Você inventou a regra

Rodrigo Ortiz Vinholo
7 min readDec 17, 2021
Frans Hals — Portrait of a Man Holding a Skull (1610–1614)

Às vezes nós precisamos nos lembrar do óbvio, simplesmente porque quando é algo que descreve nossas vidas, nós não necessariamente o estamos encarando de uma posição que permite questionamento.

Recentemente minha vida passou por uma série de mudanças. Algumas sutis, outras nem tanto e, com a pandemia reduzindo de intensidade, mesmo que os cuidados ainda existam, o retorno ao “normal” trouxe dúvidas diversas.

A principal das dúvidas era “mas por que eu faço tais coisas assim ou assado?” Fica fácil questionar um hábito quando você, por exemplo, mudou completamente seus hábitos por conta de algo externo, e o modo como você operava até então fica exposto. Assim, quando você vai voltar ao que era antes, depois de quase 2 anos, você tem perspectiva para questionar o que antes fazia muito sentido.

Só que aí vêm outras coisas. Uma pergunta leva a outra, e ao reavaliar nossas vidas, acabamos por repassar muito mais.

Eu sou uma pessoa ansiosa, e uma pessoa que trabalha muito, tanto no horário comercial, em um emprego fixo, quanto em incontáveis outras iniciativas e projetos no meu tempo livre. E eu crio várias metas para mim mesmo, sobre estudos, sobre publicações que quero fazer, coisas que quero conquistar. Eu tenho minhas responsabilidades, mas também quero criar novas responsabilidades, quero estudar línguas no Duolingo diariamente, quero manter minha escrita em dia e mil outras coisas.

Foi aí que, com as mudanças da minha vida, eu notei que estava me estressando demais, como fiz em tantas outras vezes na vida, porque quando meu tempo começou a funcionar de maneiras diferentes, a dinâmica que eu esperava ainda existir mudou, e isso levantou várias perguntas. Foi então que eu notei duas coisas importantes, que eu espero que possam ajudar vocês.

A primeira foi a diferença entre dever e obrigação.

Aqui, vou deixar bem claro que estou usando definições bem pessoais, e as reproduzo assim para minha conveniência, porque foi assim que pensei nelas. Por “dever” eu denomino aquilo que eu tomei como responsabilidade para mim ou pelos outros. É o que deve ser feito para que algo que eu desejo que se concretize. É o que eu escolhi assumir, e que se torna um compromisso. Não cumprir pode ou não ter consequências, mas tudo obedece a questões morais, princípios e desejos meus.

obrigação é a responsabilidade que eu não escolhi assumir, mas que eu me vejo obrigado a cumprir pelas circunstâncias. Pode ser uma demanda da vida, da família, ou mesmo do meu emprego. Geralmente, é o tipo de tarefa que, se não cumprida, me trará consequências negativas. Mesmo que eu tenha algum alinhamento moral, é o tipo de coisa que eu não faria se eu não precisasse.

O que acontece quando você não sabe distinguir isso, ou quanto confunde, nos meus termos, dever e obrigação? Simples: você passa a tratar até as coisas que você gosta como cobranças descontroladas. Acredite em mim, eu fiz isso. E ainda faço, estou no processo de aprender a lidar melhor com isso.

O contrário é mais difícil de acontecer, no meu entendimento, e provavelmente há menos consequências. Imagino que seria maravilhoso se conseguíssemos tratar todas nossas obrigações com a leveza e o senso de dever que temos com as coisas que fazemos porque queremos.

Enfim, para mim, simplesmente separar essas duas coisas fez uma mudança considerável nos meus hábitos, e me permitiu trabalhar muito melhor minhas prioridades, meu tempo e, mesmo quando não havia mudança prática, sofrer menos quando uma coisa ou outra não era viável.

E foi a partir desse ponto que, com certa ajuda externa, eu notei a segunda coisa importante que mudou e ainda está mudando minha vida: se algo é um dever, e não uma obrigação, na maior parte das vezes é você quem inventou a regra sobre como isso é feito. Se você inventou a regra, você tem o poder de alterá-la.

Sim, eu sei que é óbvio. Eu disse isso no começo deste texto, e repito aqui, mas é muito fácil que esqueçamos que um compromisso e as regras que o mantém geralmente são subjetivas, baseadas em costumes, expectativas, ou convenções pessoais. Portanto, a partir do momento em que nos acostumamos com a configuração de um dever, não parece natural alterarmos. Ou parece difícil.

Nós fossilizamos um molde e pode ser que ele funcione por algum tempo, mas isso não quer dizer que ele sempre vá funcionar. Você pode, por exemplo, assumir um compromisso porque está em um momento com muita energia e tempo, e descobrir em médio ou longo prazo que não consegue manter porque se torna cansativo. Ou as circunstâncias podem mudar e você descobrir que não tem o tempo que imaginava que era necessário. Ou pode ter uma mudança de circunstâncias, de localização, mil coisas.

Isso vai muito da personalidade de cada pessoa, mas geralmente em um dever que assumimos com os outros fica mais fácil identificar esse tipo de coisa. Para alguns casos, uma conversa resolve, e ajustes no combinado fazem tudo funcionar. Para outros, o relacionamento pode ser abalado porque a alteração do dever é vista como uma quebra de confiança, ou como o afastamento das circunstâncias básicas que mantém a existência dele.

Só que aí que vem um fenômeno engraçado: várias vezes as pessoas não notam o que aconteceu e, em vez de alterar o dever, passam a ressentí-lo, e assim a ressentir a outra pessoa. Assim, o dever vira obrigação, e nada fica muito feliz.

Esse efeito é especialmente verdadeiro quando o dever que você tem é com você mesmo. Se você assumiu esse compromisso ao ponto dele virar um hábito, quando você não conseguir cumpri-lo, é capaz que se sinta fracassado, ou que está traindo suas convicções, ou que está fazendo menos do que deveria, quando simplesmente o que aconteceu é que as coisas não são as mesmas, ou que você mudou, ou que, na prática, nunca era para funcionar.

E, vale lembrar, se sua cabeça não é exatamente gentil com você — pouca gente hoje em dia tem a cabeça gentil consigo mesmo — isso pode ser bem pesado, e pode ser que pareça perfeitamente normal, quando não é.

Então temos que nos lembrar que quem inventou a regra pode mudar a regra. E, no caso, mesmo que pareça uma obrigação, em muitos casos ainda são regras que estão sob seu controle.

Eu já fiz isso com estudos, com escrita e com incontáveis outras coisas. Eu criava tarefas recorrentes, metas esdrúxulas e várias outras questões que começavam a me engolir, então eu culpava a mim mesmo por não cumprir essas expectativas.

Nesse momento, as reações das pessoas ao redor podem ou não ajudar. Em um ambiente com tendência a maior pressão, a autocobrança pode aumentar se as outras pessoas apoiarem as regras que você criou. E o oposto pode acontecer, também: em um ambiente onde suas regras são inconcebíveis ou incompreensíveis aos outros, não conseguirão te ajudar simplesmente porque você está operando em uma lógica de regras distante demais. Em casos, isso pode te ajudar a enxergar a flexibilidade das regras, mas também, dependendo das circunstâncias e da sua personalidade, pode aumentar seu apego a esses pontos como um meio de reforçar sua noção de identidade e estrutura.

Na prática, nenhuma convenção social existe na natureza. O que existe são as regras que as pessoas concordam em seguir, ou ao menos se acostumam e/ou se resignam. Mas é fato que mesmo essas são mutáveis, e geralmente só não o fazem porque há mecanismos sociais que impedem, incluindo até mesmo o fato de que as pessoas não querem.

Mas as regras que você criar são diferentes, mesmo que influenciadas por essas outras mais amplas. Mesmo que alguém se acostume a cobrá-las de você, enquanto elas forem internas, a decisão é sua.

Com isso, vale sempre pensar que, se algo está te fazendo sofrer, especialmente no sentido de trabalho, ou no que você sente que tem que fazer, é recomendado entender quanto do sofrimento poderia ser amenizado simplesmente se você escolhesse definir outras regras para o que você quer, para o que faz, e para o que é.

Pode ser bom ter uma meta de estudo, de escrita, de investimento de tempo em qualquer sentido, mas a partir do momento em que ela deixar de fazer sentido, a única pessoa a quem você responde, e que pode definir a regra, é você.

E aí entra o detalhe mais importante, o “pulo do gato” que, por ser ligado ao emocional, muitas vezes é mais estranho de notar: e se você estiver com uma sensação de fracasso, ou de estar se traindo, desistindo, ou sendo menor em qualquer sentido exatamente por isso? Bem, nesse caso, você vai ter que notar que, especialmente nos casos em que você definiu uma meta para você mesmo, também é você quem está atribuindo a sensação de valor e a cobrança que define esse sentimento.

Você criou a regra, você mede se acha que a regra faz sentido, e você é quem garante que a regra seja mantida. Você é juiz, vigia e executor. Mas você não precisa que esses três papéis sejam feitos para que você possa ter um quarto papel como vítima de si mesmo.

Lembrando, ter os três papéis não é um problema, e até te ajuda a ter mais disciplina. Mas disciplina não adianta se o sofrimento é maior que qualquer vantagem que se desdobre dela.

Saiba escutar a você mesmo, saiba ter respeito e seja feliz. Acredite, é bem provável que existe alguma coisa que você exige de você mesmo muito mais do que seria razoável.

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Rodrigo Ortiz Vinholo
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Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

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