O preconceito com o valor do conhecimento que eu não domino
Eu notei que eu tenho um preconceito. E ainda que não seja dos grandes, daqueles que são (devidamente) crimes, é um que consegue ser bem abrangente. Então ele é, a seu modo, grande. É intenso, profundo e antigo. Mas não é crime.
Eu tenho preconceito com pessoas cujas áreas de atuação e conhecimento não são aquelas nas quais eu atuo, ou que não são aquelas pelas quais eu tenho interesse.
Admitir qualquer preconceito é feio e estranho, e o faço com a promessa de melhorar, mas também quero aproveitar a ocasião para falar alguns pensamentos que tive sobre preconceito, ao pensar sobre essa questão.
Como geralmente acontece com preconceitos, por muito tempo eu sequer percebi que eu o tinha. Não era uma decisão consciente. Mas recentemente eu notei que tendo a pensar — sem qualquer evidência — que pessoas com certas formações, ocupações e interesses são menos inteligentes, capazes e/ou emocionalmente maduras e profundas. Outra maneira de pensar isso é observar que eu tendo a ter essas percepções ao notar que alguém não tem as formações, ocupações e interesses que eu valorizo.
Basicamente, é o processo de identidade implícito em preconceitos. Eu valorizo o semelhante e desvalorizo o diferente.
Entendo que parte dessa percepção é herdada de visões sociais sobre o valor dado a trabalho. Se uma atividade gera pouco retorno financeiro, ou necessita pouca qualificação, mesmo que eu saiba que a vida seria mais difícil sem ela, eu noto que tenho preconceito. Sei que São Paulo não funcionar sem motoboys, que eu mesmo dependo muito deles, e que hoje é praticamente uma profissão de risco, mas tenho consciência de que penso menos da ocupação. Eu sei que a cidade pararia sem o trabalho dos catadores de lixo e garis, mas algo em mim segue vendo a atividade como um subemprego.
A percepção de que algumas pessoas não são tão eficientes quanto poderiam ou que atrapalham também me incomoda. Eis o caso dos motoboys de novo: mesmo sabendo que eles trabalham com prazos curtíssimos, pagamentos baixos e inúmeras dificuldades, incluindo uma taxa de mortalidade elevada, continuamente me irrito com suas buzinas, seu tráfego entre os carros e várias outras questões. Na hora da vida prática, ao encontrá-los e enfrentá-los como questões do dia a dia, como estou tratando individualmente de mim e de um ou alguns motoqueiros, toda a importância deles como grupo desaparece completamente.
Outra parte considerável do preconceito não tem tanto a ver com valor agregado, eficiência ou inconveniência, mas com natureza da área de especialidade. Minha mente, com seus preconceitos, valoriza trabalhos que requerem esforço mental intenso e esforço artístico. Para os outros, acaba sendo diferente, de modo que eu tendo a ter preconceito com quem trabalha com atividade física, mesmo sabendo que essa pessoa pode ter tido formações enormes, e que seu esforço de didática possa ser único.
Também há o universo de interesses. Eu tendo a valorizar tanto pessoas como áreas que tenham relação com coisas que eu gosto, direta ou indiretamente. Eu entendo que as pessoas gostem de esportes, mas eu ligo tão pouco para eles — e, em alguns casos, realmente chego a desprezar o nível de atenção e esforço despendido em torno de atividades esportivas — que relaciono o mesmo julgamento a pessoas.
Eu confesso ter um pouco de medo de colocar essas coisas em palavras, porque eu temo que as pessoas pensem mal de mim, especialmente as que são alvo do meu preconceito. Mas eu entendo que admitir e colocar em papel — ou tela de computador, no caso — é um bom modo para que eu trabalhe isso e para que eu permita que as outras pessoas percebam também. E, falando em perceber, tudo isso aqui não é uma confissão de um emocional culpado, mas realmente uma tentativa de desvendar como algum tanto de nossos preconceitos e elitismo funciona.
Eu pensei por muito tempo e percebi uma coisa importante: A base do meu preconceito, como com todos os outros preconceitos, é a ignorância.
Em parte, a ignorância de como as coisas se encaixam no mundo. Eu falei de garis, catadores, motoboys, e poderíamos falar de inúmeras outras ocupações, mas creio que o exemplo mais recente que temos é dos caminhoneiros. O Brasil quase parou quando eles decidiram parar. Faltava combustível, havia uma tensão social muito forte. Só que eles são invisíveis para mim. Raramente preciso pensar nos caminhoneiros ou no trabalho que eles fazem
E aí tenho que pensar em outro aspecto do meu preconceito, que é o desprezo pelo conhecimento que eu não domino ou pelo qual não me interesso. E isso também nasce de ignorância.
Claro, não sou um preparador físico ou um professor de academia e não tenho interesse em ser, mas não saber o nível de detalhe necessário para o trabalho deles me distancia da experiência e facilita meu julgamento. Do mesmo modo, eu jamais seria capaz de fazer uma cadeira, mas eu tenho que tomar cuidado para não desvalorizar o trabalho de um artesão que o faz, simplesmente porque ele não é uma pessoa dos livros, das palavras, como eu gosto de pensar que sou e gosto de valorizar em outras pessoas.
Todo mundo pode virar bidimensional em um instante, junto com suas ocupações. É fácil apagarmos os esforços que desconhecemos. É fácil acharmos que o que conhecemos e não sabemos fazer — mesmo sabendo que não sabemos — é fácil, nos dando a desculpa de que só não fazemos porque está abaixo de nosso nível intelectual e/ou não nos interessamos de verdade. Mas aí nós, por exemplo, temos um problema no carro e procuramos o especialista que tratamos discretamente como um ser bronco e subhumano em qualquer outra oportunidade.
Existem muitas soluções que existem por trás de tudo que está aqui. Maneiras que posso usar para lidar melhor com minha relação com o mundo e com as pessoas, maneiras como posso manter minha coerência e o respeito que gosto de pensar que tenho por todos, sem condicionais absurdos. Mas eu sei que, primeiramente, o trabalho que farei será intelectual, antes que seja emocional.
Nós, geralmente, procuramos argumentos intelectuais para embasar nossos sentimentos sobre as coisas. Eu teria mil argumentos para menosprezar o trabalho, por exemplo, de alguém que trabalha como telemarketing em uma empresa, mas eu sei que a grande maioria desses argumentos, mesmo que eu negue, estão relacionados puramente a justificativas para as memórias de raiva e frustração que eu tive desses atendimentos, de situações que inúmeras vezes não tinham relação direta com a atuação desses profissionais.
A partir do momento em que entendemos que nossos argumentos estão sendo permissivos aos nossos sentimentos, é questão de reavaliar o que realmente é fato e o que é opinião.
Eles estão sendo maus profissionais, ou estão presos a uma estrutura problemática? Eles são desqualificados, ou eu que não entendo a qualificação deles? E mesmo que forem maus profissionais, e mesmo que forem desqualificados, isso realmente afeta o valor deles, e realmente merece o esforço de preconceito que eu relaciono a eles?
Outro dia, pensando em maneira mais ampla sobre preconceito, eu cheguei em um conceito interessante: preconceito pode ser entendido simplesmente como duvidar que a experiência de uma pessoa seja real, unicamente porque não é sua.
São modos diferentes de aplicação, mas entendo que seja uma lição importante de aplicar para qualquer ocasião do tipo.
Não sou uma pessoa que sofre preconceitos, em linhas gerais. Estou longe de praticamente todas as realidades das quais existem preconceitos predominantes, e tenho uma vida privilegiada o suficiente — não só por meus esforços — para amenizar sofrimentos diversos. E eu entendo que tudo isso me ajuda a ter preconceito, e reproduzir para outras pessoas. Mas eu acredito que minhas observações têm seu valor.
E não, eu não agrido ninguém, nem xingo, nem mato, nem faço qualquer ação que seja uma agressão aberta. Mas eu sei que, a partir do momento em que tenho um preconceito e um julgamento, eu vou agir de maneira diferente em relação àquela pessoa, ou à ideia ampla de sua categoria de atividade conforme for identificada. Então é algo que continuarei a observar. E a pensar a respeito.