Tratar números de Covid-19 pelo "Placar da Vida" é inútil

Rodrigo Ortiz Vinholo
7 min readSep 2, 2020

A maior parte das pessoas não é muito boa com números. Nós temos dificuldade de entender distâncias, quantidades, proporções, e a relação entre as coisas.

Por isso, acaba sendo fácil acreditarmos e reproduzirmos algumas bobagens. É aquela velha história sobre as pessoas acharem que uma tonelada de chumbo é mais pesada que uma tonelada de penas. Ou o clássico caso da internet, da pessoa que achava que se dois carros diferentes corressem a 80 km/h por hora, um passaria o outro porque era um carro melhor.

Recentemente, com a pandemia da Covid-19, apareceram várias outras questões numéricas que as pessoas não entenderam muito bem, e com os números sendo jogados de um lado para o outro, ficou fácil que as pessoas se confundam e que acreditem em qualquer bobagem que queiram acreditar, ou que seja relevante para alguém que acreditam.

Mas como diz o ditado: os números não mentem. Mas ao mesmo tempo, é muito fácil mentir com números ou se enganar, se você não olhar direito o que eles estão te dizendo. Por isso eu queria falar de algumas proporções que muita gente claramente não entendeu e olharmos juntos algumas das bobagens que andaram sendo ditas.

A primeira delas é sobre o número de curados. Já vi muita gente comemorando o altíssimo número de curados no Brasil, tratando isso como uma vitória imensa do nosso país.

Veja, antes que me acusem de qualquer coisa, vamos deixar claro uma coisa: é maravilhoso que as pessoas se curem. É excelente que existam pessoas que se curaram, mas esse não é um número bom dentro do consideraríamos bom em qualquer situação de mínima normalidade.

Pense comigo em um exemplo: um homem armado entra em uma escola. Lá dentro estão muita pessoas. Ele pega sua metralhadora e atinge mil pessoas.

Imaginou? Horrível, não? Agora imagine a imprensa dizendo algo como “Mil pessoas foram feridas gravemente, mas 900 sobreviveram e agora passam bem. As aulas devem voltar ao normal na próxima semana.”

Peraí, e as outras 100? Elas morreram? Elas estão em estado grave? E mais: um cara matou 100 pessoas! Por que isso não é apresentado como o ponto mais grave? E quem é o cara? E o que vai ser feito em relação e ele e em relação à segurança de todas as crianças e professores daquela escola e de outras escolas? E as 900 que foram atingidas por tiros, estão bem? Mas não é um problema enorme que elas tenham sido baleadas? Nós realmente devemos voltar às aulas na próxima semana?!

Entende o que eu quero dizer? Tratar as infecções por Covid-19 com foco em curas ignora o problema maior que é o fato que a infecção ocorreu, para começar. Que bom que essas pessoas se curaram, mas não é normal ignorarmos que elas se infectaram, e que há pessoas que morreram. A vida é importante, mas focar nesses números diz muito pouco sobre o problema.

Em qualquer outra situação, não haveria essa torcida pelo “placar da vida”. Basta olhar como lidamos com números de homicídios. Nossa conversa de sempre não é “tivemos 211,8 milhões de pessoas que não morreram por assassinato no Brasil em 2019"(1), mas sim “tivemos 41.635 vítimas de assassinato no Brasil em 2019”(2). O número menor sequer reflete no maior, mas não deixa de ser gravíssimo por isso, portanto não usamos o maior, que não nos diz coisa alguma.

Assim, trabalhar com o “placar da vida” é se enganar e enganar os outros. É desonesto, ou ao menos de uma ingenuidade completamente infantil.

O que nos leva a outro problema de proporção que se relaciona a esse: entender a proporção de infectados.

Alguém pode afirmar que é bom que tenhamos muitas pessoas curadas, mas se pensarmos que essas pessoas curadas foram infectadas primeiro, nós temos que encarar um problema: por que elas foram infectadas? Isso era ou não evitável? Esse número é grande, ou não?

Vamos fazer algumas contas, baseados em números mundiais da pandemia.(3) Veja a tabela a seguir:

Ela está orientada por número de casos. Nós estamos em segundo lugar em número absoluto de casos, o que é grave! Mas você poderia argumentar que isso acontece porque temos muita gente, certo? Bom, aí é questão de trabalhar todo mundo na mesma escala. Ou seja: calculamos com base em casos por milhão!

Melhor, né? Nem tanto. Nós ainda estamos em décimo-primero lugar em casos por milhão de habitantes uma lista que conta com 215 territórios.

Pense nisso sem sentimento nenhum, se possível. Se nós igualamos a proporção, nós continuamos em uma posição alta. Isso indica um problema, e se fosse apenas questão de tamanho de território ou de população, Guiana Francesa, San Marino e Aruba, todos com menos de um milhão de habitantes, não estariam acima do Brasil na lista.

Inclusive, se você quiser ordenar os países por ordem de população, tem gente com populações muito maiores que a gente e com números de casos muito mais baixos!

O que acontece se filtrarmos nossa tabela para examinar as mortes absolutas?

Nós voltamos ao segundo lugar.

E se filtrarmos em mortes por milhão?

Estamos em nono lugar.

Agora eu quero propor uma conta que não está nessa tabela, um outro ponto de vista como um desafio aos que adoram ver o “Placar da Vida”. Eu quero contar o número de recuperados em proporção a infectados totais. Puxei os dados e montei uma tabela no Google Sheets, que reproduzo abaixo.

Nós voltamos ao décimo-primeiro lugar. Nós já tivemos quase 2% da nossa população infectada. Isso, claro, pensando que nós estamos contando com casos que foram contabilizados. O número pode ser maior.

E se olharmos mortes?

Nós voltamos ao nono lugar, como nas mortes por milhão.

Agora, eu quero você note que eu fiz uma pegadinha com você. Eu fui propositalmente impreciso para você para que você veja o quão fácil é manipular com números. Esses dois últimos números que eu calculei não são mentirosos propriamente ditos, mas são imprecisos porque, ainda que sejam reais, diferente dos cálculos baseados em milhão, eles escondem as proporções populacionais.

Olhe aquele número ali de mortos. O país que mais perdeu pessoas perdeu pessoas proporcionalmente, por enquanto, foi San Marino. Sua população é de 33.943 pessoas. 0,12% de mortes, para eles, equivale a 42.

O Brasil tem 0,06% de mortos. Só que, para nós, o que parece ser “a metade da porcentagem” é milhares de vezes maior: 122.681 pessoas!

Qualquer comparação externa por porcentagem, nesse sentido, se torna falsa porque estamos falando de universos muito díspares. E mesmo se calcularmos nossa própria população, isso torna tudo muito vago.

É por isso que esses números não são usados em divulgações. Porque eles, assim como qualquer cálculo em cima de número de curados, maquia demais fatos importantes da realidade.

É por essa mesma lógica que os dados de curados dizem muito pouco, porque eles são vistos fora de qualquer proporção relevante à realidade do problema.

Sabe o que não tende a ser mentiroso? Igualar a base. Claro que se você comparar pandemias que estão em momentos diferentes sem considerar isso, você vai ter tendenciamento em algumas análises, mas para as visões que estamos trabalhando aqui, é o caminho menos problemático. Por isso os cálculos que devemos olhar são os com base em milhão. Porque eles estão falando de proporções, não interessando o quão pequeno ou grande cada um é.

Então já sabe: se alguém estiver tentando te entregar de bandeja algum desses números bonitos, entenda que estão querendo amenizar o problema. Nós já passamos por muitos problemas e ainda temos muito o que caminhar. Consciência, verdades, fatos e ciência nesse momento são tudo.

Fonte dos números mencionados acima, conforme indicações:

(1) https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/08/27/brasil-atinge-2117-milhoes-de-habitantes-diz-ibge.ghtml

(2) https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/02/14/numero-de-assassinatos-cai-19percent-no-brasil-em-2019-e-e-o-menor-da-serie-historica.ghtml

(3) https://www.worldometers.info/coronavirus/ — Para cálculos, foram utilizados os números referentes à data de 1/9/2020, quando este texto estava sendo escrito.

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Rodrigo Ortiz Vinholo
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Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

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