O truque das moedas no chapéu
Seja na publicidade e marketing, na política, em golpes financeiros ou nas relações humanas, existe um fenômeno que eu costumo chamar de “o truque das moedas no chapéu”, que todos deveriam conhecer, para não caírem em roubadas.
Esse truque é parente de vários defeitos humanos mais conhecidos, em especial o viés de confirmação. Basicamente, quando pensamos em viés de confirmação, nós estamos falando sobre como nós interpretamos o mundo e tudo que acontece de modo a confirmar nossas crenças ou hipóteses iniciais.
Ou seja, nós estamos sempre tentando provar que estamos certos, mesmo sem percebermos. E não precisa ser algo que nós necessariamente nos importamos, e nem é necessariamente desonestidade, como se estivéssemos tentando manipular as coisas. Nós também fazemos isso para coisas que são inócuas, e mesmo para o que sequer gostamos, bastando que nós tenhamos uma expectativa forte o suficiente sobre algo para o viés existir.
O truque das moedas no chapéu é uma técnica de engenharia social que se aproveita do viés de confirmação, e é usada basicamente por músicos e outros artistas de rua, com possibilidades de expansão em incontáveis outras formas, bastando contextualizações mais específicas.
Imagine a seguinte cena: É domingo. Você está andando por uma avenida de sua cidade, aproveitando o clima agradável, passeando, e existem músicos de rua, feirinhas de bijuterias, vendedores de pipoca, e mil outras figuras, além, claro, de outros transeuntes como você. Você, então, vê uma aglomeração. Há um violinista tocando, e as pessoas estão parando para assistir.
À frente dele, no chão, há um chapéu com moedas e algumas notas. Ele toca uma versão de uma canção de rock que todos ali conhecem, as pessoas assistem e algumas que passam acabam parando, acompanhando o ritmo, até cantarolando. Ele termina, todos os presentes aplaudem e alguns jogam mais dinheiro no chapéu. Ele agradece e começa a tocar uma nova canção, agora com o chapéu um pouco mais cheio.
Se você tivesse chegado ali mais cedo, notaria uma coisa engraçada: dentro do chapéu do músico, no chão, já haviam moedas no momento que ele chegou. Talvez até mesmo notas. Não é que ele esqueceu uns trocados ali desde o dia anterior. Ele mesmo as colocou ali por uma lógica: dinheiro no chapéu atrai mais dinheiro no chapéu.
Não é uma mandinga, nem pensamento positivo, mas uma questão de viés de confirmação: nós olhamos o dinheiro, e supomos que foram outras pessoas que deram. Quando nós vemos esse dinheiro, instintivamente, nós criamos motivos para colaborar. Esses variam e se combinam. Alguns deles podem incluir:
- “Esse músico está prestando um serviço e sendo remunerado. Se eu aproveitei a música, nada mais justo que eu também colabore.”
- “Esse músico precisa de dinheiro, e as pessoas estão ajudando, também quero ajudar.”
- “Puxa, esse cara está aí ralando e as outras pessoas deram… Se eu não der nada, vou me sentir culpado.”
- “Esse cara toca bem, e todo mundo reconhece isso. Vou colaborar, também.”
Culpa, vontade de ajudar, pertencimento, são vários motivos, mas o resultado é o mesmo: a chance de dar um trocado é maior se você viu que havia dinheiro ali, e que existem pessoas ajudando.
Você pode se perguntar, então, se um chapéu vazio não poderia reforçar a ajuda através de um sentimento de compaixão, algo assim. Pode pensar, também, que se o chapéu está cheio, você não vai querer colaborar, porque o músico claramente já teve ajuda o suficiente. Mas aí é que é o ponto: geralmente, é mais fácil que ele ganhe se ele tem, do que se ele não tiver, e a lógica para isso não é a mesma que nós aplicaríamos para outras situações, motivo pelo qual nós tendemos a perceber menos que fomos tendenciados a ajudar. Mesmo que façamos por caridade, nós ainda precisamos do empurrãozinho de ver que mais já foi feito.
Se o chapéu está vazio, nós não temos o incentivo do grupo, e nós não temos o incentivo de sermos os primeiros com a mesma força, porque não parece compensar. Pode ser que você nem achasse o músico tão bom, mas você não confiasse o suficiente no seu julgamento e o chapéu fosse o fator de definição. isso porque o viés de confirmação também é apoiado por outra característica humana muito forte: nós somos animais gregários. Ou seja, nós queremos pertencer, e fazemos o possível para sempre nos adequarmos a algum grupo.
O chapéu vazio, assim, poderia inspirar alguns outros argumentos para alguém não doar dinheiro. Alguns exemplos:
- “Esse cara nem é tão bom. Olha só, ninguém tá dando dinheiro pra ele!”
- “Se aquele cara ali der dinheiro, eu dou. Não quero ficar me expondo. Hmm. Não deu. Deixa quieto.”
- “O cara acabou de chegar, tá com o chapéu vazio. Deve ficar um bom tempo aí, na volta eu dou.”
- “Ninguém pediu música ao vivo aqui, e ainda o cara tem cara de pau de pedir dinheiro? Ainda bem que ninguém tá dando dinheiro pra ele.”
Pode ser que você tenha opiniões muito fortes sobre dar dinheiro, ou sobre música ao vivo, ou sobre músicos de rua, e tudo bem. Mas os exemplos que estou dando acima pressupõe que estamos falando de pessoas que tem alguma tendência a dar o dinheiro ou ouvir a música voluntariamente. O chapéu ter ou não dinheiro faz diferença para elas, e é por isso que os músicos e outros artistas os usam.
Sabe o que mais faz diferença? A multidão.
As pessoas que pararam para ver o músico indicam uma coisa: existe ali algo que é digno de atenção. E nós queremos fazer parte de grupos, como eu já disse antes. Se nós olhamos o grupo ao redor e ele parece adequado a nós (note que esse processo nem sempre é racional), nós temos mais facilidade a ficar por ali.
Mudando o cenário, é ainda mais fácil de observarmos: as pessoas têm mais facilidade de ir em lojas em que outras pessoas já estão. Sim, existem as exceções, mas a maioria vai onde tem mais gente. Isso é um fato comprovado por incontáveis estudos e testes. É por isso que nós fazemos inaugurações, pré-estreias, filas e outros meios de encher um ambiente. Não apenas nós geramos conhecimento e experimentação, mas nós ensinamos as pessoas que aquilo é algo que outras pessoas aprovam.
E aí, claro, nós podemos ajustar de acordo com outros objetivos. Um lugar considerado luxuoso e/ou exclusivo, e frequentado por pessoas ricas terá uma barreira de entrada de preço, mas esse preço só será pago se as pessoas tiverem certeza de que só terão semelhantes ali. O que você faz, então? Convida alguém que é influente no meio delas para uma experiência exclusiva, um camarote, uma refeição, e garante que as outras saibam.
Nesse caso, o viés de confirmação e o desejo de pertencimento vão se combinar e, mesmo que alguém for lá e odeie a experiência, existe a chance de que a pessoa continue indo porque o local se torna um marcador de status. Pode ser, até, que ela pense que está errada, que não percebe o que é bom, porque todo mundo mais (ou, ao menos, o líder de opinião usado como referência) parece gostar de lá e ela não quer fingir que não é o caso.
Você talvez já tenha se sentido assim, fazendo uma coisa porque sente que precisa fazer por alguma pressão social, e não tanto porque quer fazer. Talvez sua mãe já tenha dado a bronca, falando algo como “se todo mundo pular da ponte, você também pula?”
A história da humanidade é cheia desses momentos. Nós somos animais simples. E perceber que há a pressão de pares, o desejo de pertencimento e o viés de confirmação pode nos salvar de algumas roubadas, mas nós ainda podemos cair em outras. E aqui entra mais um defeito humano: nós não entendemos estatísticas e números. Nós quantificamos e qualificamos de acordo com nossa experiência pessoal e imediata, muitas vezes acima mesmo de nosso conhecimento.
Se você é pouco exposto a algo em sua vida, você tem mais tendência a subestimar isso. Se você é superexposto, você tem mais tendência a superestimar. Dependendo do caso, e de como é feita a exposição, ou da fonte que foi dada, você também pode subestimar ou superestimar mesmo com uma exposição baixa.
Você já deve ter visto algum golpe financeiro, seja pirâmide ou não, e sentido a tentação de tentar lucrar, de entrar e “sair na hora certa”. Ou, se não, deve ter se surpreendido com pessoas entrando nessas e perdendo muito dinheiro. Fórmulas mágicas, multiplicação de dinheiro por pix, ações milagrosas, criptomoedas supostamente infalíveis… O tempo passa, e os golpes continuam surgindo, por vezes até parecendo piorarem quando as pessoas têm menos esperanças.
Aí que está o ponto: as pessoas que caem em golpes financeiros, muitas vezes, estão fazendo o que é o impulso mais natural, em alguns casos. Claro que elas temem pela própria segurança, mas elas também seguem o que os outros estão fazendo, e ignoram estatísticas porque conseguem ver apenas o que esta em frente aos olhos. “Se todo mundo está dando dinheiro, deve ser verdade. Se todo mundo está ganhando, deve ser verdade.” Elas ignoram a “falácia do sobrevivente”, que, resumidamente, é o foco no resultado que deu certo, não no que deu errado, e ignoram que mesmo esse “dar certo” pode ser facilmente forjado na maioria dos casos.
Os apostadores viram as moedas no chapéu e acreditaram: outras pessoas confiam nessas apostas.
Na política e nas notícias, esse é um fenômeno sempre presente. Nós temos telejornais mostrando todo tipo de desgraça e violência, e eles nos fazem crer que há muita violência, ou que ela está mais intensa, pelo simples motivo de que nós vimos exemplos dela. Se nós mostrarmos dados que apontam queda na violência para pessoas que assistem muito esses programas, é possível que elas não acreditem nos números, porque elas estão todos os dias vendo os perigos diversos do mundo. Ou elas até acreditam que caiu no geral, mas não se sentem assim. Ou elas até acreditam que caiu… mas que a intensidade da violência aumentou, porque elas precisam de algo para confirmar o que atestaram com os próprios olhos. Não adianta você falar que aqueles casos são exceções, porque eles são sempre mais reais que números, ainda mais se você tem alguma experiência subjetiva (ou alguma expectativa) que apoie isso.
Do mesmo modo, nós temos maior tendência a acreditar nas afirmações de políticos que apoiamos, e de pessoas que apoiam esses políticos que apoiamos. E, do mesmo modo, nós tendemos a ignorar o que dizem os políticos que odiamos, e todos que os apoiam. O mesmo, claro, se aplica amplamente a posições no espectro político, partidos, grupos etc. Não importa se for verdade, se for verificável, nós não aceitaremos, ou arranjaremos alguma justificativa que alinhe o que existe com os fatos que permitem a nossa visão de mundo.
E aqui entra a versão política e midiática do truque das moedas no chapéu. O primeiro aspecto é óbvio: nossos grupos vão falar bem do que querem que seja considerado bom, e ruim do que acham que é ruim, e isso vai ditar nossos comportamentos. Mas veja, tudo depende de um pressuposto anterior, como no caso do músico de rua, que é as pessoas serem pressupostas a interagir de um modo ou de outro com a informação que lhes foi entregue.
Não entendeu? Reforço: só dá dinheiro para o músico de rua aquele que tem predisposição mínima para isso. Quem, por qualquer razão, não dará, dificilmente será convencido a fazê-lo. Do mesmo modo, se você apresenta um político para um apoiador, para um opositor e para um estrangeiro que nunca o viu, os dois primeiros terão predisposições específicas, e o estrangeiro possivelmente será neutro em qualquer coisa que se afirme sobre ele, até que seja apresentado a elementos que combinem com seus vieses e preferências particulares.
É por isso que notícias falsas funcionam: porque elas dizem algo que queremos ouvir, então nós não queremos desmenti-las. Nos queremos que elas sejam reais e, mesmo que chegarmos à conclusão de que não são, muitas vezes não temos incentivo para desmenti-las em público ou fazermos um esforço para mitigar a divulgação e os efeitos delas.
Só que é com tudo isso em mente que políticos e a imprensa atuam. O truque das moedas no chapéu, na maior parte dos usos nesse âmbito, entra para jogar uma informação que pode não ser falsa, mas vai contra estatísticas, fatos comprovados, investigações, leis ou qualquer outra questão, mas que representaria algo interessante se fosse verdade.
É fácil usar uma aglomeração pública para falar que um político é popular, porque essa aglomeração mostra pessoas o apoiando. Mesmo que uma pesquisa diga que ele não é popular, nós temos mais facilidade de acreditar no que está nas imagens, mesmo que essas jamais garantam o volume de pessoas que seja necessário para ganhar uma eleição. Nós acreditamos mais na amostragem que existe em um vídeo ou foto, do que em uma amostragem estatística de pesquisa.
Do mesmo modo, a popularidade de uma hashtag na internet nos indica que um assunto é forte. O número de seguidores de um perfil, também. Nós não temos como verificar precisamente a legitimidade das mensagens citando o assunto ou dos seguidores, mas o número favorece a nossa tese, então acreditamos.
E aí, então, quando você é (ou está) pressuposto a agir assim, fica fácil manipularem seu comportamento com qualquer lógica furada. “Não acredite nessas pesquisas, você consegue ver com seus próprios olhos as pessoas que apoiam nosso candidato.” Daí em diante, você até consegue acreditar na tese de que quem fez a pesquisa é mal-intencionado, e acredita em qualquer argumento que apoie isso.
Mais do que isso, aí começa também a chance de ações efetivas serem manipuladas por truques similares.
Pense que você vive em uma comunidade que aprecia muito um político. Quando ele aparece em sua cidade, bairro, igreja, clube, todos vão vê-lo. Se você não tem um motivo em particular para odiá-lo, é capaz que os acompanhe, e que até mesmo vibre junto. Não fazer parte do processo pode ser visto como esnobar algo que é importante para todos. Pior: pode ser adesão ao inimigo. Então você vai. Quando você vê algo que não gosta no político ou nas suas ações, mas vê todos ao redor ainda vibrando, você pensa que está errado, porque, afinal, todo mundo mais está bem com isso.
E o oposto, claro, é bem fácil de acontecer. Pense assim: você pode até não agredir ninguém, mas você provavelmente teria mais facilidade de agredir alguém se soubesse que outras pessoas o fazem, porque pensaria que há um motivo. Mesmo um xingamento na rua ou em um lugar privado. E não estranharia se alguém a agredisse, porque, afinal, você sabe que essa pessoa é odiada, então era apenas questão de tempo. Se alguém é persona non grata e todo mundo ouve falar disso, há algo que está implícito: as pessoas que não gostam são “os outros”, e você é sempre “os outros” dos outros, também.
Mas e se a pessoa que você apoia for agredida? Aí é claro que ela só pode ser agredida porque alguém que você odeia, por razões mesquinhas e más o fez. Sempre é por dinheiro, ou por diferenças políticas, ou para calar a pessoa, ou qualquer outra assim. Nunca é por qualquer uma das razões que a pessoa que você odeia poderia ser agredida.
O inimigo ser atacado é um fato da vida, algo esperado, é culpa do inimigo. O aliado ser atacado também é culpa do inimigo. Entendeu como a flecha da culpa só aponta para um lado?
Ou seja, se você convence as pessoas suficientemente que uma pessoa é amada, é mais fácil de que elas a amem e a ajudem. Se você convence as pessoas suficientemente que uma pessoa é odiada, é mais fácil de fazer com que elas a odeiem e a ataquem. Pode ser que elas tivessem as mesmas opiniões independentemente do que você disse, mas quando elas veem que há um comportamento de público, e uma permissão implícita, elas seguem e até intensificam.
É difícil, eu sei, mas sempre pense assim, antes de agir: eu vou jogar essas moedas porque eu quero, ou porque o chapéu já tem outras moedas?
Ah, e se você acha que é imune a propaganda e manipulação, tenha certeza de que você provavelmente é mais suscetível do que a média das pessoas. O mais comum é as pessoas acharem que não são manipuláveis.