O paradoxo do alcance
A internet e as redes sociais criaram várias soluções e vários problemas. A questão é que as maiores facilidades estão nos levando a um caminho perigoso, que eu sintetizo no que chamo de “paradoxo do alcance”.
Em resumo: o que mais tem potencial de alcançar as pessoas em redes sociais é o que tem maior poder de fazer com que reajam, mas o que alcança mais pessoas e gera mais reações são as versões mais exageradas ou simplificadas da realidade, o que leva a uma realidade mais extrema para que consigamos engajar com ela.
Ou seja, o que gera maior alcance transforma a realidade para que ela se adeque ao que gera mais alcance.
Parece um papo meio esquisito? Talvez. Vamos conversar.
O termo “algoritmo” não deve ser estranho para você que está lendo. Se você passa algum tempo em redes sociais, já deve saber que há um complexo sistema de configurações para distribuição de conteúdo a partir dos seus interesses, dados demográficos, hábitos, histórico de uso, histórico de compras etc.
Basicamente, o algoritmo mapeia o que é o melhor conteúdo para mostrar para você e para cada um dos outros usuários, e ele distribui de acordo. Nisso entram vários fatores, que podem ser resumidos em duas grandes frentes: conteúdo e formato.
“Conteúdo”, dito amplamente, se refere a qualquer material produzido em redes sociais. Aqui, porém, eu me refiro ao sentido clássico da palavra, o assunto que foi abordado, as imagens que surgem, os sons que são feitos, o viés que surge. Se você gosta de arte, o algoritmo vai entender que você gosta de conteúdo sobre arte. Se você gosta de futebol, futebol, e assim por diante.
Já “formato” se refere, em um primeiro nível, ao conteúdo em questão estar em vídeo ou foto. E aí o algoritmo mede e vê a melhor resposta a cada formato e distribui de acordo. Mas isso vai além e inclui também, claro, a duração do conteúdo, o uso de música, o uso de voz, e vários outros fatores de acabamento.
Falando de uma maneira simples, então, o conteúdo que chega até você é sempre parte de uma curadoria constante e automática. Você entra em redes sociais e só vê conteúdo que tenha minimamente alguma conexão com seus hábitos, e isso inclui seus ódios, porque ódio também é engajamento. O algoritmo entende que o que odiamos também é parte dos nossos gostos, porque gastamos tempo fazendo uma interação com essas coisas, e de certo modo não está errado em “pensar” assim.
E aí talvez você já tenha notado um problema, aqui: as redes sociais são uma máquina de fazer com que as pessoas gerem engajamento em todos os sentidos, e tem uma super-curadoria para isso… mas se só vemos o que é garantido que nos gerará interações, nós não temos a chance de acabar nos especializando? A resposta é, claro, “sim”.
O algoritmo alimenta viés. Se você gosta de determinados assuntos, raramente vai ver o que seja fora de sua bolha e, se acabar vendo, é porque algum amigo ou familiar compartilhou. Ou seja: ainda está na sua “bolha”, no seu viés. Na maior parte dos casos, nada furará sua bolha de maneira excessiva. E mais: a máquina está também te entregando o formato que sabe que você vai consumir.
Nos últimos anos, o formato de vídeo se popularizou ainda mais, e o TikTok tomou a frente em mudar todo o mercado para terem formatos assim, incentivando a criação de vídeos curtos. E aí criadores de conteúdo começaram a fazer mais vídeos, e o algoritmo entendeu que esses eram mais relevantes, e agora temos as redes sociais repletas de vídeos curtos.
Existem estudos que apontam que a alta velocidade das redes está influenciando nossas mentes e expectativas. Nosso nível de atenção está se configurando para vídeos curtos. E aí surge uma questão: o quanto somos nós que preferimos vídeos curtos e o quanto os vídeos curtos se impuseram sobre nós?
E, mais, chegamos a um problema, e aí começamos a entrar no próprio paradoxo: se um criador de conteúdo sabe que seu material só vai ser entregue para o público se ele for um vídeo curto, ele naturalmente tem um incentivo maior para fazer um vídeo curto. Você enxerga o ciclo?
Os criadores fazem um vídeo curto que acaba tendo maior alcance porque é incentivado pelo algoritmo, o algoritmo acostuma o público a ver vídeos mais curtos, o público espera vídeos mais curtos, os criadores fazem vídeos curtos para atender o público e o algoritmo. A cobra come o próprio rabo.
Isso não quer dizer que conteúdo longo não funcione mais. Os podcasts/videocasts estão aí para mostrar isso, mas eles são naturalmente material para um foco maior. O que chega no dia a dia é curto, rápido, pá-pum, sem grande compromisso, e acaba por influenciar até o que vemos de mais longo.
Ainda em formatos, várias outras técnicas acabam favorecidas. Texto na tela, certos sons, certas músicas, algumas chamadas. Um vídeo político chama mais atenção com letras garrafais denunciando e alguém gritando do que algo comedido. Um vídeo engraçado leva certas músicas e efeitos sonoros. Cria-se uma linguagem audiovisual que é entendida pelo público e pelo algoritmo, que entende o que está em alta.
E então nós temos o conteúdo em si. Lembra o que eu falei sobre entrega de conteúdo de acordo com preferências e vieses? Pois bem: o mesmo acontece aqui. A cada época, diferentes assuntos ficam em alta e acabam tendo maior alcance. E com ou sem recorte temporal, certas teses, assuntos e abordagens acabam sendo favorecidos.
Exemplo simples: em um país cristão, um conteúdo cristão vai ter uma entrega melhor que um conteúdo budista. Do mesmo modo, algo que fale contra o cristianismo pode ser entregue para cristãos para que eles se enfureçam e engajem mais.
Só que aí que vem o pulo do gato: diferentes vieses formam diferentes bolhas, e alcançam usuários de formas diferentes. Ou seja, claro que vai existir, por exemplo, uma tendência maior de moda, mas um subgrupo de moda pode ter suas próprias tendências que não chegam em outros.
E aí, especialmente em notícias, política e assuntos correlatos, surgem questões bem peculiares. É muito comum que a bolha aderente a um grupo político seja naturalmente isolada de outras. Apesar dos ódios, a aderência — e a entrega de conteúdo — é fechada, exceto por alguns assuntos de apelo amplo, ou polêmica ampla. E isso gera, claro, incentivo para criadores de conteúdo especializados para cada frente.
Ou seja, nós temos então fórmulas de formato e fórmulas de conteúdo, e o incentivo para produção… e, na prática, o desestimulo para aqueles que não seguem as tendências.
Se a minha bolha consome conteúdo em formato x, sobre o assunto y, com o viés z, e eu tento mudar algum desses parâmetros, o mais provável é que o algoritmo não seja mais tão generoso comigo quanto se eu seguisse a cartilha do momento.
E aí existe a concorrência. Todo mundo produz conteúdo de alguma forma, e cada nicho possui seus destaques. Forma-se, então, uma competição consciente ou não, que vai gerando um tipo de seleção natural. Os produtores de conteúdo e os usuários se adaptam a cada novo estímulo, e com o excesso de informações, o que gerar mais engajamento é o que sobrevive, o que quer dizer, na prática, o que gerar mais estímulo de engajamento.
Digamos, então, que surge um projeto de lei para ser votado. O que você acha que vai ter a melhor entrega: um vídeo calmo, ponderado e bem embasado com um jurista explicando as implicações dessa lei… ou um vídeo agregando memes em que alguém, aos berros, denuncia em segundos aqueles que propuseram e defendem o projeto? O que é mais interessante, um prato de arroz empapado e sem tempero ou uma barra de chocolate?
O algoritmo preferirá sempre a visão extrema, e o alcance do conteúdo extremo será melhor. Isso leva todas as pessoas a serem afetadas, seja quem está em uma posição indiferente e quem já está enviesado. A diferença é que quem já está enviesado tenderá a uma visão cada vez mais extrema, e reações de acordo, tendo a visão da posição oposta igualmente enviesada, porque é mais fácil entregar uma explicação superficial e exagerada dos seus opositores do que humanizá-los. Dá trabalho humanizar os outros, ainda mais se você já os odeia.
E, mais, mesmo quem reconhece uma visão extrema, mesmo que não seja aderente ao oposto, ajuda a divulgação dessa ao se opor, porque isso também é favorecido. O alcance da mensagem é reforçado não interessa o que aconteça… exceto se, claro, ela for completamente ignorada.
E aí que está a questão: nós vivemos em um universo complexo, com sociedades complexas, e as pessoas são complexas. Raras são as explicações que fazem sentido completo por si sós em poucos segundos. Nenhum meme consegue o resumo ideal de algum fato.
Então se nós temos uma informação falsa (ou, se não totalmente falsa, ao menos enviesada), e a explicação para desmistificá-la é longa e/ou não é compartilhada em nossa bolha… bem, o viés não vai embora. Ou, ainda, ele pode até piorar, porque se a resposta correta é muito diferente da que estamos acostumados, nós tendemos a pensar que são nos enrolando.
Só que nada disso fica só na internet. Nós vivemos em dois mundos, e os vieses ultrapassam barreiras. Se nos acostumamos ver o mundo de certa forma, não basta a realidade nos contradizer, porque vamos filtrar para o que queremos. Qualquer contradição será vista não como a verdade, mas como um erro da parte dos outros.
O que fazer, frente a isso? Nenhuma das saídas é fácil, muito menos garantida. As redes sociais não vão embora, e nossas necessidades de atenção e validação também não.
Responder no mesmo formato é quase impossível. É possível, até certo ponto, tentar explorar um formato apelativo, mas caímos em alguns problemas: o primeiro, mais evidente, é que a visão deturpada quase sempre é mais interessante do que a verdade sobre um fato, então não há como competir com a emoção de algo que atenda os anseios de quem só procura uma verdade filtrada. E, em segundo lugar, há a questão de que uma simplificação dos fatos gerará novamente o mesmo problema.
O algoritmo segue nos levando a extremos estranhos e formatos enviesados, e temos indicações que há alguns tipos de extremos mais apelativos do que outros. Alinhar todo nosso conhecimento dessa forma é nos rendermos a uma idiotização do conteúdo como um todo, que prejudica todo o ecossistema de comunicação.
Evidentemente o problema está nos algoritmos e, por consequências, em nós. Mas os usuários são o lado fraco da corrente, então estamos lascados: ninguém vai protestar ou boicotar redes sociais porque elas se tornaram partes de nossas vidas, e porque a grande maioria de nós não tem interesse. As empresas de tecnologia, que lucram com esse comportamento, também não se importam e, francamente, não há vontade política para qualquer regulamentação que seja verdadeiramente efetiva.
Talvez eu esteja pessimista, mas acredito que estamos caminhando para um colapso social, ou uma série deles. Cada vez mais nós temos pontos de dissonância entre nossas identidades, posições políticas, entendimentos sobre a realidade e mil outros pontos. Nossas bolhas de internet são reforçadas por nós mesmos em nossas realidades, mas quando não há sustentação, surgem pontos de ruptura.
Quando a ruptura for grande demais, um dos lados — a vida real ou a vida online — vai ter que ceder. E provavelmente não vai ser algo bonito de se ver. Ou nos alienaremos tanto que quebraremos a cara, ou tentaremos alienar a realidade à nossa imagem e semelhança.
De um jeito ou de outro, as redes sociais continuam enchendo os bolsos de dinheiro.