Sobre estátuas e homenagens
Que tal uma estátua homenageando o coronavírus?
Já pensou? Uma bolona de pedra em um pedestal, majestosa e terrível com seus espinhos de proteína, como uma mamona nascida de pesadelos. Colocaríamos ela em algum lugar bem chamativo, como a Avenida Paulista, em São Paulo/SP, onde todos os dias passam milhares de pessoas.
Se você viveu a pandemia como qualquer outra pessoa minimamente consciente, entendo que a proposta deve soar esquisita, certo?
Homenagear um vírus mortal, ainda mais em um lugar que teve tantas vítimas quanto o Brasil é algo de péssimo gosto — apesar de representarmos pouco menos de 3% da população mundial, nós acumulamos cerca de 11% das vítimas totais da doença — e entendo que mesmo o negacionista mais ferrenho diria que é absurdo sequer pensarmos em algo assim.
Podemos buscar, então, outras homenagens que façam mais sentido. Creio que todos concordariam que representar os profissionais de saúde seria uma boa escolha. Alternativamente, lembrar das vítimas, ainda que seja uma abordagem mais melancólica, poderia ser útil pelo impacto, e para que lembremos de não deixar que essas vidas tenham morrido em vão. Se quisermos algo mais amplo, poderíamos fazer uma peça artística falando sobre o conjunto de esforços de saúde, sobre o trabalho de isolamento — mesmo que praticamente nenhuma cidade do país tenha feito um lockdown decente — ou simplesmente elogiando as vacinas.
Faz sentido, não? Eu não duvido, aliás, que nos próximos anos, conforme nos recuperamos desse tempo estranho e passamos a ter uma vida no famoso “novo normal”, ideias como essas surjam e passem a ser pontos de referência em algumas cidades ao redor do planeta. Estátuas lembradas com certo sabor agridoce da lembrança da perda, dos dias difíceis. O próprio Senado já fez um memorial nesse sentido.
O modo como isso faz sentido para nós explica o que nós estamos acostumados a esperar de estátuas, esculturas e homenagens públicas diversas. Creio que se fôssemos fazer uma listinha de funções para esses objetos de arte, ela seria mais ou menos como essa abaixo, que não considera nenhuma ordem de prioridade em particular:
- Valor artístico e/ou estético — É bonita, interessante ou chamativa? As pessoas gostam de olhar para isso? É o que consideramos arte, de alguma forma?
- Relevância sociocultural — Ela representa algo que é importante para o nosso povo, seja uma pessoa, objeto, elemento natural, elemento religioso, elemento filosófico ou qualquer outro conceito relevante?
- Relevância histórica — Ele é importante para relembrar algum evento específico, ou momento da história?
- Relevância emocional — Ele homenageia algo que é caro para as pessoas? Ou que lhes traz uma tristeza que querem evitar? Ou algo de que se orgulham?
- Preservação de patrimônio — Mesmo que possa não fazer muito sentido, a obra é representativa por ser antiga e de algum modo caracterizar o local, ou ter agregado importância além de seu significado original, talvez sendo algum tipo de referência?
Notem que, desses quatro pontos que levantei, ficam implícitos alguns outros pontos.
- Nenhuma estátua ou homenagem deve ser feita propositalmente para não ter valor artístico ou ser feia, exceto de a mensagem que ela quer transmitir peça isso;
- Nenhuma estátua ou homenagem deve existir sem contexto que faça sentido para o local em que ela é colocada. As pessoas devem minimamente entender o que é retratado, e algo que não corresponda àquele espaço será entendido como algo que invade;
- Nenhuma estátua em espaço público homenageia algo que as pessoas odeiem. Não há espaço para inimigos, para derrotas. Se um evento demonstrado foi trágico, trabalha-se a dor da perda, não a vitória do outro.
Vale ressaltar, também, que os pontos negativos são o suficiente para anular qualquer ponto positivo. O valor artístico de uma estátua em homenagem a um massacre não é suficiente para que aceitemos um massacre. A beleza de uma homenagem a um estranho completo não é o suficiente para aceitarmos que ele seja homenageado se ninguém ali o conhecer. A melhor estátua do homem mais odiado, ou a pior estátua do homem mais amado, dificilmente serão aceitas sem reclamação, em um espaço público.
Volto a perguntar: faz sentido, não? Afinal, nós não elogiamos as bombas Little Boy e Fat Man, que caíram em Hiroshima e Nagasaki, mas sim as vítimas das explosões nucleares. Também faz mais sentido que elogiemos as vítimas do Holocausto, e não Adolf Hitler ou qualquer um de seus comparsas. O memorial do 11 de Setembro não mostra aviões se chocando contra prédios, mas a ausência das construções e os nomes das vítimas. Céus, mesmo em estátuas religiosas, nós não representamos os soldados que crucificaram Jesus, ou Pôncio Pilatos lavando as mãos: nós colocamos o próprio, seja crucificado ou vivo! Não é difícil.
Agora, eu quero que vocês observem um ponto na lista de funções de estátuas, logo acima: notaram que eu não coloquei em momento algum algo como “relevância educacional”? Isso foi proposital.
Estátuas não permitem contexto o suficiente para serem meios de comunicação de ideias complexas. Elas capturam a essência, um resumo de um acontecimento, grupo, pessoa, conceito ou seja lá o que for. Elas complementam, ou refletem, uma informação que é transmitida de modos mais complexos através de aulas, livros, museus, memoriais e, claro, através da internet, hoje em dia.
Se um alienígena sem qualquer informação sobre a Terra visse o Cristo Redentor, ele vagamente teria a informação de que aquele homem barbado parece ser importante. Ele não saberia quem é Jesus, ou o que é o cristianismo, até que alguém se desse o trabalho de explicar, e mesmo assim ele poderia demorar para ter todo o contexto da religião no nosso planeta.
Em um exemplo mais simples, podemos supor que qualquer pessoa estrangeira que caminhe por nossas ruas e veja nossas homenagens vai supor que, se imortalizamos alguém em pedra e exibimos em um espaço público, essa pessoa foi minimamente importante para nós. E essa pessoa nos visitando pode ou não procurar mais informações sobre quem está lá.
É por isso que, repito, nós não colocamos o criminoso, mas o crime ou as vítimas. Ou os sobreviventes. Ou aqueles que, sem dúvida, fizeram algo de bom. Porque o resumo da estátua é inseparável da função dela como homenagem.
Com isso tudo em mente e a suposição de que concordamos mais ou menos com tudo que foi dito até agora, eu quero separar duas notícias recentes e refletir um pouco com você, que está lendo.
O período da pandemia, além de muitas mortes e doenças, também não foi sem alguns tumultos políticos. Dois deles, passados na cidade de São Paulo, giraram em torno de estátuas e de nossa relação com elas.
O primeiro foi quando, em 24 de julho de 2021, um grupo de manifestantes colocou fogo na estátua do bandeirante Borba Gato. O segundo foi em 15 de março de 2022, quando a estátua de outro bandeirante, Anhanguera, teve a mão suja de tinta vermelha. Você que lê já deve ter uma ideia do caminho que esse texto irá seguir, certo?
Para que não haja dúvidas, eu vou ser bem claro, aqui: por mim, tanto Borba Gato quanto Anhanguera poderiam ser dinamitados. Ou, se não for o caso, poderiam ser levados a algum museu ou depósito. Nenhum dos dois têm espaço em praça pública, e se todo o texto acima não foi justificativa o suficiente, eu vou explicar a minha visão, correndo o risco de ser um pouco repetitivo.
Vamos partir dos motivos por que nós poderíamos ou deveríamos conservá-los ali, que tal? Vou me basear no que eu li e ouvi, em cada uma dessas polêmicas, e ainda vou apresentar alguns argumentos que acho discutíveis.
“A disponibilidade dessas estátuas é importante para a educação. É através delas que conhecemos nossa história.”
Falso, pelos motivos que já mostrei antes. Nenhuma das estátuas fornece muito mais informações do que suas imagens, e nenhum dos dois personagens são ignorados pela nossa educação nas escolas.
Mesmo se decidíssemos que não falaríamos mais deles em sala de aula, achar que a referência deles na cidade é representativa de qualquer esforço de incentivo educacional é equivalente a achar que todas as pessoas que moram em São Paulo sabem a história de São Paulo. E falo sobre o santo, mas também podemos dizer o mesmo sobre a cidade.
Essa é apenas uma desculpa conveniente para manter as estátuas, porque se falamos de educação, e de ajudá-la, e de evitar que seja prejudicada, nós sentimos que estamos mexendo em algo importante.
“Estátuas como essas representam um registro, e tentar escondê-las é uma tentativa de falsear a história do Brasil.”
Não representam. As duas são simplificações e idealizações das duas figuras. A presença deles é mais falsificadora da história do que a ausência, exatamente porque tenta passar uma imagem heroica e bidimensional dos dois, do que fizeram, do que representaram, e de seus aliados e motivações, em nome de uma ideologia específica.
“Estátuas não tem ideologia.”
Tem sim. Tudo tem ideologia. Por que Borba Gato e Anhanguera não são representados cobertos com o sangue de suas vítimas? Por que tivemos puxa-sacos que foram limpar as estátuas, depois de cada um dos “ataques”, e eles demonstravam abertamente seus posicionamentos políticos, ao fazê-lo?
Há uma escolha consciente em mostrá-los daquele jeito.
“Ainda assim, é inegável que as estátuas apresentam valor histórico, mesmo que seja sobre a visão de uma época, ou ao menos como patrimônio histórico e artístico.”
Essa eu vi muita gente falar, e é aquele momento em que vemos que a pessoa que afirmou está falando isso simplesmente porque é um argumento fácil.
É super legal defender o patrimônio histórico, ainda mais em um país como o nosso, que tem muita dificuldade em fazê-lo. Soa justo, nobre, desinteressado. Soa bonito de verdade.
Eu não duvido que muitos dos que falaram a respeito disso não fizeram por mal. Mas eu sei que muitos só tentaram isso como uma cartada de superioridade. É conversa para boi dormir.
Basta olhar o histórico dos dois. Borba Gato, o bandeirante paulista, nasceu em 1649 e morreu em 1718. A estátua em sua homenagem começou a ser construída quase 250 anos depois, em 1957 e só foi concluída em 1963. Já o Anhanguera nasceu em 1672, e morreu em 1740, e o Monumento à Anhanguera, foi inaugurado em 1924, pouco menos de 200 anos depois.
Ainda que o que chamamos de patrimônio histórico no Brasil muitas vezes não seja lá tão antigo, em uma comparação global, entendo que seja dar muito o braço a torcer querer usar a cartada de “patrimônio histórico” com algo tão recente, especialmente quando não temos o mesmo critério com outras obras.
Com Anhanguera, a desculpa até cola um pouco mais, mas há um ponto, aqui: a estátua só foi transferida para a frente do Parque Trianon, onde segue até hoje, 11 anos depois da sua inauguração. Antes disso, ela ficava nos jardins do Palácio dos Campos Eliseos.
Ou seja: não há nada que nos obrigue a mantê-la ali. Se temos a desculpa de imobilidade com Borba Gato, ela não cola para Anhanguera. Se somos tão apegados assim a homenagens a pessoas horríveis, ou amantes intensos das artes, pois bem, levemos as duas para museus!
“Mas nós devemos mesmo esconder, ou destruir pontos importantes da nossa história?”
Nenhuma das duas obras são essenciais à história da arte. Nenhuma das duas obras são essenciais à história do Brasil. Já estabelecemos que elas não comunicam nada além de uma homenagem a esses dois homens e a ideologias bem específicas que estão implícitas na criação, manutenção e defesa dessas estátuas.
Há quem diga que uma solução seria colocar uma placa contextualizando cada obra, mas eu acho isso insuficiente, tanto porque a placa é menos acessível que a estátua, quanto porque é também limitada. Ou você acha que todos ficariam confortáveis com uma placa contextualizando os dois realmente contando todos os crimes?
“Mas nós devemos lembrar das pessoas que foram importantes para nossa história, apesar de não concordarmos com tudo que elas fizeram.”
Não, não devemos. Não enquanto o meio de lembrança for uma homenagem.
Se formos entender as estátuas como homenagens, temos duas opções: ou são homenagens sinceras a assassinos e ladrões, em que os exaltamos por isso, ou são homenagens insinceras, em que fingimos que eles não fizeram o que fizeram, e só trouxeram coisas boas. Ambos os casos envolvem descartar o que chamamos de moralidade, ainda mais porque mesmo se quiséssemos ignorar todos os crimes que cometeram contra indígenas, cada um dos dois também teve outros crimes consideráveis na ficha corrida.
“Ah, mas e o descobrimento e a formação do Brasil…”
Volto ao começo do texto: nós não homenageamos o modo como o coronavírus transformou o Brasil, e nem faremos isso no futuro. Não é desse jeito que funcionam homenagens.
É claro que nossa história não seria a mesma sem eles, e não estaríamos aqui, em mais de um sentido dessa expressão, mas isso não é um mérito, simplesmente porque você gosta de existir.
Se eu dou um tiro na cabeça de uma pessoa, e um médico aproveita os órgãos dela para salvar três vidas, eu não sou um herói por ter dado um tiro na cabeça da pessoa.
Mesmo que fosse (e não é) incontestável e calculável que a ação dos bandeirantes trouxe benefícios maiores que tudo que foi roubado, desmatado e todas as vidas que foram tomadas, isso não os torna bons, nem a ação deles moral, e muito menos perdoável ou ignorável.
Se fosse assim, estaria justificada a estátua do coronavírus como uma mamona mortal, perfurando idosos e crianças, porque o Brasil como conheceremos se desenvolveu a partir disso.
Esse é o ponto: tirar estátuas de bandeirantes de espaços públicos não é apagar quem foram os bandeirantes, mas apagar quem eles não foram.
E se coloque no lugar dos indígenas. Pense que há estátuas dos assassinos dos seus antepassados e da sua cultura, dos invasores e ladrões que cometeram todo tipo de brutalidade contra os seus. É difícil insistir nesses argumentos de defesa do papel histórico de bandeirantes sem cair em caminhos que quando não cheiram a racismo, são diretamente racistas.
“Mas é contra a lei depredar, pichar, ou destruir essas estátuas.”
Façamos com que esteja na lei, então! Se a lei permite que uma homenagem a homicidas continue em pé, a lei está errada.
Eu também poderia argumentar que as pessoas que foram limpar as estátuas podem não ter equipamento adequado para fazê-lo e poderiam danificá-las por acidente. Mas isso não foi uma preocupação para ninguém.
“Mas as estátuas sempre estiveram ali antes da maior parte de nós nascermos! Por que querer mudar agora?”
Já estabelecemos que isso é mentira para várias pessoas vivas, ao menos no caso de Borba Gato. Em seguida, também vale o questionamento: nós mudamos a cidade inteira sem usar esse argumento. Por que, aqui, ele surge? E por que algo que deveria ser visto como um defeito é mantido?
Não faz sentido. A permanência de algo, o apego a uma realidade, não cria estudo ou reflexão, mas normalização. Se algo é permitido, isso significa tacitamente que é aceito.
Nós não temos estátuas de Adolf Hitler porque concordamos amplamente que ele não é aceitável. Nós não temos estátuas de estupradores e maníacos pelos mesmos motivos. Nós não permitimos que elas sejam construídas e, se alguém construísse hoje, não permitiríamos que mantivessem.
Não existe uma data de validade em que o consentimento ou o bom senso vencem. Nós temos o direito de mudar de ideia, e de alterar coisas que já aconteceram, mesmo que tenha se passado muito tempo.
“Bem, mas na verdade eu estou defendendo essas estátuas porque vi pessoas que eu não gosto se opondo a elas.”
Esse é o pior argumento, e não duvido que seja o principal de muitas pessoas que sequer ligam para a estátua no resto do tempo.
É porque “a esquerda” se importou, ou “os militantes”, ou qualquer outro título que querem dar para simplificar as opiniões dos outros.
E adivinha só: quem está se opondo às estátuas não está fazendo porque quer se colocar contra um grupo político, a não ser que o grupo em questão seja “adoradores de assassinos, ladrões, estupradores e invasores.”
Se você está se opondo, finalmente, porque realmente acha que foi melhor que aqueles índios fossem mortos, ou algo assim, então nem deveríamos estar tendo essa discussão, porque com racista não deve haver espaço para discussão. Você deveria ser preso.
“Tudo isso, essa oposição às estátuas, é um plano para reescrever a história à sua maneira, seu manipulador!”
Não é. Não há plano. Só estamos tentando consertar um erro antigo.
Nós temos idade e experiência para saber que, mesmo no passado, esses crimes já eram sabidos. Não há uma revisão atual da história: as fontes seguem as mesmas. As reinterpretações ocorreram durante o tempo e estão tentando revivê-las agora, mas já temos os fatos.
E tudo isso nasce de uma tentativa de controle de narrativa, de insistir que há patriotismo em fingir que somos e sempre fomos perfeitos, que o passado é ideal e intocado. Que nós chegamos aqui por “grandes homens” que não cometeram crimes ou erros, ou cujos crimes ou erros são justificados pelos frutos que trouxeram, ou porque ocorreram há tempos.
Esse tipo de ufanismo não ajuda ninguém.
Ele nasce de uma vontade de adorar autoridades impossíveis, heróis “sobrehumanos”, de poder dizer “sim, senhor” a uma figura histórica que se torna pura e perfeita só porque se quer acreditar nisso.
Nós temos muito mais a ver com as vítimas desses que viraram estátuas do que com eles. Querer tratá-los como importantes é a repetição de uma ladainha que deveríamos ter esquecido, e que serve apenas para que continuemos a idolatrar outras figuras que pouco nos ajudam, e a tentar projetar nossas possibilidades e responsabilidades sempre em algo fora de nós.
O mundo será muito melhor quando não existir qualquer estátua de racistas, assassinos, estupradores, invasores e ladrões em nossas praças públicas, nem pessoas achando que eles devem ser de qualquer forma motivo de orgulho.