Você é um animal simples

Rodrigo Ortiz Vinholo
6 min readFeb 27, 2023
Pinturas rupestres no Parque Nacional da Serra da Capivara, Brasil (https://pt.wikipedia.org/wiki/Arte_rupestre#/media/Ficheiro:Serra_da_Capivara_-_Several_Paintings_2b.jpg)

Você é um animal que é parte de uma espécie que inventou todo tipo de tecnologia. Vocês controlam grandes forças e manipulam a natureza. Vocês se comunicam de várias formas, e têm pensamentos complexos sobre coisas que nem existem.

Na prática, são principalmente as coisas que não existem diretamente, que não podem ser tocadas, que mais influenciam na sua vida e na dos outros de sua espécie.

Você, em particular, provavelmente não fez nada tão grande assim, o que não é nenhum demérito. A maior parte das pessoas não fez tanta coisa assim, também.

Você é um animal simples. Um bicho de carne e osso, movido por impulsos elétricos que você sequer controla. Você é um saco de vísceras, sangue e fluídos diversos. Você caga. E come, dorme, e talvez copule. E você tem muitos sentimentos o tempo todo. Nada disso é particularmente um problema, mas tudo isso pode gerar problemas.

Se você não caga, você não faz as outras coisas direito. Você talvez não durma. Talvez não coma. Talvez até copular fique difícil. E seus sentimentos não vão ficar bem, porque eles são afetados pelo funcionamento do seu corpo.

Se você não dorme, outros efeitos acontecem, que fazem com que as outras coisas fiquem difíceis ou também não funcionem bem. Há um padrão aqui, que não irei repetir com todos os exemplos, mas que fica já óbvio com esse tanto que falamos: se uma coisa não funciona, as outras também não. Inclusive, é possível que você esteja com tudo bem, mas seus sentimentos não estejam bons, e aí nada funciona. Às vezes é difícil ser um animal simples.

Como um animal simples, sua função básica é sobreviver. Seu corpo, felizmente, faz boa parte do trabalho, mas você precisa manter ele funcionando. Para isso, você precisa comer, e cagar. Também ajuda se você movimentar o seu corpo, se você dormir, e se tudo mais estiver em dia, inclusive seus sentimentos.

Hoje em dia, e desde muito tempo, viver custa. Antes os preços e os modelos de sobreviver eram outros, mas hoje, basicamente, você precisa de coisas que são obtidas por dinheiro, que você deve trabalhar de alguma forma para obter, ou precisa que alguém consiga dinheiro para você viver, porque essa pessoa quer que você siga vivendo, ou porque você está fazendo algo em troca dessa sobrevivência.

“Valor” é algo que não existe diretamente. “Dinheiro” também é algo que não existe diretamente, por mais que tenham vários nomes e cálculos a respeito dele. Mas muitas vezes esses conceitos acabam sendo mais importantes do que todo resto, porque são o jeito atual de fazer com que você tenha uma base para continuar funcionando e, do mesmo modo, são um ponto de preocupação que pode te prejudicar. Se você não tem dinheiro o suficiente, você pode ter problemas. Ter demais, por outro lado, raramente te traz muitos problemas.

Acima de sua função básica, você pode contar várias outras. Há quem diga que procriar é, também, uma função básica. E há quem diga que outras ainda são básicas, mas a discussão sobre elas é maior, e todo mundo entende, de uma forma ou de outra, que elas são baseadas em ideias que não existem diretamente, muitas das quais as pessoas só concordaram que são boas funções para um animal do seu tipo.

Essas outras funções incluem, mas não são limitadas a: ter uma boa reputação, seguir um código moral, conquistar (muito) mais dinheiro do que é necessário para sobreviver, escrever um livro, plantar uma árvore, cuidar de outras pessoas, conhecer lugares, ser lembrado, experimentar comidas e bebidas, aprender informações diversas, ganhar reconhecimentos e condecorações, ter certas experiências de interação humana, ter certas experiências com as criações humanas, ter certas experiências com a natureza etc.

Quando nós tomamos certas decisões, e assumimos certas funções e papéis, nós criamos o que chamamos de responsabilidades, que são ideias inventadas sobre acordos que temos uns com os outros sobre o que achamos que deve ser feito. É possível, também, assumir certas responsabilidades consigo mesmo, mesmo que ninguém esteja necessariamente acompanhando isso, e que seja apenas você a pessoa que está se cobrando.

Muitas vezes são essas responsabilidades, dentre várias outras coisas que não existem exatamente, que mais afetam você e seu corpo. Eu já disse isso antes, lá no começo. E aí o que é afetado? A sua capacidade de cagar, comer, dormir, copular e todos os seus sentimentos. E aí as coisas param de funcionar de um jeito ou de outro, e umas afetam as outras.

Com isso, algo pode acontecer, a partir de uma dessas ideias: a lógica de que essas coisas que não existem são superiores a essas que existem, que estão no seu corpo e te fazem funcionar. Então você tenta resolver e assumir mais responsabilidades, apesar de já sentir que alguma coisa não está funcionando bem.

Há um erro, nisso. O erro é simples: você é um animal simples. Você caga, come, dorme, copula e tem sentimentos. Você se mexe. Você faz barulhos. A partir do momento em que você tenta agir como se não fosse um animal simples, ignorando ou minimizando essas questões que são básicas, você não vai funcionar bem.

Você não é um animal complexo. E digo mais: até onde se saiba, não existem “animais complexos” no sentido em que estamos falando aqui. Ou seja, você pode ter os pensamentos mais difíceis e detalhados sobre as coisas mais abstratas e superiores, mas você ainda vai ser um animal simples que caga, come, dorme, copula e tem sentimentos, e se alguma dessas coisas não funcionar direito minimamente, você não vai funcionar bem. A complexidade do seu pensamento não te torna livre disso.

Assim, se os seus sentimentos estiverem confusos, pesados e difíceis de lidar, se seus pensamentos não estiverem claros, se seu corpo não estiver bem, e se o mundo parecer um local complexo demais, ruins demais, lembre-se que provavelmente pode até existir alguma verdade no que você está passando, mas as chances de que seja tudo intensificado porque algo mais simples não está de acordo são consideráveis.

Você não vai salvar o mundo se comer, dormir, relaxar, cagar, não fazer nada, ou fizer algo que te divirta. Você também não vai resolver nada de sua lista de tarefas. Você não vai tornar as outras pessoas melhores, nem vai conquistar alguma grande coisa, nem vai fazer uma descoberta. Mas você precisa dessas coisas, portanto não trate qualquer uma dessas coisas como menores.

Reforçando, caso não tenha ficado claro: não é porque você é um animal simples, com necessidades simples, que elas devam ser tratadas como desimportantes, porque, no fim, são elas que vão fazer com que você exista com algum conforto. Ou mesmo sem conforto. Elas são o pressuposto.

Você é um animal simples, com suas necessidades simples, mapeadas há tempos. Pode ser que o jeito que elas funcionam para você sejam diferentes das dos outros, mas em essência, elas são as mesmas. E isso é verdade para todo mundo, mesmo que nem sempre pareça. Mesmo que você não queira que seja assim.

Então, quando algo parecer errado, certifique-se que você está cumprindo essas ações. É bem provável que o que parecia errado seja mais fácil de lidar ou, em casos, nem seja algo que realmente é um problema. Não se leve tão a sério, você não foi um bicho feito pra inventar tanta pretensão de importância sobre si mesmo.

O mesmo acontece com os outros, então aprenda a relevar. Você está lidando o tempo todo com bichos que provavelmente estão com alguma coisa bem básica faltando, mas que se acham capacitados para tomar decisões grandiosas. Eles são todos tão coitados quanto você.

Nunca se esqueça que você é um animal simples. E que todo mundo mais também é.

(P.S.: Este texto, como boa parte das coisas que escrevo, foi feito principalmente para mim, para eu me lembrar de coisas importantes, ou cimentar certas lições. Espero que seja útil para mais alguém.)

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Rodrigo Ortiz Vinholo
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Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

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