Os problemas da vida real

Rodrigo Ortiz Vinholo
10 min readJan 16, 2023
9 de espadas, Rider-Waite Tarot

Eu geralmente tomo como sinal de maturidade a capacidade das pessoas de se preocuparem com problemas da vida real, em oposição a situações imaginárias que elas tentam projetar sobre a realidade.

Não, não estou falando contra histórias. Como escritor de ficção, eu lido diariamente com problemas imaginários, e me importo com eles, até certo ponto. A questão é que a ficção que eu consumo ou produzo só vai me fazer agir na vida real a partir de uma derivação dela. Eu não vou me preocupar com a vida de um reino muito distante e imaginário do mesmo jeito que eu me preocupo com a realidade, ainda que eu possa tirar alguma lição dele.

Talvez você pense que, bem, pouca gente se importa dessa maneira com ficção. E eu concordo com você, claro. Meu ponto todo dessa conversa aqui são as outras ficções que nós inventamos, e que tentamos nos importar com mais intensidade do que com os problemas da vida real. Vamos conversar.

Eu me lembro que, quando era criança, eu e meu irmão, bem como, de uma forma e de outra, a totalidade de nossos amigos e parentes de idades similares, frequentemente gostávamos de brincar com a imaginação de cenários improváveis. Não necessariamente atuávamos a brincadeira de alguma forma, mas às vezes só passávamos o tempo discutindo situações que jamais poderiam acontecer.

Esses casos imaginários eram baseados em coisas que víamos nossos pais falarem, ou que víamos na televisão, ou inspirados diretamente em histórias de filmes, quadrinhos e desenhos animados. Discutíamos, por exemplo, o que faríamos na posição de um personagem, sendo ele, ou como reagiríamos se tal coisa acontecesse com a gente. Na imaginação, era fácil sermos heróis, enfrentarmos monstros, criminosos e salvarmos pessoas. Qualquer mostra de força, agilidade ou esperteza que conseguíssemos fazer, ainda, provava a nós mesmos que, afinal, nós tínhamos a capacidade de sermos quem sonhávamos ser, mesmo que não existisse a necessidade, dada a segurança da realidade do dia a dia. Era a imaginação aspiracional.

De outro lado, mas com exemplos parecidos, existia a imaginação movida por medo. Sabíamos de um jeito ou de outro que o mundo tinha problemas. Sabíamos que pessoas podiam não ser confiáveis, e sabíamos que não sabíamos muita coisa. O desconhecido, assim, permitia que déssemos vida e corpo a medos da ficção. Monstros eram reais para nós. De vampiros a criaturas gigantes, de fantasmas a alienígenas, aprendemos desde cedo que o incerto, o místico e o mitológico podiam nos assustar, mesmo que não soubéssemos precisamente como ou se poderiam nos influenciar.

Com nossas relações sociais se desenvolvendo, as brincadeiras não deixavam de existir, mesmo que largássemos algumas delas. Pensávamos o que faríamos em uma situação que outras pessoas viveram. Termos como “ciúme”, “inveja” entravam no nosso vocabulário e aplicações diversas de tristeza, raiva, ódio, felicidade, amizade, admiração e tantos outros sentimentos e conceitos começavam a popular de maneira mais intensa nossas imaginações. Queríamos conexões, temíamos perdê-las, queríamos segurança e temíamos as ameaças. Com isso, a aspiração e o medo também nos davam novos problemas imaginários, nascidos de exemplos terceiros e do que julgávamos como análises de probabilidades.

Desde essa época, e conforme vamos crescendo e seguindo com a vida, nós encontramos uma série de outros problemas imaginários. Coisas que não acontecem com a gente e pode ser que nunca aconteçam, mas que nós imaginamos e tememos. Já ouvi várias explicações para isso. Uma delas é que essa é uma característica herdada de nosso passado evolucionário, de quando tínhamos que lutar para sobreviver, temendo predadores e outras ameaças. Já ouvi, também, que nossa imaginação e essa capacidade de pensar em problemas inexistentes nos prepara para garantir nossa adaptação, para sermos seres mais preparados para a adversidade.

Só que chegamos a um ponto em que essas nossas imaginações não nos servem de nada.

Qual a utilidade de eu temer ativamente uma aparição se não há nada do tipo me ameaçando? E de eu temer uma invasão alienígena, ou a queda de um meteoro? E de imaginar uma invasão zumbi, ou uma situação de guerra mundial, ou de uma destruição da internet e de toda a tecnologia por conta de uma explosão solar?

Em uma escala menor, qual a lógica de temermos ou nos irritarmos com discussões que não aconteceram? E com ciúmes hipotéticos? E com o que faríamos em situações de perigo improváveis? Ceús, e mesmo em situações relativamente mais prováveis?

Talvez você levante o ponto que, bem, em algumas situações dessas que eu mencionei, há um risco real e há algo que se pode fazer, e eu até concordarei, dependendo do exemplo. Mas o ponto é que entender uma possibilidade de risco é diferente de se preocupar com o risco como se ele fosse um problema real, e se entreter ou contemplar esse cenário na ficção ou como um exercício é diferente de se importar e temer isso de maneira ativa, e é aqui que eu quero chegar, quando falo de maturidade.

Você pode temer ser assaltado. Isso é um medo razoável, considerando a maior parte do mundo. Mas há um limite do que você pode fazer para evitar ser vítima desse tipo de crime, e depois que você já toma todas as precauções possíveis, está fora o seu controle. Assim, qualquer preocupação acima desse risco, especialmente sem evidência, é um alerta para um exagero proposital ou não.

Outro exemplo: não faltam histórias de pessoas que sentem muito ciúmes em seus relacionamentos. Parceiros que olham o celular uns dos outros, temem que tenham certos tipos de amizades, que saiam sozinhos. A explicação seria um temor (ou certeza) de que o mundo oferece riscos para o relacionamento, em geral na forma de um terceiro interessado e, em casos, na incapacidade de confiar em quem está com você. Esses riscos podem ser reais mas, mesmo ignorando dúvidas sobre o valor e estabilidade do seu relacionamento em alguns casos, qual a utilidade disso ser uma preocupação ativa no seu dia a dia, se não há qualquer sinal?

Claro, esses e tantos outros medos em nossas vidas são incentivados porque nós somos seres essencialmente gregários e empáticos. Nós vemos alguém correr um risco e, por nos sentirmos mal por essa pessoa e por nos identificarmos com ela, tememos que o mesmo possa acontecer conosco. Uma possibilidade fica mais realista quando vemos assim. O mesmo acontece com a ficção, e com notícias, e várias outras formas de conhecermos a realidade. Então, se há convencimento o suficiente de um risco, isso basta para termos evidências e, ao termos evidências, nós tememos e tentamos agir em cima do problema que, na prática, segue imaginário.

Nós ignoramos que não importa o quanto de treino nós possamos fazer, a maior parte dos grandes problemas da vida existe em um intervalo fora de treinos específicos e especulações prévias. Nós não conseguimos prever qual será a reação de um assaltante, ou os argumentos exatos que a outra pessoa dirá em uma discussão, ou como será um encontro, como estará precisamente o movimento do trânsito, e mil outros pontos. Mas nós nos ocupamos longamente com essas situações antes que elas aconteçam. E nos colocamos no lugar dos outros, quando contam o que ocorreu.

“Se fosse eu ali, eu faria…”, “se ela me falar sobre tal coisa, eu…”, “nessa situação, eu…”

Note que em todos esses pontos, tal como na nossa infância, desde as primeiras brincadeiras, há tanto o medo, quanto um elemento aspiracional. O que nos aponta uma coisa bem peculiar sobre todos nós: geralmente, quando agimos dessa forma, nós queremos o problema imaginário que está ali, para que possamos solucioná-lo.

Nós queremos ser pessoas que derrotam criminosos. Nós queremos ser pessoas que vencem discussões. Queremos falar frases de impacto, e “colocar os outros no lugar”. Nós queremos vidas emocionantes, dramas cinematográficos e romances perfeitos. Nós queremos o reconhecimento de nossas habilidades, carisma, aparências, conhecimentos e mais.

Só que quando reconhecemos isso, fica claro que, depois de algum tanto que se refira a meios de sobrevivência, nós só estamos fazendo exercícios desse tipo porque nos falta alguma coisa. Porque somos inseguros, ou porque queremos reconhecimento, ou porque queremos nos sentir vitoriosos de alguma forma, ou outros tantos problemas. Nós compensamos o que nos falta com a ilusão de que poderíamos ter, ou com o medo de falharmos exatamente por essa ausência.

Eu digo isso com o conhecimento de causa de ser uma pessoa ansiosa e que, com terapia, conseguiu dimensionar muito das minhas preocupações a partir disso. Eu consigo reconhecer um problema quando ele surge, e consigo ligá-lo a situações problemáticas e desagradáveis. Eu sou precavido, e antecipo dificuldades que podem surgir. Mas eu sei que minha ansiedade também me diz que há muito mais problemas possíveis a partir de nenhuma ou pouca evidência. E é esse ponto que é importante de lembrar.

Eu falei sobre “maturidade” no começo desse texto, e devo reforçar que usei o termo de uma maneira ampla. De um lado, eu me referi à maturidade emocional, mesmo. Da capacidade de entender que nossos sentimentos nem sempre são corretamente embasados na realidade. Da capacidade de entendermos que há uma distância entre o que esperamos do mundo, o que é real, e o que é possível. E, acima de tudo, entendermos que sempre somos tendenciosos.

E aqui vem uma questão importante: qualquer pessoa que adere, por exemplo, a uma teoria de conspiração, precisa necessariamente chegar ao ponto em que deve justificar para si mesma que as coisas em que ela acredita são a verdade, e não apenas uma análise tendenciada com base na expectativa dela sobre algo. E isso não necessariamente acontece de modo consciente e descrito com clareza.

Selecionar evidências a favor da sua tese e ignorar outras que se oponham permite que você justifique qualquer coisa, e é algo que fazemos o tempo todo, com quase tudo, porque existem coisas demais no mundo e somos limitados. E aí os dois pontos que levantei antes brilham: o medo e a aspiração. O teórico de conspiração necessariamente fala sobre algum risco, e se considera minimamente informado de algo que outras pessoas não são. Ele quer fazer parte de um grupo, quer se sentir superior, e quer negar ou justificar uma realidade que ele não entende, ou cuja explicação aceita não atende seus vieses.

Também existe um tanto de “maturidade” que deve entrar, aqui, que é a lógica. A capacidade de duvidarmos de nós mesmos, de mudarmos de opinião, e de analisarmos novos pontos de vida e evidências. Isso é algo que pode ser aprendido, mas também que requer um tanto de discernimento e honestidade.

O teórico de conspiração não tem problemas cognitivos ou mentais. Talvez emocionais e, por vezes, morais, mas nem isso e garantido e, mesmo que presentes, pode ser que eles sejam como os nossos, só que em outro ângulo. E é esse o ponto em que quero chegar. Depois de toda essa volta, o que eu quero dizer, é que quanto menos nos preocuparmos com problemas imaginários e nos focarmos em problemas reais, melhor.

Esse exercício, porém, envolve termos consciência do que são problemas imaginários e o que são problemas reais, e agirmos em cima disso. A incapacidade que temos de diferenciar os dois por vezes complica isso, e permite também que sejamos manipulados. Mas pode ser feito.

Pense assim: os motoristas não precisam ficar reaprendendo a dirigir todos os dias para evitar acidentes, mas sabem como se dirige e aprendem, com aulas e depois com a prática, a lidar com o dia a dia e seus imprevistos. Você, quando anda nas ruas, sabe quais são os riscos, mas você não está procurando ativamente novos problemas todos os dias. É esse o espírito que incentivo.

Se te passam uma teoria de conspiração no celular e as únicas evidências para ela são do próprio celular e elas ou não foram replicadas por fontes mais conhecidas, ou foram ativamente desmentidas, o mais natural não é esperar que a maior parte das pessoas esteja mentindo para você, mas que a mentira seja a própria teoria de conspiração, mesmo que algum fato a que ela se refira seja verdadeiro. Acreditar nisso, assim, se torna uma questão de medo excessivo, ignorância, ou da vontade de que a conspiração seja real, para que você possa saber mais que os outros, se opor a ela, ou seja lá o que for. Imaturidade.

Idem para o ciúmes sem motivo. Idem para a suspeita de crime sem evidência. Idem para o monstro, alienígena, fantasma etc.

Se você temesse acidentes automobilísticos sem qualquer histórico a toda vez que fosse dirigir, diriam que você tem uma fobia, talvez nascida de insegurança. Tenhamos o hábito de ter o mesmo senso crítico com outros problemas imaginários, de discussões que não aconteceram com pessoas que nem existem, até decisões muitas vezes maiores pautadas em problemas que sequer podem acontecer.

A vida real existe. Parece ridículo falar assim, mas é uma verdade que temos que nos lembrar. A vida real tem evidências que podem ser documentadas, e pode ser detectada pelos nossos sentidos. Ela pode ser afetada pelas nossas ações.

Uma empresa de seguros trabalha com possibilidades reais. Com estatísticas. Com evidências. Eles não vendem seguro contra alienígenas, teorias de conspiração ou monstros embaixo da cama. Uma dica, então: se um dia você temer alguma coisa, olhe ao redor, procure evidências, e se pergunte se existe um seguro que proteja você da sua ameaça, especialmente se ela for de fundo material. Se não existir, está aí uma boa referência de que você não está operando com base em um problema da vida real.

Para o resto dos casos, pense bem: esse problema existe porque você tem muito medo que ele aconteça, ou você está com muito medo porque ele acontece? Ou, alternativamente, que falta ele cobriria em sua vida se fosse real, ou se, sendo real, fosse solucionado por você ou por alguém?

As pessoas precisam lembrar que o tédio é um grande incentivador, para o bem ou para o mal. Lembra daquele ditado da "oficina do diabo"? Então…

Se conseguirmos todos manter esses exercícios vivos em nossas mentes, garanto que seremos bem mais maduros em nossas decisões e identificaremos bem mais frequentemente os problemas da vida real.

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Rodrigo Ortiz Vinholo
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Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

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