Sobre jovens e inteligência

Rodrigo Ortiz Vinholo
5 min readJan 15, 2025

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"A escola da vila em 1848", Albert Anker (1831–1910)

Há um tempo, andei observando uma mania estranha que anda rolando com as gerações mais velhas: a ideia de falar que as novas gerações estão menos inteligentes. Sim, eu sei que sempre há conflitos geracionais, e que sempre vai ter aquela conversa do “no meu tempo…”, mas não é só isso.

Se a gente parar para ver, em uma pesquisa rápida no Google, a fonte referenciada para a maioria dos que afirmam uma suposta queda de pontuação de QI nas novas gerações aparentemente deriva de uma entrevista com o neurocientista francês Michel Desmurget, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França.

De acordo com Desmurget, em seu livro, novas gerações teriam tido impacto no QI por conta do uso excessivo de redes sociais e outras questões, e ele mesmo deixa em aberto que podem existir outros fatores como, por exemplo, poluição.

Eu não vou tentar refutar Desmurget, tanto porque não tenho conhecimento de causa, quanto porque não é meu objetivo aqui. O que eu posso apontar, antes de continuarmos, é que ele para ter se tornado a referência principal para essas conversas, mesmo que a matéria seja de 2020.

Se você buscar agora sobre essas questões de QI, vai ver referências para essa tese da queda, e outras que falam que o QI tende a crescer naturalmente nas novas gerações e, por vezes, há fontes que afirmam que diferentes tipos de inteligência mudam com o tempo. Novas demandas guiariam a evolução nesse sentido.

Ou seja, temos diferentes teses paralelas, mas um foco desproporcional em uma delas. Aqui que já começou minha suspeita. E mais: há questões que entram na conta como a pandemia e incontáveis questões socioculturais que afetam inteligência em diferentes sentidos e que são aparentemente ignoradas nesse argumento das novas gerações. Países com mais pobreza tendem a ter médias de QI mais baixas. A própria medição do QI como método é questionada por muitos por vários motivos… mas estamos saindo do ponto principal da conversa.

A questão maior é: existe uma insistência grande de gerações anteriores nesse sentido, que parece ter se intensificado. Me parecem existir três grandes pontos de discussão peculiares, aqui:
1- Conflito geracional/cultural
2- Noções educacionais
3- Vida digital

As novas gerações não têm os valores das antigas, sofrem com problemas socioeconômicos diferentes, e acabam, assim, tendo novas prioridades. Isso é visto como “burrice” pelos mais velhos, mesmo que seja complicado afirmar que seja. É uma ideia estranha, mas nem de longe inédita, de “o jovem é burro porque não pensa como eu”.

Parece exagero tentar minimizar a questão apontando que seja uma questão de ego, mas… me parece que isso pesa MUITO. E aqui entram também as questões de educação. Não falta, especialmente entre os mais conservadores, um tanto de alarmismo sobre o que ocorre nas escolas.

E aí soma-se questões geracionais e educacionais. Puxa-se a escola “das antigas” para referência como “cura” para os problemas atuais. Culpa-se a “cultura woke”, seja lá o que isso quer dizer e seja lá como isso se conecta com o resto. Culpa-se, ainda, uma noção de “coitadismo”, “vitimismo”.

E é aqui que eu mais suspeito dos objetivos dessa conversa toda: as mesmas pessoas que focam nessas supostas diferenças de inteligência são as mesmas, geralmente, que focam em uma diferença de valores. A preocupação/acusação já soa enviesada. E discretamente, quando o assunto entra em valores, não se fala mais de inteligência, mas tratam-se as duas coisas como sinônimos.

De novo, a mensagem por baixo de tudo é “essas pessoas não têm os mesmos valores que eu, portanto elas devem ser BURRAS”. E isso volta a ser uma questão mais política e de pertencimento do que qualquer coisa.

(Ah, e sempre tem quem culpe Paulo Freire que, vale lembrar, não é aplicado para crianças)

E aí chegamos no terceiro e último ponto: a relação com a vida digital, e é aqui que o bicho pega. Há um alarmismo sobre os excessos digitais dos jovens e, ainda que exista, sim, muitos cuidados a serem vistos nisso, há um outro ponto para lembrar: TODOS NÓS ESTAMOS MAIS DIGITAIS.

Ano após ano, todos nós estamos mais na internet, mais ligados a redes sociais, e espalhando nossos vieses por aí. E aí chegou ao ponto da evolução digital que nossos conflitos geracionais se somam também ao modo como consumimos conteúdo digital. E então o excesso de telas como um fator de emburrecimento focado é… questionável.

Todos nós temos excesso de telas, ao menos em uma comparação histórica. E o uso de redes sociais é presente em 98,9% do uso de internet dos usuários brasileiros entre 16 e 64 anos. Podemos falar que os jovens passam mais tempo online e nas redes? Sim, MAS o viés aqui me parece grande em tratar redes sociais e vida digital como um fenômeno jovem, o que não é verdade. É só olhar os números e, em fenômenos mais simples, o WhatsApp substituindo interações sociais de TODOS.

E aí, se você vai pesquisar sobre essas questões de QI, há indícios de veículos apresentando teses que culpam a educação, a internet, e os jovens por tudo de errado no mundo antes mesmo de 2020. Ou seja… toda essa abordagem me parece pretexto. Seja de caso pensado ou acidentalmente, isso virou uma pauta de longa duração para desacreditar o jovem, o sistema educacional brasileiro e/ou empurrar uma tese pessimista.

Isso não quer dizer que não temos problemas. Seja de nível de atenção, de interesse em estudos, de perspectivas para o futuro, de relações psicológicas diversas… Há um tanto para revermos sobre educação, sobre nossas relações com redes sociais e vida digital, e preocupações legítimas sobre nossos futuros… mas há de se questionar: esse foco que se vende do “jovem burro” é um ponto legítimo, ou ele atende interesses estranhos? O jovem está realmente burro, ou nós que estamos inseguros? Ou, ainda, se o jovem está burro, temos certeza que ele está burro sozinho?

O foco desproporcional em conservadorismo nesse ponto me parece suspeito, ainda mais aliado a tantas teorias de “doutrinação” que, francamente, não encontram base na realidade, ainda mais com um país (e um mundo) extremamente conservador em tantos aspectos.

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Rodrigo Ortiz Vinholo
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Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

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