Quanto mais você sabe, maior é o mundo (ou “Uma ode aos rótulos”)

Rodrigo Ortiz Vinholo
11 min readAug 10, 2020
"Nighthawks", Edward Hopper. (1942)

O mundo já foi muito menor do que é hoje, ainda que tivesse o mesmo tamanho.

Claro que isso é força de expressão. Dentro do tempo que importa, de escala da existência humana, o mundo não mudou de tamanho de maneiras muito representativas. Estou falando aqui de nossa visão sobre o mundo. Estou falando de conhecimento.

Pense assim: antigamente, nós vivíamos em agrupamentos de pessoas que tendiam a características muito semelhantes. Todos tinham mais ou menos os mesmos tons de pele, mais ou menos as mesmas cores de cabelo, faziam mais ou menos as mesmas coisas e pensavam mais ou menos do mesmo jeito. Nós explicávamos tudo do jeito que conhecíamos e concordávamos uns com os outros, e o mundo não crescia nem mudava — ou, se fazia, isso era um processo bem mais lento.

Por um lado, esse comportamento não mudou: nós tendemos a viver em comunidades que se assemelhem aos nossos conjuntos de características, e tendemos a procurar grupos que se assemelhem com o que nos identificamos e que tenham os mesmos interesses. Por outro, temos que ter em mente que mesmo o mais homogêneo dos grupos que temos hoje em dia é centenas de vezes mais diverso do que a homogeneidade que existia muito, mas muito tempo atrás.

Isso é, obviamente, por conta da globalização, e da comunicação de massa, e da internet. Todas as pessoas são mais educadas e têm chances de ter mais contato com todas as coisas do mundo. É assim, é simples e direto.

E nisso, nós sabemos que conhecimento abre possibilidades. Ao sabermos de mais coisas, nós podemos entender melhor tudo que existe, e podemos descobrir mais.

A história do mundo se baseia nisso. Nossa língua é uma mistura de diferentes locais, nossos números vêm de mais um, e nossos hábitos derivam de incontáveis outras pessoas. Mesmo olhando em história recente, o computador em que eu digitei estas palavras envolveu no mínimo três países diferentes da concepção à produção, marketing e venda, se baseando em modelos, técnicas e conhecimento acumulados de incontáveis outras pessoas.

Cada passo da humanidade permite que sejamos maiores. Cada coisa que conhecemos permite que conheçamos mais e que criemos mais. Cada nome que temos para alguma coisa permite que nomeemos e compreendamos outras coisas.

Até aqui, sinto que falei apenas coisas óbvias. Isso é ótimo, porque minha intenção era chegar em um ponto em que tudo está óbvio para todos.

Com este texto, eu quero discutir duas grandes questões que estão diretamente ligadas. A primeira é que o conhecimento amplia nossos horizontes.

A segunda é que isso deve existir para tudo, inclusive para nós mesmos. E aqui que eu quero falar de coisas que são um pouco menos óbvias.

Nós existimos por conta própria, mas existimos sempre em relação a alguma coisa. Isso não é algo evitável, e nem há motivo para evitar. Se alguém é alto ou baixo, é em relação às outras pessoas, à percepção de uma altura média, que pode variar em nível regional ou geral. Se alguém é feio ou bonito, além da questão de opinião pessoal, também vai depender de uma percepção cultural que pode variar com local, época, e vários outros fatores.

Mesmo saindo do âmbito puramente humano, outros fatos têm essas mesmas correlações. Você pode medir a temperatura de alguma coisa e ter um número indicativo. Mas essa temperatura sempre poderá ser comparada com outra coisa em termos de “quente” ou “frio”. Isso não muda a temperatura, mas adiciona uma informação específica sobre ela, relativa a outra coisa.

Isso tem relação com nossos sentidos, com a maneira como percebemos o mundo, e como o mundo se apresenta para nós.

Ocasionalmente me lembro de um conhecido que, certa vez, me disse que ele conseguia reduzir tudo a uma questão binária. Tudo era, de acordo com ele, “sim” ou “não”. Dependendo de como o raciocínio se apresentasse, ele não estava errado. Mas esse é o tipo de percepção que só funciona se você está colocando a pergunta em um formato específico, e invariavelmente tendenciando sua resposta.

Eu sou contra esse reducionismo porque ainda que ele seja muito útil para alguns momentos, seu uso contínuo faz com que percamos de vista essa possibilidade de expansão de horizontes que tanto admiro na humanidade. Quanto mais simplificarmos a nossa visão do mundo, menos enxergarmos. Quanto mais generalizamos e eliminamos diferenças, menos somos livres.

Muitas pessoas temem a ideia de tornar o mundo mais complexo. Pensam que é desnecessário. Vejam que agora estamos indo para outra tangente de assunto que não necessariamente a evolução tecnológica, mas sim os efeitos culturais e sociais. Para muitas pessoas, basta que o assunto saia um pouco do âmbito do que elas conhecem para rejeitarem novos rótulos, especialmente quando esses se referem a como pessoas se entendem enquanto pessoas.

“Somos todos humanos”, alguns dizem. “Quanto mais rótulos as pessoas criam, maior a segregação”, também dizem.

As pessoas têm medo de rótulos, de novos nomes, de definições específicas. Ou simplesmente não veem necessidade, porque acham que vai segregar, ou que é complicar o que já está explicado.

Mas aí que eu pergunto: por que complicar é ruim? Porque dará mais trabalho? Nós não pensamos isso para religião, política, matemática, computadores, aviação, cozinha, nem tantas outras coisas? Por que a maneira como seres humanos lidam com suas próprias identidades e imagens deveria ser algo simples? Ou, se você acha que está tudo explicado, por que pensa que continuamos estudando? Por que nós estaríamos explicados, seríamos um assunto terminado, se o mundo não parou? Se nós continuamos estudando tudo mais?

O ser humano é um assunto tão complexo e mutável quanto qualquer outra coisa no universo. Enquanto existirmos, nós somos um assunto inesgotável.

Então eu quero que você brinque comigo de rótulos, em especial se você acha que rótulos são difíceis, estranhos ou desnecessários. Note que, geralmente, quem está explicado (ou acha que está), realmente não vê necessidade de explicar mais. Mas vamos brincar.

Nós não somos todos iguais. Nós somos humanos, claro, mas nossas semelhanças não vão muito mais além disso. E tudo bem. É ridículo que eu suponha que minha experiência de vida seja igual à de qualquer outra pessoa, porque eu sei que mesmo as pessoas com experiências muito similares à minha não são quem eu sou, e eu não sou quem elas são.

Se formos brincar e exagerar com essa lógica, de dizer que somos todos iguais, poderíamos dizer que todos nós, no planeta, somos em média homens chineses cristãos, porque esse é o gênero, nacionalidade e religião com mais representantes. Mas aposto que isso é bem diferente da sua experiência de vida, e que você não se vê nessa representação simplória da humanidade.

“Ah, Rodrigo, mas você está tirando com a minha cara!” Estou, sim. Um pouco. Mas você vê meu ponto? As pessoas pregam uma homogeneidade que não existe, e quando falam de rótulos, elas nunca se referem a rótulos que elas já aceitam, mas somente a pressupostos que elas têm e dos quais não querem se livrar.

Poderíamos argumentar que a sua religião é só um rótulo, ou que sua nacionalidade, seu grupo cultural, seu time do coração, mas esse tanto as pessoas não se sentem confortáveis em generalizar. Elas se apegam às diferenças que existem, por sutis que sejam. Não se ouve uma tentativa de silenciar e falar contra segregação com frases de efeito tipo “somos todos humanos” quando alguém fala com orgulho de sua família, de sua religião, ocupação ou pátria. Porque realmente não faz sentido! Só que não faz sentido também fazer isso com outros rótulos.

Eu sou um homem. Este é um rótulo fácil de entender. Eu sou heterossexual. Este é outro rótulo fácil de entender. Nós temos séculos de ideias sobre o que cada uma dessas coisas significa, com variações em cada cultura, mas nós ainda temos nossos estranhamentos com isso. Há quem pense, por exemplo, que o fato de eu estar solteiro com mais de trinta anos me faça menos homem ou menos hétero. Ou que eu não comer qualquer tipo de carne ou não consumir álcool afete essas questões. Ou que eu não gostar de esportes, em especial de futebol, fala contra minha masculinidade.

Diferentes épocas e culturas terão implicações diferentes sobre o que é ser um homem, e qual a performance que deve ser esperada para que eu seja um homem. Só que essas noções mudaram, mudam e continuarão mudando.

O que nos leva a outro ponto: hoje em dia eu conheço pessoas de todos os jeitos, que entram em todo tipo de rótulo. Se formos entrar em sexualidade e identidade de gênero, eu conheço pessoas que são como eu, heterossexuais e cisgênero (ou seja, que se identificamo com o gênero que foi atribuído no nascimento). Mas eu também conheço pessoas homossexuais, bissexuais, pansexuais, assexuais, transgênero e não-binárias, em diferentes variações e combinações. Imagine se eu fosse dizer para elas que não aceito rótulos, e que somos todos iguais, e que não há valor em diferenciar as experiências humanas?

Nós não somos iguais, e esses rótulos são importantes para a experiência dessas pessoas. E para a minha, também.

Vamos entender: não estou dizendo que uma pessoa vai deixar de ser quem é ou sentir o que sente se não existir uma palavra para o que ela é ou sente, mas sim que esses rótulos ajudam para que ela entenda. E para que outras pessoas que possam ter a mesma experiência também entendam mais rapidamente.

A existência humana ainda tem muito território inexplorado, exatamente porque seguimos na nossa eterna rejeição a rótulos e mentalidade binária e simplista por tempo demais. E ainda temos em muita coisa. Mas veja que, mesmo para mim que não faço parte desses grupos, descobrir que há essas pessoas no mundo e as possibilidades de existência do ser humano não só expande meus horizontes porque eu ganho mais conhecimento e entendo melhor as pessoas, mas porque, por comparação, eu consigo entender melhor quem eu sou.

Qualquer campo de estudo sofre de um problema sério: as pessoas. Historicamente, todas as grandes descobertas demoraram algum tempo para serem reconhecidas pelo resto das pessoas porque elas não aceitavam de primeira as novidades, tanto porque não compreendiam quanto porque não queriam aceitar, mesmo sendo comprovado e testado. A história da ciência é repleta de exemplos disso.

Por mais que muita gente pense que rótulos como “transgênero” sejam invenções recentes, coisas do século XXI, a palavra surgiu pela primeira vez em 1965, em uma obra do psiquiatra John F. Oliven, da Columbia University. Mesmo todas essas décadas atrás, o termo já surgia em substituição a “transsexualidade”, uma expressão mais simplória e tendenciada. Hoje, o termo já é aceito amplamente e a própria OMS reconhece gênero e todas as questões correlatas como méritos importantes não só de identidade, mas também de saúde, e ainda assim há quem resista a esses rótulos.

Até chegar na linguagem corrente, levou décadas. Há quem pense que o termo “transgênero” nasceu depois do ano 2000, que é uma invenção recente, quando o simples nome já é mais velho do que muitos que o questionam.

Já o termo “cisgênero” é realmente mais recente, mas não muito. A primeira vez que teria surgido foi em 1991, em uma obra do sexólogo alemão Volkmar Sigusch. Não é surpresa que, considerando o tempo que levou para “transgênero” se tornar uma palavra corrente, essa ainda não seja de conhecimento amplo.

Só que agora vamos fazer um exercício: tirando por um instante toda a questão de rejeição, ódio e outros problemas que surgem nessa conversa por parte de alguns, vamos pensar nas pessoas que entendem o termo “transgênero.” Tudo bem, as pessoas entendem que alguém transgênero se identifica com um gênero que não o que foi atribuído no nascimento. Mas como ela chama a pessoa que não é trans?

Aqui a questão fica um pouco espinhosa. Você ia chamar de quê? De “normal”? De “padrão”? De “norma”? Lembra a conversa de como uma visão binária não faz sentido para mim? Pois então, eis um dos motivos: em casos assim, a ausência de um rótulo força a visão a sempre partir de um ponto de vista único que não descreve bem a realidade. Chamar a pessoa de “não-trans” foca na experiência trans de um modo que pode não fazer sentido para muita gente, e não ter um nome específico para o oposto, torna a experiência trans um elemento estranho desnecessariamente.

Você pode argumentar que, por proeminência de pessoas cisgênero e questão de norma e do quão comum é, definir com um termo como “normal” não representaria problema, mas vou pedir que seja menos ingênuo(a) ou desonesto(a). É claro que existe uma norma e o que não é norma, o que é uma maioria e o que é uma minoria, mas você não se sentiria confortável em ser o “anormal” em muitos contextos, então é um mínimo de respeito reconhecer isso.

Só que, reforço, vai além disso. “Não-transgênero” não explica o que é ser cisgênero, do mesmo modo que “não-cisgênero” não explica necessariamente o que é ser transgênero. Cada conceito existe separadamente, ainda que sejam correlatos, e permitem definição e clareza.

Pense na cor azul. Primeiro que o próprio termo já é amplo para uma coleção de conceitos do que é azul. Mas em segundo lugar, temos que pensar que não é possível definir vermelho somente a partir do azul. É certo falar “vermelho é não-azul”? Não está errado, mas não está certo.

Por isso, sim, eu amo rótulos. Eu desejo que o mundo seja explicado em todos os seus detalhes, e que se for necessário atualizemos as palavras que usamos para definir cada uma das coisas por vezes e mais vezes.

Esse processo não é sempre fácil. Aprender nunca foi fácil. Mas não precisa ser difícil. Nós podemos ser menores e estagnados, ou entender. Seja com os rótulos que definem o mundo, ou as pessoas, ou para qualquer conceito. Entender é algo fantástico. E entender, também, que algumas coisas nós nunca entenderemos em primeira mão, porque não vivemos e não temos como viver essas experiências.

Note que eu não falei “aceitar”, “tolerar”, “abraçar”, “respeitar” ou qualquer outra coisa. Eu disse “entender.” Não estou aqui para dizer meramente que “o diferente é algo que deve ser protegido e tolerado”, mas sim que “o diferente existe, e nós temos que lidar com isso entendendo.” "Tolerância" se tem com defeitos, e não estamos falando de defeitos, mas características.

Não é uma opção para ninguém dizer que outra experiência é menor, ruim ou inválida, se o exercício dessa experiência não agride qualquer um de forma alguma.

E lembre-se de uma coisa: não é porque algo não se encaixa em sua visão de mundo, ou faz com que ela seja questionada de alguma forma, que isso configura uma agressão. Alguém ser trans não torna sua identidade menor ou diferente. Alguém vivenciar seu gênero de alguma outra forma não atrapalha o modo como você o faz. Alguém sentir atração por pessoas de um jeito que você não espera não muda a sua atração, e alguém vivenciar sua sexualidade de outra forma não muda como você vivencia a sua.

Vou dizer para os outros que eles estão errados em terem a experiência que eles têm? Veja, opiniões são questionáveis. Experiências, não. Eu não consigo dizer "olha, eu acho que você na verdade se sentiu mal, em vez de bem." Eu não consigo determinar que uma experiência é boa ou ruim a partir de um ponto de vista que não o meu.

O azul é o azul, o vermelho é o vermelho. Um não é o não-vermelho, e o outro não é o não-azul, e sua preferência por um tom ou outro não faz com que exista alguma cor a menos.

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Rodrigo Ortiz Vinholo
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Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

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