Sobre a posse da identidade alheia
Identidade é importante.
Todas as pessoas, durante suas existências, têm ideias sobre as próprias existências. Essas podem nem ser expostas conscientemente, mas elas estão lá, porque é da natureza humana ter a fantástica habilidade de refletir sobre a própria existência.
Podemos ter mil ideias filosóficas sobre o que faz uma “pessoa”, um “ser humano”, um “indivíduo”, mas invariavelmente cada animal pensante vai chegar em algum momento em que vai se definir de alguma forma e, claro, vai ser definido pelos outros.
Esse é um ponto interessante: o que de nossas identidades é definido por nós, o que é definido pelo meio, e o que é definido pelos outros? Quais são as correlações entre esses pontos? Eles são diferentes uns dos outros? Nós somos limitados sempre ao nosso conhecimento do que pode existir?
Essas são perguntas que antropólogos, sociólogos, psicólogos, filósofos e tantos outros já exploraram extensivamente e ainda que alguns caminhos sejam mais aceitos, não há consenso. Não tenho pretensão de refutar ou elevar qualquer teoria — e nem tenho formação para tal — , mas quero brincar com alguns pensamentos que muitas vezes me incomodam.
Eu quero propor — independentemente de como as coisas estão ou como elas foram — uma mudança de pensamento consciente da parte de todos nós: eu quero propor que todos nós concordemos em abolir qualquer tentativa de posse de identidade alheia.
Quando falo de “posse” eu realmente quero usar essa palavra. Eu me refiro ao modo como constantemente agimos como se a identidade dos outros fosse algo que poderíamos definir e controlar. Como se tivéssemos direito sobre ela e pudéssemos agir de modo a controlar, bem como os elementos que a define.
Por que isso acontece? Eu entendo que há três motivos principais: para que as outras pessoas caibam nos parâmetros do que definimos como possíveis na realidade, para que os parâmetros de realidade que acreditamos sejam válidos e, finalmente, para que possamos definir nossa própria identidade.
Nós tentamos forçar para que alguém seja o que nós conhecemos, porque entendemos que o conhecemos é o certo e/ou tudo que é possível, e como nos definimos de algum modo em relação a isso, direta ou comparativamente, nossa própria identidade é entendida como ameaçada a partir dessa existência.
A grande questão é essas três coisas são atentados à liberdade, tanto das outras pessoas como as nossas, bem como atentados ao respeito. Quando aprendemos a largar essas manias estranhas, não apenas nos tornamos mais livres, como aprendemos a nos entender de maneiras mais claras.
Vamos trabalhar um exemplo para tudo ficar mais prático: o que é um homem?
Eu, nas minhas três décadas e pouco de vida, já ouvi várias definições, e a maioria delas é externa a mim. Alguns especialistas dirão que são mais cromossomos que me definem como homem. Outros dirão que é a maneira como me posiciono dentro de certos códigos sociais, e que esses códigos variam dentro de diferentes culturas. Algumas pessoas repetem um desses caminhos, outras outros, outras apontam que é apenas uma questão genital.
A vida deixou mais do que claro para mim que o grupo que aponta um aglomerado de fatores sociais é o verdadeiro. E eu não preciso de muito esforço para provar. Basta ver qualquer estatística de homofobia, de um homem que “não está sendo homem” e é punido por isso por alguém que se vê no direito de punir por isso.
Eu sou um homem cisgênero, heterossexual. Ou seja, eu me identifico com o gênero que me foi atribuído no nascimento, e eu sinto atração por mulheres. “Cisgênero” e “heterossexual” são definições que não deixam margem de dúvida, em sua concepção. Mas para algumas pessoas, “homem” e “heterossexual” são conceitos interligados. Eu e muitas pessoas não entendem assim, porque um homem que se interesse por outros homens continua sendo homem. O mesmo, claro, acontece com “homem” e “cisgênero”, porque um homem trans ainda é um homem, por mais que exista quem discorde disso. O que quero apontar aqui é: o que é ser um homem para mim não é algo que significa a mesma coisa para incontáveis outros homens, e vice-versa.
Eu não como carne. Para alguns homens, um homem “de verdade” necessariamente come.
Eu não ligo para esportes. Para alguns homens, um homem “de verdade” necessariamente curte.
Eu não consumo bebidas alcoólicas. Para alguns homens, um homem “de verdade” necessariamente bebe.
Se esses exemplos parecem prototípicos demais, ao ponto de parecerem piadas genéricas sobre gênero, lamento dizer que já conheci incontáveis homens que entendem essas mesmas coisas como definidoras de suas identidades de gênero. Parece mesmo uma piada, mas não é.
Já questionaram se eu não seria gay por passar um longo período solteiro ou sem casos notórios de envolvimentos com mulheres, ou por não mostrar de maneira ostensiva e/ou agressiva minha sexualidade.
Note que a dúvida não vinha de alguma manifestação em relação a interesse por homens, mas da ausência percebida de interesse por mulheres. Vai me dizer que não faz parte do código dessas pessoas uma ideia de que uma performance sexual ativa é o que define um homem com homem?
Com isso, fica claro que a definição de homem para algumas pessoas significa algo mais simples, enquanto para outras é mais complexo. Para algumas, ela é restrita, e para outros é ampla.
O que aconteceria comigo se eu fosse seguir todas essas expectativas que as pessoas têm sobre a minha identidade? Imagine se eu tivesse que preencher uma lista de tarefas de masculinidade para provar para as outras pessoas que eu sou mesmo um homem? Não. Eu não devo nada a ninguém. Eu sou um homem e isso independe dessa performance.
Você pode dizer “tudo bem, Rodrigo, mas você tem uma performance de outras características que são entendidas como masculinas”, e eu irei concordar com você. Gênero, seguindo no nosso exemplo, é performance de um modo ou de outro. Está nas expectativas que nós temos. Mas essas expectativas são referentes a normas mutáveis e sempre subjetivas. Um “homem de verdade” usando salto seria inconcebível para muitas pessoas mesmo hoje, mas era a norma em algumas culturas séculos atrás. Só que entenda que qualquer linha que defina o que é um homem vai variar, e é esse o ponto todo.
Isso nos leva a outro desdobramento importante: se eu não devo nada a ninguém sobre minha identidade, eu tenho que entender que ninguém deve nada para mim, também. Não há como eu ser o detentor da regra, e não há consenso que vá mudar isso. Eu não sou dono dos conceitos de “homem”, “masculino”, “masculinidade”, mesmo que eu entenda que minha identidade está ligada a eles. Então eu definir se outra pessoa é mais ou menos homem que eu é uma ignorância, sem falar que é um desrespeito e uma agressão.
Tentar controlar a identidade de alguém é uma agressão. Tentar negar a identidade de alguém é uma tentativa de controle. Tentar inviabilizar, redefinir ou ignorar é igualmente um ato ignorante e agressivo.
Quanto mais pensamos sobre isso, mais subjetivas as coisas ficam, e mais amplos são os conceitos. As coisas, assim, começam a existir em espectros, e começam a permitir sobreposições. Não há nada de errado nisso. Sim, existem conceitos amplos e ideias amplas sobre as coisas, mas não é porque se pensa em algo que isso é real para todos, especialmente em campos de subjetividade e incerteza.
Vale um questionamento, aqui: por que, afinal, é incômodo para algumas pessoas que alguém seja de um jeito diferente deles? Por que existem homens definindo como outros homens devem ser? Há muitas respostas para essas dúvidas. A primeira principal é uma falta simples de questionamento de normas sociais e ideias herdadas.
A segunda principal, eu diria, é o medo e fragilidade sobre a própria identidade. É difícil se entender, especialmente quando vemos que não estamos no mesmo encaixe que o resto, então nos agarrarmos a alguns tipos de moldes moldes e tentamos protegê-los, nos modificando de acordo com eles, e passamos a defender o que nos reprime porque o resto é incerteza. Vendemos como liberdade a imposição de restrições à nossa própria natureza, em vez de enxergarmos como realidade o que ela está nos oferecendo. Veja que aquele que mais se incomoda com a identidade dos outros é quem tende a ter a necessidade de exprimir com mais forças as ideias sobre o que define a própria identidade.
Há pessoas de todo tipo. Há identidades de todo tipo. Deixemos os outros serem como são e se expressarem sobre isso como quiserem, e sejamos mais livres, também.