O poder das coisas que não existem
O que é “honra”? É um objeto sólido? Você consegue segurar uma honra? Você consegue medir as propriedades físicas da honra? E, mais, se você perguntar o que é para pessoas diferentes, elas darão respostas uniformes?
Tá bom, estou forçando a barra. Claro que todos nós sabemos que honra não existe. Não no mundo físico, ao menos. É um conceito que parte do mental, de um tipo de ideal de relação entre coisa e pessoas. Só que, como a história pode nos demonstrar incontáveis vezes, essa coisa inexistente influenciou o mundo físico intensamente.
Eu ouso dizer que, se observarmos um dia de nossas vidas, as coisas que não existem são quase tão importantes quanto as coisas que existem. Talvez até mais. E isso funciona de modos tão automáticos que nós sequer notamos que estamos lidando com coisas que não existem.
Nem vou entrar nos méritos de nossa formação de sociedade, línguas e religiões, que acumulam incontáveis convenções e pressupostos. Vamos para coisas mais simples: o trânsito.
Quando andamos no trânsito, nós temos uma coleção de linhas, placas, postes, e eles fazem com que tomemos diferentes decisões. Nós temos uma separação do espaço físico através de símbolos que nos treinamos a reconhecer. Só que há algo que se desdobra acima de elementos físicos que não o é.
Nós obedecemos uma placa que diz “pare” por vários motivos. Um deles é porque não queremos levar uma multa, que é uma cobrança do mundo físico para uma violação de um comportamento físico baseado em uma ideia. Afinal, uma “convenção” é também impalpável, ainda que exista como um registro em nossas mentes, em papel e em computadores.
Outro motivo para obedecermos a placa de trânsito, bem como as outras sinalizações, é porque sabemos que o tráfego vai funcionar melhor se todos fizerem isso, na medida do possível. Ou porque temos um senso de vida em sociedade. Ou porque temos medo da possibilidade de um acidente. Todos esses motivos, entre vários outros, são coisas que não existem, são ideias se refletindo no mundo real.
Tudo isso é bem óbvio, né? Talvez interessante, porque é um fenômeno naturalizado ao ponto de pensarmos pouco a respeito, mas ainda óbvio. Eu gosto de apontar e pensar sobre o óbvio, porque ele é importante justamente por ser tão visível que se torna invisível.
Agora vamos brincar um pouco diferente: lembra que eu perguntei se “honra” existe com uma resposta uniforme e ficou claro que isso não acontece? Pois é, o mesmo acontece para todas essas coisas que “não existem”. Diferentes filosofias, culturas e épocas vão dar diferentes valores para todas essas coisas.
Eu, no momento em que escrevo este texto, sou um homem brasileiro de 35 anos, que mora em São Paulo, SP, Brasil. Eu sou branco, heterossexual, cisgênero. Eu trabalho com publicidade e com literatura. Eu tenho uma noiva. Todas essas coisas sobre mim envolvem algum tanto de coisas que existem e que não existem, e só de ler você provavelmente pensou em mais outros tantos de coisas que existem e que não existem a meu respeito, tudo por desdobramento desses pontos.
Suas suposições, claro, vão depender de quem você é, e de suas experiências passadas com pessoas com características como as minhas. É como nós vivemos no mundo, e não tem nada propriamente errado com isso. Discutivelmente, o problema só poderia existir no que você escolhesse fazer com essas informações.
Mas enfim, vamos focar em um detalhe: o que é um homem? Alguns, aqui, vão recorrer a definições da biologia para tentar dizer que é um “adulto do sexo masculino”. Ou talvez falem do meu pênis. Ou talvez falem sobre meus cromossomos. Essas ideias, que partem de observações do mundo físico, fariam algum sentido na vida real se nós fôssemos uma espécie que ignora o que “não existe”.
Alguém aqui talvez se irrite e tente me acusar de “ideologia de gênero” ou alguma coisa parecida, mas eu já antecipo: o que eu vou apontar abaixo é a ideologia que quem mais reclama da tal “ideologia de gênero” geralmente usa.
O que quero dizer com isso: eu, nas minhas três décadas e meia de vida, já ouvi incontáveis definições sobre o que significa ser um homem. Várias delas incluem a noção de que um homem só é um homem “de verdade” se ele gosta de mulheres, por exemplo. Ou seja, para essas pessoas, não basta a biologia, já é necessário também ter um tipo específico de atração como delimitador.
Mas, é claro, esse mesmo pessoal vai tentar apelar para a natureza, dizendo que é assim que animais se comportam, que reprodução precisa disso etc. Só que aqui já temos um problema de definição: se ser um homem não é algo inato, mas algo que depende da ação, isso significa que a definição do que é um homem depende de algo que “não existe”, mesmo que isso possa ser reproduzido no mundo real.
Se, nessa lógica, um homem é uma base biológica exercendo uma função de atração, um religioso celibatário não seria um homem? Ninguém diria isso, porque aqui entram outras coisas que “não existem” definindo o que é um homem. Convenhamos, muitas vezes na história nós, enquanto sociedade, já questionamos a própria essência de um homem se ele não usasse calças, por exemplo.
Nós definimos um homem por seu nome, suas roupas, por suas ações, por seu corte de cabelo (ou ausência dele), por sua barba (ou ausência dela), pelo tom de sua voz, pelo jeito que se movimenta. Nós temos incontáveis rituais que definem a completude do que significa “ser um homem”. Do mesmo modo, um homem que for tímido ou quieto pode ser visto como “menos homem”, e suspeito, a partir disso, de ser gay, seja pela fuga de um comportamento entendido como heterossexual, ou porque o gay é considerado por algumas pessoas como um “menos homem”. Complicado, não?
Uma alternativa, já muito explorada por filósofos de campos diversos, é que há uma tentativa de colocar a mulher como “não-homem”, fazendo com que qualquer comportamento ou característica atribuídas a mulheres sejam, assim, não-masculinas. O oposto, se forem notar, geralmente não ocorre: o homem não é tratado como “não-mulher” ou “não-feminino”, reforçando então a ideia de masculinidade como o elemento definidor de todo o comportamento humano, mas ao mesmo tempo a deixando extremamente vaga.
Isso não apenas não faz o menor sentido, como é sujeito a todas as inconsistências que já apontamos e, francamente, também abre a porta para outra questão óbvia a respeito da definição clara do que é “mulher”, bem como “feminino”. Mas estamos falando de homens, aqui, e não vou entrar nesse campo diretamente para não nos alongarmos mais do que o necessário.
Eu mesmo já ouvi as definições mais estranhas possíveis sobre o que “não é coisa de homem” ou “é coisa de gay”. Eis uma pequena lista composta de várias das afirmações que já tive a infelicidade de testemunhar no decorrer dos anos:
- Não gostar de futebol
- Não gostar de esportes
- Não ligar p/ carros
- Não comer carne
- Não beber
- Não dirigir
- Ter amigas
- Usar roupas coloridas
- Usar brinco
- Ter tatuagem
- Praticar Yôga
- Gostar de tarô/astrologia
- Gostar de gatos
- Sorrir
Muitos que lerem essa lista vão discordar de vários pontos, ou talvez de todos. E eu reforço: nada disso que está aí define o que é um homem e, como eu já disse antes, essas coisas vão variar com épocas, culturas e outros elementos. Ou seja, no máximo, essas ideias ajudam a definir o retrato do conceito de “homem” em um local e momento da realidade.
Isso nos deixa com dois cenários possíveis: ou um comportamento essencialista sobre o que é um homem, ou a conclusão de que a definição de “homem” funciona de modo similar às leis de trânsito, ou seja, referenciais que atuam sobre nossas ações no mundo real, mas seguem sendo arbitrárias.
Eu já devo excluir aqui o posicionamento essencialista como viável por uma questão muito simples: assumí-lo significaria ter que assumir, por coerência, essa mesma visão com tudo mais. Se o que “não existe” for ignorado para essa definição, a categorização de qualquer outro comportamento social deverá ser ignorada. E eu sei que ninguém conseguirá fazer isso, nem estará satisfeito com uma vida assim.
O que nos deixa com o entendimento de que ser um homem é uma convenção social. Óbvio, isso não muda minha biologia, mas já ficou bem claro aqui que não há ninguém no mundo que ache que ser um homem é puramente uma questão biológica. É por isso que, por mais que alguns odeiem, existe a definição de “gênero” separadamente de “sexo”. E se esse apontamento te incomodou, reforço que eu já disse ele no parágrafo anterior com outras palavras e todo o raciocínio até aqui nos leva a essa conclusão.
Então tudo bem, você aceitou ou não esses pontos. Pode ser que nada disso seja importante para você, e sei que não vou ser eu quem vou fazer ser ou não importante. Mas tudo que eu apontei aqui, além de ser interessante, é útil por um ponto muito específico: a partir do momento em que nós entendemos a subjetividade dessas ideias, nós ganhamos liberdade.
Convenhamos, isso não é novidade alguma, mas outra vez eu digo o óbvio porque nós acabamos esquecendo disso: se nós, como sociedade, estamos evoluindo para entender que um homem ser gay não o faz “não-homem” e que, na mesma lógica, várias coisas que no passado dizemos ser “de gay” são independentes de orientação, há algo importante para ser procurado em outros possíveis erros. Se entendemos mudanças incontáveis de comportamento, abrem-se perspectivas para analisarmos o que podemos estar limitando sobre nossas próprias visões sobre nós mesmos.
Identidade é mais uma das coisas que “não existem”, mas ela, como tantas outras, define a realidade de formas incríveis. Nós gostamos de definições, da organização que elas trazem, mas elas também trazem limites, e muitas vezes não estamos enxergando de verdade o que queremos no mundo.
Existem pessoas que se importam muito com identidade, explorando rótulos e visões sobre elas mesmas como um meio de encontrar o que podem sobre si mesmas. Não há nada de errado com isso, e fazemos isso de um jeito ou de outro discutivelmente por toda a vida. Existem outras pessoas que lutam para até mesmo abolir essas ideias, dizendo que cada identidade, cada rótulo, é um limitador. Eu estou com os dois grupos, de certo modo. Eu acho que jamais escaparemos de vários dos rótulos e noções, porque eles são ligados demais a fundamentos de nossa sociedade, incluindo até cultura e língua. Mas eu concordo também que quanto mais nos apegamos no que “deveríamos” ser por conta de referências externas — que são frequentemente antiquadas, ridículas, bem como idealizadas e, portanto, inatingíveis — , maior o nosso sofrimento, tanto no que impomos em nós mesmos, quanto nos outros.
No fim, claro, a decisão sobre cada um é de cada um, mesmo que sempre existamos de algum modo em comparação com os outros. O que eu sei, com toda certeza, é que é muito mais agradável viver nos meus próprios termos, em vez de naqueles de quem me odeia e despreza tudo aquilo que gosto, faço e sou.