Sobre produtividade e criatividade
Estamos em uma crise: mais do que nunca, o fantasma da produtividade assombra todo e qualquer esforço criativo.
Artistas se tornaram proletários precarizados de suas próprias paixões, cobrados por expectativas sociais persecutórias, consciências opressivas e algoritmos fanáticos.
Se você não cria, você não existe. Se você não publica, você não merece existir. Se você não tem reconhecimento, sua arte é menor. Se você não tem público, você não é ninguém.
Guias, cursos e dicas de produção e técnicas criativas se dividem entre os que falam de habilidades ou tecnologias, e os que falam de jeitos de fazer as coisas mais rápido, de produzir mais, mais, mais.
O público quer mais, o tempo todo, e o sucesso significa ainda mais cobrança. Vencer no jogo significa ganhar uma dívida com aqueles que te levaram até ali através do consumo e da atenção. E não precisamos olhar muito longe para achar incontáveis exemplos daqueles que sacrificam saúde, tempo e sanidade por isso, bem como do público que, mesmo sabendo disso, ainda assim cobra como se o próximo gibi, livro, filme ou música fossem uma obrigação do artista, uma dívida de honra que poderiam exigir a qualquer momento. Há até quem sugira, direta ou indiretamente, a substituição do criador, desde que a obra, enfim, seja finalizada.
Na rabeira disso, o progresso tecnológico, dentre diversas vertentes, escolheu priorizar meios de desumanizar ainda mais essa mesma criatividade. Alimentando-se da arte — e de todos os seus elementos básicos — , inteligências artificiais permitem, enfim, aposentar o criador em favor da criatura. Fala-se de democratização da arte através dessas ferramentas, mas essa nasce da apropriação do que já existe de material artístico e não traz qualquer real acesso: ela só oferece a recompensa sem o esforço do aprendizado, da técnica, e do investimento de tempo. Ela só esvazia ainda mais de significado o rótulo de artista, sem sequer garantir que os que a utilizam o consigam ser.
Se você quer ser um desenhista, mas não quer desenhar, você realmente quer ser um desenhista? Idem para um pintor, escritor, cineasta… É compreensível o desejo do objeto resultante da produção artística, mas a dissociação dele do artista, ou a tentativa de atribuir o título a quem produz o material através de IA é questionável. É preciso buscar entender qual o objetivo da tentativa de se tornar um artista sem tudo que define ser um artista. Essa não é uma discussão apenas de mérito, esforço, sentimentos ou nomenclaturas, mas de intenções. E aqui surgem comparações do uso de diferentes tecnologias, mas cabe a separação básica: se você desenha no digital ou com materiais físicos, por exemplo, você ainda estudou, praticou e se aprofundou de modos diversos. A escolha de um atalho nos leva a pensar que quem espera se tornar artista com IA nunca quis ser um artista, para começar, mesmo que a opção estivesse disponível.
E mais, há de se questionar outras motivações. A arte, tão desejada por nós, tão importante para nossos dias e assuntos — raros são aqueles de nós que não consomem alguma música, série de TV, filme, livro, animação, quadrinho, teatro — , tão cobiçada e discutida, subitamente se torna um material de segunda classe, mesmo fora dessa discussão?
Existem, claro, os que simplesmente não se importam, por bem ou por mal. É atrativo poder produzir a arte desejada com um atalho tão efetivo. É divertido fazer um meme. E a distância do material de origem, massificado pela máquina e ignorando consentimento, chega sem o peso da culpa ao consumidor.
Em Hollywood, um dos grandes polos produtores artísticos do mundo, discute-se se a imagem de um ator pode ser utilizada sem sua presença, vivo ou morto. Discute-se se o roteiro de uma produção pode ser feito por uma máquina. Qualquer um de nós consegue entender o apelo não só da facilidade, mas da economia e do potencial financeiro, mas é difícil dizer se o insulto maior fica para quem é abusado por tais “soluções” ou por quem é o público-alvo do material produzido.
A produção inumana de arte artificial é apenas mais um passo de um longo processo de desumanização dos artistas e do que produzem. Faça mais, faça rápido, faça agora, faça antes que mais alguém faça, e cumpra tudo isso, ou você perde o jogo. Junta-se a isso, agora, o "nós vamos fazer roubando o que você fez, através de uma máquina."
A máquina, afinal, não cria do zero. Ela deriva de arte existente, em qualquer sentido da palavra, e ainda que se discutam soluções de remuneração ou discussões de direitos, não deixa de ser um roubo turbinado, de forma que nunca vimos antes.
Mesmo antes das IAs, já havia um problema, claro. Já estávamos fazendo piadas e danças no TikTok para vender livros. Já estávamos abordando qualquer tópico corrente para contar com a tão sonhada viralização no Twitter, Instagram ou sei lá mais onde. Artistas que já cuidam de tudo de suas obras, que já tinham que se transformar em vendedores, entregadores, gestores e mil outros papéis, passam a se obrigarem a ser mercadólogos, publicitários, atores, locutores e apresentadores.
Um artista, hoje, divide seu tempo entre produzir arte e produzir “conteúdo”, e nem sempre sobre a própria arte. O “mercado” se preocupa mais com quem é grande — ou estrangeiro — , quem já vendeu muito, ou quem é famoso por outra coisa e depois se torna artista como extensão de sua própria celebridade. Tenha fama online e você ganhará um papel em um filme, seja um político e você publicará um livro, apareça na TV e você terá um podcast, sem falar nos apadrinhados, filhos, amigos e parentes de quem já é do jogo.
Tudo isso é um problema, e tudo isso é maior do que qualquer artista individualmente. Soluções para o problema existem em incontáveis caminhos, desde políticas públicas até na decisão individual de apoiar pequenos criadores, bem como desestimular essas soluções que apenas sabotam a supostamente tão amada arte, em cujos operários o público consumidor tantas vezes não hesita em pisar. O básico é pensar que há uma linha tênue entre usar uma ferramenta e colaborar para que as pessoas se tornem ferramentas.
No dia 6 de dezembro de 2023, tive a honra de ser parte da premiação do HQ Mix, aqui na cidade de São Paulo. Desenhistas, roteiristas, coloristas, arte-finalistas, editores, promotores de eventos, jornalistas e mais incontáveis outros profissionais que fazem histórias em quadrinho existirem se juntaram (com convidados) para premiar profissionais e obras.
A premiação, bem como o mercado, estão longe de serem perfeitos. A baixa representatividade feminina, por exemplo, foi correta e repetidamente questionada, sem falar de outras questões que envolviam minorias. Apesar de tudo isso, havia ali muito sobre o esforço criativo, sobre a produção, sobre a arte, com uma legitimidade que o dia a dia e o “mercado” muitas vezes não permite que exista.
E não se engane, havia ali também a pressão por produção. Havia a consciência de que uma carreira consagrada naquele segmento passava por um reconhecimento do tipo. Mas havia, também, artistas falando justamente desses problemas, de como a arte não dava dinheiro, como necessitaram do apoio de outros e de iniciativas governamentais. E também de como eram pessoas sem tempo, ou que sentiam dores, ou sobre as perdas que sofreram.
Eram pessoas com famílias, sonhos, ganhos e perdas. Eram pessoas com medos e frustrações. Mesmo o melhor de todos ali também tinha problemas, e ninguém ali jamais será imortal, quem sabe através de sua obra, e muitas vezes nem assim.
Na plateia e depois no palco, recebendo meu prêmio pela minha participação na revista Café Espacial #20, acompanhando tantas histórias, me lembrei de algo que vinha pensando dias antes, que deixo de conselho para todos que se enveredarem nos caminhos da criatividade: não tente ser o artista que você quer ser, mas o artista que você tem tempo que ser.
Claro que eu vou incentivar todos a serem melhores, a fazerem o máximo que puderem, mas “o máximo que puderem” existe na realidade do tempo e do espaço. Existe nas nossas circunstâncias, no dinheiro que temos que ganhar, no trabalho que temos que fazer. Mesmo que a arte nos sustente — e isso é raríssimo, no Brasil e na época em que vivemos como um todo — nós ainda somos influenciados por essa cultura que nos diz que nunca é o suficiente, que tudo que fazemos precisa de mais estímulo, mais movimento, mais entregas, mais engajamento.
Nós nunca seremos do tamanho que essa ambição inflada e irreal sugere que devemos ser. E tudo bem. Não seria normal, viável ou, ao menos, sustentável.
E se isso for frustrante, e eu sei que é, ao menos mantenha em mente que você precisa de sua saúde e sanidade para combater o que quer combater, e para dizer o que quer dizer. O sofrimento certamente inspira a arte, mas não se produz arte quando não se tem tempo porque se está sofrendo.