Sobre gotas, copos, palhas e camelos
Apesar de ser uma característica básica da existência humana, nós temos muita dificuldade em entender e lidar com o cansaço, em todos os sentidos do termo. Quando chega a proverbial gota d’água que transborda o copo, ou a proverbial palha que quebra as costas do camelo, nós nem sempre percebemos como a situação chegou a tal ponto.
Parte disso parece vir de nossa própria percepção do tempo. Nós conseguimos perceber o cansaço de um dia muito bem. Mas aí chega a noite, o período de descanso, e acordamos no dia seguinte, em circunstâncias normais, ao menos um pouco recuperados. Se o sono não foi o suficiente, ou as dificuldades e esforços foram maiores que o normal, nós estaremos conscientes disso, e das diferenças que essas coisas trazem ao nosso corpo e humor.
Conforme os dias passam, dentre cansaço e descanso, essa percepção pode se tornar mais difusa. Em uma semana, nós podemos não lembrar que, dias antes, não descansamos tão bem. Em um mês de resultado inconstante, talvez sintamos um cansaço geral, ou talvez não. Como o proverbial (tem muitas coisas proverbiais, aqui) sapo na panela de água quente que não nota que a água vai esquentando aos poucos, pode começar a não ficar tão claro quanto é nossa disposição habitual, se estamos com um cansaço de longo prazo.
E aí, você começa a ver que está se estressando mais. Que tudo é mais difícil, que você está cansado. E você olha isso com certa confusão, porque sabe que está descansando, que está fazendo o que pode, ignorando que o seu cansaço não é de um dia, dois, uma semana. É fácil de esquecer, na bagunça da vida.
Então algo mais difícil acontece, e lá está ela: a gota d’água que transbordou o copo, que derrubou a palha, que quebrou as costas do camelo, que caiu em cima do sapo cozido. Tudo vai abaixo.
Tudo isso, claro, é metafórico, falando sobre situações reais. Mas também poderia ser metafórico, sobre situações metafóricas de outros tipos de cansaço. Diversas situações de estresse crônico se parecem com essa. Vários caminhos que levam ao burnout passam por essas rotas. Não faltam histórias do tipo.
Não é incomum que simplesmente esqueçamos de descansar, porque o estado de não-descanso e de cansaço (note que são coisas diferentes) se tornam perpétuos. Nós podemos nos acostumar com todo tipo de coisa, enquanto o que acontecer conosco não nos impedir de funcionar ou nos matar de vez. Só que a explosão, a queda, o momento de ruptura raramente é um que notamos, exatamente por isso.
Geralmente, depois que acontece, com a perspectiva, nós conseguimos ver claramente que estava prestes a acontecer. E aí conseguimos traçar o histórico do cansaço, dos eventos que nos levaram até ali. Talvez reconheçamos que estávamos em negação, que era óbvio que o problema já existia. Talvez atestemos que estávamos, por um motivo ou por outro, incapazes de perceber. Acontece.
O que fica claro, também, é que o estopim não é o culpado por tudo. Muitas vezes, no caso, o evento que acaba com a estabilidade precária que tínhamos é pequeno. Basta que ele seja diferente o suficiente da dinâmica habitual. Basta que nos importemos o suficiente com ele, para o cansaço ser maior, e aí tudo que está acumulado finalmente nos alcança.
É uma sensação engraçada, porque tentamos, nesse contexto, combater esse último inimigo. Pensamos que, se não fosse ele, conseguiríamos continuar conduzindo nossas vidas. Não fosse ele, estaríamos em paz. É possível, até, que romantizemos a pior das situações, porque ela ao menos parecia mais estável e segura do que o que acontece depois do desequilíbrio.
Mas é aí que está o ponto: é raro não percebermos o padrão. Nós podemos ou não admitir, mas é raro, nessas horas, não entender o que houve. Não há nenhum fator mágico, aqui. Nenhuma revelação. Nós somos perspicazes o suficiente para isso.
O que nos leva a certas reflexões. A primeira é sobre o descanso. Sobre o que fazemos para compensar o cansaço que se acumula. É fato que, comumente, nós levamos vidas que não nos permitem descansar tanto quanto gostaríamos ou deveríamos, mas o mais comum é que nós mesmos impeçamos nosso descanso. Porque nós, de novo, não sabemos lidar com o tempo, e nos perdemos em nossas referências confusas, ou pensamos que o cansaço pode esperar para o futuro, como se ele fosse um pagamento parcelado, e não algo que já está com todo peso sobre nós.
Grande parte disso, claro, é uma pressão social externa. Nós estamos em um mundo com uma lógica focada em performance, em resultados. Não é incomum que o cansaço seja ligado a uma sensação de falta de produtividade, e essa a uma falta de significado.
Outra grande reflexão é sobre a natureza do que cansa, e sobre a natureza do estopim. Toda ação que fazemos usa um tanto de energia. A teoria das colheres (“Spoon theory”), criada e popularizada pela blogueira Christine Miserandino explica o modo como as pessoas que sofrem de doenças crônicas lidam com os próprios níveis de energia.
Resumindo muito, ela afirma que uma pessoa nessa circunstâncias tem um número limitado de unidades de energia (colheres) para fazer atividades a cada dia, então cada ação que é feita usa uma dessas. Se uma pessoa tem poucas, o dia inteiro é pautado com muito mais cuidado e pouco espaço para imprevistos. Assim, muitas vezes fazer algo como ter uma refeição é uma decisão complicada, porque cozinhar vai levar uma colher, e comer levará outra. Se essa pessoa só tivesse mais uma unidade de energia depois, estaria limitada no que fazer. Um banho, ou se preparar para o dia seguinte, poderia estar fora de cogitação.
Não ousaria comparar a situação de uma pessoa fisicamente apta com quem tem doenças crônicas que geram fadiga, nem com outras situações similares, mas a percepção de energia dessa forma é educativa para todos, justamente porque ela leva consciência a essa limitação. Nós sempre achamos que "ainda dá para fazer um pouco mais" justamente porque não sabemos mensurar bem nossos níveis de energia e quanto cada atividade "custa".
Se você está cansado, tarefas serão mais difíceis de fazer, porque sua disposição e habilidades não estarão nas melhores formas, ou porque, se elas exigirem energia, você terá menos disponível. E isso gera um ciclo, porque se estamos falando de um cansaço de longo prazo, isso significa que cada vez mais as coisas simples ficarão mais e mais difíceis, mesmo que elas aparentemente não mudem. Você vai começar o dia com menos "colheres", e vai enfrentar um custo de colher por atividade maior do que o normal.
Enfrentar coisas que são difíceis, que não gostamos, que nos ofendem ou que são naturalmente trabalhosas, gasta mais energia. E essa exigência pode ser maior do que as unidades de energia, do que as colheres que temos. Então você se vê na obrigação de pagar essa taxa de energia e simplesmente não tem o suficiente.
E aí, a partir disso, o que nos resta? Eu poderia simplesmente afirmar que a lição do dia é que descanso salva vidas, mas se você é como eu, provavelmente já ouviu as pessoas falarem para você descansar, ou disse para você mesmo(a) e não adiantou. Claro, meu conselho é, sim, que aprendamos a descansar, mas eu quero falar sobre outra coisa.
Primeiro, eu quero que entre na sua cabeça que o copo só transborda porque ele já está cheio. Segundo, eu quero que entre na sua cabeça que o camelo só quebra as costas com a palha porque ele já está sobrecarregado.
Nós precisamos de descanso. Precisamos de compensação. Precisamos de distração. Não existe ser humano que não precise de nada disso, por mais que queiramos sonhar que isso é viável. O que mudam são os formatos, as abordagens, os detalhes de preferências. E, também, os níveis. Nós não temos todos o mesmo número de colheres.
O grande erro de boa parte das pessoas que dizem que descanso é o suficiente, é que elas caem nas confusões temporais que falamos acima, e generalizam o funcionamento de todos os humanos da mesma forma. Elas estão pensando em dias, talvez em semanas, mas dificilmente em meses e anos. E, sim, é possível acumular anos de cansaço. O sapo pode ficar na panela por muito, muito tempo, até esquecer que é um sapo na panela.
Não há uma solução para isso além de observação, seja dos outros ou de você mesmo. Claro que um acompanhamento médico é importante para entender se há algo de errado com você, mas, não havendo (ou mesmo que haja), só você vai conseguir mapear seus limites. Ver os outros como referência, aliás, não é para copiarmos ou nos culparmos, mas sim para permitir que façamos comparações, e entendamos justamente onde estamos em uma escala com referências externas, já que é fácil nos perdermos em nós mesmos. Se você vê um sapo em uma panela mais quente, ou um que não está em uma panela, você consegue perceber sua situação com mais clareza.
Há, finalmente, um aprendizado que podemos tirar da natureza do que nos cansa e, em particular, no que nos tira do sério. Uma pessoa gasta mais unidades de energia (ou colheres, ou humor) do que outras em determinadas atividades, e vice-versa. Muito disso tem relação com habilidades e afinidades: é muito mais cansativo fazer algo que você não sabe bem, ou tem medo de fazer, ou simplesmente odeia fazer. Tem gente que pode limpar uma casa inteira sem gastar muita energia, mas se desgastaria por uma hora de trabalho com planilhas financeiras.
Um tanto disso, também, ocorre por relações emocionais, mentais e morais que temos com as coisas. O modo como nos importamos com as coisas é um dos grandes fatores que influenciam nosso cansaço. E, às vezes, existem coisas que podem não fazer sentido para ninguém, mas fazem para nós.
Aqui cabe uma ressalva importante: por vezes, nós podemos ter a pior interpretação de algo, ou nos importarmos demasiadamente com algo, até mesmo nos ofendermos, mas isso não significa que, apesar de tudo que sentimos, estamos certos por isso. Às vezes, sequer é nosso direito nos envolvermos da forma como estamos nos envolvendo com algo.
A solução para essa ressalva é em parte simples, em parte complicada. Uma análise saudável e lógica, com ou sem apoio psicológico, pode nos apontar onde estamos nos importando demasiadamente com algo sem termos esse direito. Não faz sentido, por exemplo, nos ofendermos com a existência de uma pessoa, de algo, ou de uma ideia, porque, no fim, estamos apenas agredindo a nós mesmos por conta de algo que existe e que não irá mudar. Aprender essa correlação pode ser racionalmente simples, mas emocionalmente complicado.
Só que o ponto todo é que, no fim das contas, nós nos importarmos com algo de alguma forma nunca é culpa do objeto com que nos importamos, mas nossa. Uma ação feita sem nos afetar, por pior que pensamos que seja, não é um ataque contra nós. E mesmo algo que nos afete, direta ou indiretamente, não por isso é um ataque.
É comum que pensamos que nossas relações, por intimidade e/ou longevidade, nos garantam certos direitos sobre a outra pessoa, as ações dela, as informações que compartilham e mais. Mas isso não é verdade, por mais que possam existir convenções nesse sentido. Cobrar a outra pessoa por algo que ela nunca se comprometeu a fazer por conta de sua própria régua de expectativa é insalubre para todos os envolvidos.
E aí que vem um ponto importante: do mesmo modo que a preocupação inicial não precisa se justificar, a gota d’água ou a palha não necessariamente são razoáveis, nem fazem sentido para o resto do mundo. E pode ser que, por isso, não seja possível fazer nada contra ela, justamente porque não faz sentido tratá-la como um problema, ou mudar coisas que afetam outras pessoas, apenas porque você tem um problema.
Agora, vamos fazer um exercício: troque todo esse conceito de cansaço físico e psicológico que falamos até aqui e trate para o cansaço do desgaste de um relacionamento humano. Todas as mesmas regras se aplicam: se uma relação nos desgasta, nós podemos chegar em um ponto culminante, e igualmente podemos durar muito tempo com ele sem notar o problema. E, claro, há o caso de que aquilo que nos desgasta e com que nos importamos não faça sentido para outras pessoas.
É até mais comum e fácil pensarmos nesse tipo de cansaço. Todos nós têm exemplos de relacionamentos, em qualquer sentido, que foram desgastados. Podemos apontar como a outra pessoa foi horrível de um modo ou de outro, e, talvez, mas nem sempre, consigamos apontar nossa responsabilidade em se importar com uma coisa ou outra.
Nesse contexto, vale a mesma autoanálise, com ou sem ajuda externa, com a diferença que, aqui, há a chance de se comunicar. Se você fala com a outra pessoa antes que a gota d’água chegue, e tenta se fazer entender e entender o lado dela, há alguma chance que algo se resolva. Ou talvez não, mas ao menos você fez isso. E aí, como diz a expressão popular, “atura ou surta”. Ou você entende que algo não vai ser do jeito que você quer e se adapta de acordo, ou você deixa que isso se torne a gota d’água. Nos dois sentidos, no fim, a escolha e a culpa são suas.
Ou seja, nada impede que você se pareça uma pessoa louca, dramática, mesquinha e completamente sem sentido, quando a gota d’água de uma situação — no seu ponto de vista — finalmente chega. E é possível que seja.
O cansaço pode ser amenizado ou “curado” com descanso. O cansaço de relacionamentos, de certo modo, também. Conversa, distância e perspectiva ajudam e, em caso de diferenças irreparáveis, distância definitiva pode ser uma opção. Pode ser triste, mas pode acontecer.
O cuidado que sobra reside em como você faz isso, claro. Se você está jogando toda a responsabilidade do seu estado emocional na outra pessoa, lamento, mas você se colocará em um jogo automaticamente perdido.
Na dúvida, depois de uma boa noite de sono as coisas tendem a ficar um pouco mais claras. Ou depois de algumas, dependendo do tanto de cansaço acumulado que você tem.