que o crime acontecesse.

Ela pode até ter servido como exemplo para o terceiro caso, e seria elogiada por isso, mas também não saberia que isso poderia acontecer. Ela seria a salvadora indireta das vidas, por ter sido diretamente responsável pela possibilidade de que a jovem se tornasse médica.

E o segundo caso, certamente, não mudaria nada. O que o idoso fez da vida foi indiretamente responsabilidade dela, mas ninguém sequer se lembraria, já que nada de marcante aconteceu.

Está me acompanhando?

Então antes de eu chegar a uma última leva de exemplos, eis uma tese: a única moralidade viável é aquela que se baseia na definição moral e julgamento de atos antes de qualquer objetivo ou resultado.

Ou seja, é ruim roubar, matar, ferir, torturar, mesmo que por qualquer outro fator, um bom resultado seja obtido.

Então a atuação, por exemplo, de qualquer força de segurança que mate é invariavelmente ruim? Lamento dizer, mas sim! E é aqui que temos que prestar mais atenção: a partir do momento em que reconhecemos um ato como ruim, ele é ainda a base da definição moral, devendo dar o pano de fundo para outras discussões morais. Ou seja, não adianta defendermos o bom resultado de um ato ruim, se isso significar que nós não vamos reconhecer um ato ruim como um ato ruim.

Simplificando ainda mais e focando no exemplo, para não deixar dúvida: o julgamento mais moral que podemos fazer sobre um assassinato é reconhecê-lo sobre um assassinato sempre, não importando o que aconteceu depois dele ou qual foi a intenção do assassino. Matou, matou. Não existe exceção, assim como não existe exceção em um mandamento religioso.

O ideal para entender tudo isso, a meu ver, é também observar o lado oposto: quando julgamos algo por sua intenção ou resultado, nós descartamos qualquer juízo de valor no meio para se chegar lá. Isso é um erro, porque implícita ou explicitamente indica que aceitamos qualquer coisa desde que o resultado seja positivo para nós. Isso é a fórmula básica de psicopatas e tiranos.

Mas isso não quer dizer que temos que olhar, por exemplo, alguém que salvou a vida de outro com um assassinato, ou que se protegeu matando o agressor, necessariamente com um vilão. O que temos que fazer, o que é nosso dever moral, é entender que o ato de cometer um ato ruim — no exemplo, um assassinato — sempre é um ato moralmente reprovável e algo que tem gravidade, não importando quais são as consequências paralelas a tal fato.

Isso nos leva ao começo da discussão, ao ponto que eu queria chegar com tudo isso: dá trabalho ser bom. É difícil. Porque invariavelmente, ser bom não depende de sua intenção ou dos resultados que você consegue, mas essencialmente dos seus atos.

Não é fácil, mesmo, e nunca é para ser. Pensarmos que existe um caminho fácil em moralidade significa que estamos baixando nossos padrões, que estamos aceitando qualquer coisa. Não citarei clichês já conhecidos sobre o inferno e boas intenções, mas vou dizer que nós não podemos achar que temos a superioridade moral em relação a qualquer pessoa, se nossa resposta a seus atos é igualmente imoral.

Se queremos ser bons, não podemos dizer que somos assim ao cometer qualquer ato que não seja bom, em qualquer circunstância, incluindo contra o que não é bom.

“Ah, mas ____________ cometeu ______________ e você espera que eu não faça algo em resposta?”

Não, claro que não. Eu nunca disse isso.

O que eu disse é que, se queremos ter um paradigma de moralidade, devemos existir nele. E se cometermos alguma transgressão de nossas regras, devemos reconhecê-las como transgressões não importando o contexto. Não deveremos nos dar saídas fáceis. Não deveremos nos perdoar porque o resto nos parece moral o suficiente.

Se não estamos sendo bons, mesmo que achemos necessário por qualquer motivo que isso é justificado, não podemos esquecer que não estamos sendo bons.

A partir do momento que esquecermos dessa distinção, abrimos as portas para a barbárie de justificar qualquer ato imoral como aceitável.

Para terminar esse pensamento, e antecipando o que alguns talvez pensem, já levanto um último questionamento: e quanto a atos ruins, mas que como sociedade entendemos que sejam perdoáveis frente à intenção, resultado e, se quiser ainda, circunstâncias?

Aí é o pulo do gato. Vamos considerar o exemplo clássico de uma mãe que rouba comida para alimentar sua família. Se quisermos realmente ter essa moralidade que descrevi acima, sua intenção e resultado, temos que considerar que esse ato é ruim mesmo, pois viola moral e ética conforme a entendemos. Sem discussão. Se roubo é ruim de um jeito, é ruim de outro.

Em momento algum devemos tratar o roubo como algo que não o que ele realmente é. Se uma sociedade considera a subtração da propriedade alheia como algo ruim, é lógico que sigamos com esse princípio aqui. A diferença é entendermos que, sem deixar de pensar que um roubo é um roubo, temos que lidar com isso, e que todas as respostas possíveis são difíceis.

Pense bem: a maior parte dos cenários de punição apenas exacerbaria as circunstâncias que levaram a mãe a cometer o crime, e os atos, em si, poderiam ser considerados maus — como, por exemplo, separar uma mãe dos filhos — , o que nos colocaria em uma situação delicada. Se formos lenientes demais, podemos causar problemas, também.

A solução? Eu não sei com certeza, mas se tivesse que escolher diria que o perdão é válido e, se viável, a compensação também. E sinto que conseguimos fazê-lo sem criar tanta dissonância. Aqui é uma daquelas áreas que, se reduzirmos a escala, fica bem cinzenta. Mas também lembra de algo que temos que ter em mente: não é porque estamos reconhecendo moralidade com base em atos e no que eles são para nós, que dois atos, por si só, se equivalem porque tem a mesma natureza.

É claro que a questão de moralidade pesa, aqui, mas não adianta dizermos que o roubo milionário de um político e o roubo da mãe do exemplo acima são idênticos porque ambos são roubos.

Repito: dá trabalho ser bom.

Mas, no fim, sempre vale o esforço.

--

--

Rodrigo Ortiz Vinholo
Rodrigo Ortiz Vinholo

Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

No responses yet