Sobre estrelas, feijão, amostragens e livros
O cérebro humano busca padrões… mas isso não quer dizer que eles necessariamente estão certos, ou sejam relevantes.
Quando vemos todo mundo fazendo muito uma coisa, nós tendemos a enxergar esse viés como um direcionador para pautarmos nossa realidade. Entendemos o que é “bom”, “ruim”, “comum” ou “raro” a partir dos padrões que observamos.
O entendimento disso é importantíssimo para entendermos as nossas vidas.
Nós temos, por exemplo, a ideia de que se algo em determinada categoria é mais consumido, essa coisa é melhor, ou mais popular. Em linhas gerais, é assim que entendemos coisas como a bilheteria do cinema, ou mesmo percepções de vendas de certos produtos.
É fato que não precisamos pensar muito para entender que a relação entre popularidade e qualidade é relativa. É capaz que você, que está lendo, já tenha até pensado em alguns exemplos onde essa lógica é totalmente falsa.
No próprio exemplo da bilheteria, há uma daquelas discussões infinitas sobre arte e entretenimento — afinal, um filme que é sucesso de bilheteria é popular porque tem uma boa história? Porque é “bom cinema” (seja lá o que isso quiser dizer)? É bem produzido? É divertido (em seja lá qual critério se considerar isso)? Tem determinados elementos ou valores? Atende ou não a determinadas visões de mundo? Ou porque ele é amplamente disponível? Ou porque teve uma campanha de marketing boa? O mesmo se aplica ao mundo da música, e à igualmente eterna discussão sobre as canções e artistas mais populares.
Quando estamos falando em bens e serviços, essa lógica de popularidade versus volume só existe dentro de categorias específicas. Se eu falar para você que os alimentos mais consumidos por brasileiros são café, feijão e arroz, pode até fazer sentido, mas na hora de pensar em “alimento favorito”, mesmo feijão e arroz sendo queridinhos, eles não são entendidos como os pratos dos sonhos… Eles são só os que nós consumimos mais, por costume e convenções que nos precedem por muito tempo.
Nós podemos falar que, em uma casa brasileira, é difícil faltar café, arroz e feijão… mas não há dúvida que há uma distância entre isso e favoritismo. Exceto talvez para o café, claro.
Outro exemplo: você já reparou nos sistemas de avaliações em lojas? Você vai lá, escolhe de uma a cinco estrelas, e também consulta a média das notas, e ele te indica o que, em geral, as pessoas acham. Hoje em dia, com todos acostumados com a compra em lojas online, estamos escolados em como essas coisas funcionam, e não apenas desconfiamos dessas avaliações — seja por achar que podem ser desonestas ou porque as pessoas não são criteriosas — , quanto por entendermos a correlação de notas e volume.
Uma média 5 com dez avaliações não é confiável, enquanto uma média 4,6 com 4.800 avaliações é entendida como uma confirmação muito maior de qualidade. Com essa proporção não há dúvida que esse produto deixou quase todo mundo satisfeito! Nós acreditamos que ele seja bom, ou ao menos bom o suficiente.
Nesse ponto, porém, já começam a entrar outras complicações. Se você tem uma versão cara e barata de um produto, dependendo da relação de preço que estamos lidando, pode ser que a cara seja menos comprada que a barata… e crie-se a ilusão de que o pior é melhor, ou mais aceitável, ou bom o suficiente.
E note que eu repeti "bom o suficiente" de propósito, porque o nível de exigência das pessoas pode até ter bases comuns, mas em vários casos, frente à subjetividade, isso é o melhor que temos como referência de avaliação.
Voltemos a outros exemplos: um café que todo mundo compra no mercado é bom… ou ele é o que estão acostumados? Ou é o que podem comprar?
O exemplo do cinema, como em outros casos, traz uma lógica de causalidade por trás: se um filme é sucesso de bilheteria, isso necessariamente quer dizer que as pessoas gostaram dele, porque o esforço de deslocamento e tempo despendido no cinema é maior do que, por exemplo, o que você leva comprando seu café ruim. O “preço” vai além do que se gasta, então o simples consumo já é um indicativo maior.
E aí voltamos na nossa loja online imaginária para procurar, por exemplo, uma máquina de waffle, e notamos que, além do sistema de notas, ela tem uma etiqueta extra nos produtos: uma marcação que diz que tal modelo é o mais vendido. Você pode ter dois modelos similares, com notas similares, mas se um deles é mais vendido… bem, você já se tendencia a comprar aquele.
Complexo, não? E tem mais.
Responda rápido: qual o livro mais vendido da história? Provavelmente você já deve ter ouvido essa curiosidade, apresentada por um religioso (ou não): trata-se da Bíblia Sagrada, que também foi o primeiro grande livro a ser produzido em uma prensa de tipos móveis.
Isso significa que se você fosse procurar aleatoriamente no mundo, dentre todos os livros vendidos, seria estatisticamente mais provável que você encontrasse uma Bíblia. Mas e se você perguntasse para as pessoas qual o livro favorito, teríamos o efeito do café, ou o efeito do arroz e feijão?
A resposta é… os dois! Tudo vai depender da sua amostragem e recorte. Se você abrir agora mesmo uma loja online e ver os livros mais vendidos, pode até ser que encontre um livro religioso, mas não necessariamente verá a Bíblia, tanto porque as pessoas não necessariamente adquirem esses volumes nessas lojas online, quanto porque a lista é feita dentro de recortes de tempo muito específicos, e picos de interesse em certas obras podem tirar escrituras religiosas de destaque.
Olhando nos últimos anos, listas de livros favoritos indicam algumas caras conhecidas. Seja em dados coletados ou em pesquisas, há a Bíblia, a série “Harry Potter” e “O pequeno príncipe”. (Ref. 1, 2.)
Mas aqui entra uma questão interessante: esses títulos são favoritos de pessoas que compraram livros. Mas essas pessoas são consumidores de livros, ou não? São amantes de livros, ou não?
Longe de mim soar arrogante, mas falo como autor e profissional do livro: ainda que possam ser amados por seus fãs/fiéis, esses livros são tidos muitas vezes como literatura de entrada, seja porque são culturalmente introduzidos — para não dizer “impostos” — quanto porque possuem significância emocional específica. Qualquer perfil de frases inspiradoras em alguma rede social vai citar um versículo ou algo sobre responsabilidade afetiva inspirado no “Pequeno príncipe”, e isso retroalimenta um comportamento de consumo.
E aí que entra a questão: enquanto existem leitores que consomem muitos livros, incluindo esses, as listas de favoritos de leitores assíduos tendem a ser diferentes. Não precisamos buscar muitas listas para ver que esse grupo cai muitas posições frente a outros. Temos que lembrar tanto que o acesso a cultura é restrito no Brasil, quanto que o hábito de leitura ainda é difícil, então não apenas teremos diferentes livros chegando a diferentes pessoas, como comportamentos muito díspares. (Ref.)
O Skoob, rede social de livros, oferece uma visão interessante. Esses são o top 7 de mais lidos no fim de setembro de 2024:
Agora, quais são suas notas médias, nesta amostragem? Lá vai: 4,5; 4,5; 4,4; 4,2; 4,7; 4,6 e 4,4. Ora, seria injusto dizermos que são ruins, mas note como não apenas o maior volume de leitura não indica maior nota, como as notas não seguem a proporção de leitores. (Para referência, edições da Bíblia no Skoob ficam na faixa de 4,6 ou 4,7.)
A maior parte da população brasileira não é composta por bons leitores. Uma matéria do fim de 2023 apontou que 84% da população adulta do Brasil não comprou nenhum livro no último ano. 31% dos brasileiros não leem livros, apontou uma pesquisa. Enquanto não há problema em si alguém ter como favorito um "livro de entrada" ou mesmo um livro religioso, é fato que qualquer estatística nesse sentido não é representativa de um dado que seja útil para qualquer assunto sobre o mercado de livros (bem como tantos outros).
É aí que mora a questão: como nenhum padrão existe no vácuo, é muito difícil termos um resultado neutro, e cada generalização ou categorização muda radicalmente a expectativa.
Um fã de ficção científica pode até ter lido “O pequeno príncipe”, mas é mais provável que a série “Duna” tenha uma avaliação mais alta para ele. Esse último, no caso, ganhou novos filmes recentemente, e novas edições, que geraram mais vendas para novos públicos, e o lançou às listas de mais lidos! Mas isso não torna “Duna” mais lido, e a resposta para “qual é melhor” é completamente sem sentido porque a comparação é descabida.
Lembra do arroz e da Bíblia? O consumo de arroz depende de incontáveis fatores históricos, sociais e culturais, o consumo de Bíblias, também. E muitas vezes questionar essas questões parece absurdo porque essas convicções estão profundamente enraizadas.
Chega a ser ridículo, para mim, quando alguém demonstra com orgulho que a Bíblia é o livro mais vendido, não por qualquer mal-estar com a religião, mas porque esse apontamento não é sobre livros, mas sobre religião, cultura e hábitos. Nós não comemos muito arroz porque temos orgulho do arroz ou o achamos melhor. Pensar em uma comparação de qualidade da Bíblia com outra obra é impossível, porque isso só poderia ocorrer em um cenário de consumo equivalente, o que é impensável.
Um influenciador em redes sociais está certo porque tem mais volume? É mais querido, pelo mesmo motivo? Nós já sabemos que não é o caso, por mais que muitos insistam em olhar no número de seguidores como um indicativo de volume. A miopia é tão grande que já se transferiu até para brigas políticas, e fanáticos levam marcadores do tipo como indicações de reconhecimento e votos, por mais que seja apenas indícios de comportamento de público.
Não se sinta atingido(a), se for o caso. É uma questão de mercado, e vou usar jargão para explicar: não adianta você ter um bom alcance e engajamento, se você não leva a uma conversão. Ou seja, para o político, o apoio no voto ou em outros momentos que importam de verdade, e não o número de fãs compartilhando vídeos, tecendo comentários ou dando curtidas em posts. E isso vai além da política para qualquer influenciador, e para qualquer coisa.
Nós voltamos outra vez no café e no feijão com arroz: o café é popular e um dos favoritos, conquistando corações, mas havendo escolha, o arroz e o feijão não necessariamente são primeira opção.
Eu não pretendo chegar aqui e dizer que deveríamos apagar todos esses padrões, que deveríamos fugir desses impulsos de conveniência. Não. Além de pouco prático, isso seria algo que vai contra certas facilidades que ajudam nossa sobrevivência.
O que eu quero propor é que tenhamos consciência desses atalhos, porque eles fazem diferença em coisas importantes. A marca da sua máquina de waffles não vai mudar muita coisa na sua vida, mas o seu apoio a uma figura ou decisão política vai, e isso é afetado pelo mesmo sistema. Idem para o que você come, onde você vai, como você lida com situações.
E há outro ponto, aqui: justamente porque nós temos o poder de entender o comum, o padrão, e a tendência de achar que isso é o melhor, ou ao menos o mais indicado, nós facilmente conseguimos cair na armadilha de que o diferente é necessariamente o melhor. Esse é um truque de manipulação dos mais comuns e rasteiros — “todo mundo faz isso, mas eu faço diferente e estou certo, e por isso eles me odeiam”. Às vezes o diferente pode ser melhor ou estar certo… mas muitas vezes ele só não é o comum porque ele é ruim, não faz sentido, ou sequer funciona.
Com isso, conseguimos chegar em uma resposta mais ou menos aceitável: quando usamos o padrão, então? Eu diria que, quanto menor o impacto na sua vida, mais fácil recorrer ao padrão de igualar volume com qualidade. Quanto mais complexas as coisas se tornam, porém, melhor termos categorias que nos permitem guiar a realidade. Nem todas fazem sentido o tempo todo, mas muitas ajudam.
Tem horas na vida que faz todo sentido do mundo reforçar bem que não adianta comparar “Duna” com a Bíblia, por mais que não faltem maneiras de categorizá-los de maneira próxima.