Sobre artistas (e seus opostos)
Recentemente, eu percebi uma coisa importante sobre a essência de artistas: apesar de tudo e de todos, eles estão entre os seres que mais amam o mundo e as pessoas.
Todo artista que eu conheço é, em algum nível, um sofredor, um inconformado, ou alguém que esteja impressionado com o que vê e experimenta. Todo artista usa a arte para tentar explicar o mundo, entendê-lo, mudá-lo ou simplesmente expô-lo. Grandes momentos da arte são da exposição do real, para o bem ou para o mal, em resumo ou com exagero, porque a arte não cansa de apontar para o que é incrível, horrível, interessante, raro ou comum dele, e o mundo não cansa de se deixar apontar.
Mesmo quando falam de uma alternativa para o mundo, de uma fuga, artistas partem do que têm. Quando denunciam, apontam a necessidade de um retorno ao que já foi melhor, ou um caminho para o que é correto. Quando explicam, seja por exemplo ou por sentimento, eles tentam dizer o que a realidade nem sempre deixa claro.
E tudo isso necessita de amor.
Veja bem, eu não estou tentando ser poético. Não vou gastar o meu tempo e o de vocês dissertando sobre a nobreza da alma de alguém, ou usando palavras açucaradas para elogiar artistas e me vangloriar indiretamente. Não, eu me refiro ao amor como um interesse intenso, um envolvimento emocional e empático.
Geralmente, um artista faz questão de fazer sua arte porque ele sente que sempre precisa expressar algo do mundo e de si mesmo no mundo. Não existe artista que se desinteresse por pessoas, pela realidade e pela própria existência. Isso, claro, sem falar que em sua maioria a arte tem desdobramentos sociais. O artista cria para si mesmo, mas também para os outros e, quando não pelos outros, é em relação a eles. Mesmo a mais solitária e egocêntrica das artes ainda é sobre o mundo em algum nível.
Nas infindáveis discussões sobre a natureza ou o objetivo da arte, há definições duvidosas que falam sobre a função da arte como algo relativo ao “sublime”, ao “belo”, ao “estético”, sugerindo que é função dela trabalhar o inconcebível de outra forma. Eu acho essa definição uma imbecilidade suprema, não porque a arte não faça isso ou não possa fazer isso, mas porque é pretensioso e pequeno relegar a arte a isso. Fundamentalmente, a arte fala de expressão, e descaracterizar como arte as expressões que não sejam voltadas a esse “sublime” me cheira a desonestidade, ou a algo fundamentalmente contra a arte, porque abre a porta para ser contra o mundo de uma maneira básica.
Sem dúvida alguma, filosofias e religiões diversas nos dirão que é possível atingir o sublime através do mundo, então eu vejo a mesma lógica na arte. E note que não há um salto. Não há “sublime” sem mundo. Não há significado sem algo em que ele se aplica.
Essa discussão sobre sublime pode parecer uma tangente, mas eu apenas entrei nela porque eu preciso justamente demonstrar que não há artista que não ame o mundo, que não se importe com ele. A distância da existência e de todas as condições que se desdobram disso impossibilitam a arte.
Talvez você aponte que há algo paradoxal no que estou dizendo. Que não é possível para um ser negar a realidade, porque existe na realidade, que não se pode fugir da natureza humana, quando se é humano. Eu concordo com você, e é justamente isso que quero deixar claro: a arte envolve algum tipo de envolvimento com o mundo — aceitando-o ou não — , em oposição à rejeição desse envolvimento.
O oposto do artista, assim, não é o não-artista, mas o reacionário.
É possível viver sem fazer arte. Muitas pessoas são não-artistas e vivem bem. E isso segue verdadeiro mesmo se resolvermos abranger ao conceito de arte a execução excelente ou esmerada de outras especialidades. Um químico talvez possa ser chamado de um artista de sua especialidade. Um engenheiro, um sacerdote… Se a definição pode gerar narizes torcidos ou discussão, entendo que nem que seja como comparação, todos entenderão o que quero dizer.
Enfim, seja como for, o ponto é que o não-artista pode amar o mundo, a vida e as pessoas como um artista. Ele só não expressará esse amor com arte, em qualquer sentido da palavra.
Mas e o reacionário? Esse, ouso dizer, é incapaz de produzir arte. E tenho sérias dúvidas se ele é capaz de consumir.
É preciso deixar claro que, quando falo “reacionário”, eu me refiro ao que a palavra de fato significa em todos seus sentido. A alguém que só reage, sem pensar e, por extensão, agrego também o sentido político e social, daquela pessoa que se recusa cegamente a qualquer mudança, a qualquer desenvolvimento, geralmente buscando um estado passado das coisas, invariavelmente idealizado.
O reacionário é facilmente identificado em relação à arte por ser um grande defensor desse “sublime” da arte, que não existe… ou não como ele teima em dizer. Ele persegue toda arte que não entra nessa visão como algo “degenerado”, ou “inferior”, e é incapaz de atingir qualquer emoção real, porque sua motivação é a perseguição, e não a criação. Como o reacionário já queimou toda e qualquer sensibilidade que possa ter à realidade, ele só consegue entender a arte em um nível de reação, e portanto ele só consegue justificar sua posição perante a arte a partir do que já existiu e que se torna inalcançável.
A arte é reflexo dos nossos tempos, isso é um ponto amplamente aceito, mas além de falar sobre o presente, ela também é reflexo de tudo que temos até agora, e da visão do presente sobre esse passado.
Há um reflexo temporário comum, a partir dessa premissa, de julgar a “evolução” de um povo a partir do que se observa de arte em determinado ponto da história. O viés é ridículo, e os objetivos para tal afirmação são evidentes, ainda mais porque ela ignora que, afinal, o que sobrevive amplamente identificável como arte em determinado contexto ocorre não necessariamente por mérito, mas por incontáveis vieses e circunstâncias.
Em um mundo onde, aos trancos e barrancos, amplia-se a democratização do acesso a informação e à possibilidade de produção de arte, olhar tudo que temos e pensar que estamos piores é burro e desonesto… como geralmente é o caso com qualquer outro entendimento reacionário da realidade.
O artista é oposto ao reacionário justamente porque ele precisa da mudança, do reflexo da realidade. Aceitando ou não o que ele vê, ele é capaz de sentir, de absorver, de um modo que não se resume ao que um livro ou uma filosofia disse que ele deveria entender. Fale o que quiser sobre as motivações ou tendenciamentos de um artista, ele nunca será tão fechado para a sensação quanto um reacionário.
E aqui voltamos ao começo: o artista ama o mundo e as pessoas, e ele cria mesmo que o mundo e as pessoas estejam contra ele. O reacionário, do mesmo modo, é incapaz de amar o mundo, portanto tudo que ele cria vem da inspiração em um não-mundo, ou de um ódio ao mundo.
O reacionário é o anti-idealista, porque seu ideal sempre necessita da destruição de tudo. E mesmo que ele consiga isso, o ideal ainda permanecerá inalcançável, porque essa é a natureza de algo assim.
E, vale esclarecer, um não-artista pode ou não ser reacionário, mas um reacionário, por natureza, nunca é um artista.
Um artista pode desejar o sublime, e eu afirmo que apenas através desse amor ao mundo que se pode alcançar algo assim. Já o suposto sublime do reacionário, por outro lado, é exatamente por isso um espantalho, é a arma que ele usará para tentar combater o amor ao mundo.
Se você chegou até aqui e ainda não entendeu o que fazer para entender essa diferença na prática, minha recomendação é que procure “alma” na arte, mas lembre-se que a alma nem sempre é sublime. E aí, sim, você vai perceber que não há alma alguma em uma criação reacionária, nem sublime, nem infame.