O menos do outro não aumenta o seu mais
Igualdade é bom, mas não quer dizer que as pessoas devem ser iguais. As pessoas devem ter direitos iguais, claro, devem ser iguais perante a lei na medida do possível, mas elas não são iguais.
Então, para que as pessoas possam ter igualdade, nós precisamos tratar elas de modo desigual em alguns momentos, e isso por vezes é difícil de entender. E fica ainda mais estranho quando achamos que alguém tem até que ter as mesmas desvantagens que a gente.
Vamos entender:
Quando alguém quer falar que todos somos iguais, idênticos, que ver as diferenças que existem entre nós é uma coisa ruim, desconfie: ou essa pessoa não sabe o que está falando, ou ela quer fingir que não existem as diferenças, e isso geralmente vai a favor de algo que favorece ela ou uma visão de mundo do que ela achar que é “normal” e universalizável. E isso vai gerar problemas.
Dizer que as pessoas são iguais é complicado, porque elas não são. Nós somos idênticos em necessidades básicas, claro, e em uma generalização de nossa condição humana.
Mas mesmo se ignorássemos nossas diferenças físicas em todos os sentidos, nós temos personalidades, gostos, culturas, línguas e mil outras coisas diferentes. Há diferenças de gênero, de faixa etária, de religião, e incontáveis outras que vão definir muito do que somos e podemos ser. Sem falar, claro, que convenções sociais diversas tornam as expectativas sobre as pessoas muito diferentes.
Quando falamos de igualdade, então, nós temos que falar sobre as pessoas serem tratadas de modos equivalentes. Temos que falar que, apesar de termos as nossas diferenças, seria bom se pudéssemos todos ter um tratamento justo.
O que as pessoas confundem é que, quando falamos de igualdade enquanto um ideal, nós não estamos falando de tratar todas as pessoas de modos iguais, porque, já que as pessoas são diferentes, tratá-las de modo idêntico significaria fazer com que existissem necessidades e limitações que ficariam sem atendimento, já que não há atendimento idêntico que resolva todos.
Aqui, algumas pessoas gostam de diferenciar a igualdade da equidade. Em linhas gerais igualdade seria buscar garantir a mesma solução para todos, enquanto equidade seria buscar solucionar os problemas de todos com soluções diferentes.
Pense em um avião. Igualdade seria se todas as pessoas recebessem a mesma comida, ou as mesmas opções, ao menos. Essas refeições atendem a maior parte das pessoas, mas imagine que existem pessoas que não são atendidas por elas, seja porque têm restrições de dieta, ou motivos culturais, religiosos ou filosóficos para não comer o que é oferecido. Equidade é quando essas pessoas podem ser atendidas com suas necessidades específicas.
Para muitas pessoas, em especial quem é atendido pelas refeições comuns, as exceções podem parecer estranhas, ou até problemáticas, se não enxergarem uma justificativa como boa o suficiente, e por vezes mesmo assim. O diferente acaba sendo lido como um “atendimento especial”, como um favoritismo.
O que essas pessoas não entendem, ou não querem entender, é que quando essas outras pessoas ganharam a liberdade de comer o que querem ou podem, elas também ganharam. Todos foram beneficiados, todos ganharam mais liberdade.
“Bem, mas eles não querem, nem precisam dessa comida.”
Sim, mas eis o ponto: liberdade fala sobre possibilidade.
Eu não estou favorecendo a pessoa que não come carne ao oferecer a ela uma refeição sem carne. Eu estou garantindo o mínimo para que ela tenha bem-estar. Se ela tivesse que levar sua própria comida, ou não tivesse o que comer ali, certamente seria inconveniente para ela, e ela se sentiria segregada.
Se eu disponibilizo a refeição sem carne, ela também se torna uma opção para o onívoro que quiser escolhê-la, nas mesmas condições que o vegetariano. Implicitamente, ao acomodar essa diferença, eu estou garantindo que diferentes tipos de pessoas possam ter tratamentos equivalentes.
“Mas é favorecimento porque algo teve que mudar para isso acontecer.”
Não, não é.
Favorecimento implica vantagem. Se estamos indo da ausência para o cumprimento do básico, nós, por definição, não estamos favorecendo alguém.
Nós antes tínhamos algumas pessoas que podiam comer livremente, e outras que podiam se adaptar. Nós passamos a ter uma situação em que todas podem comer, e ainda há até uma vantagem para a pessoa sem limitações, porque ela segue sendo tratada como um padrão, nem tendo que pedir algo diferente, e ela ainda pode escolher a opção alternativa, se assim desejar.
“Mas a empresa tem que gastar dinheiro para que essa comida seja garantida, e isso pode influenciar no preço da minha passagem, também, já que não diferencia os preços, portanto isso me prejudica.”
Nós não podemos operar em termos de possibilidade, mas de fatos. Se não há base comprovada para essa informação, nós estamos só procurando problema.
Mais ainda: você está pagando pela possibilidade de ter a comida vegetariana, também, podendo ou não usufruir disso. Então se esse valor te incomoda, sua reclamação deveria ser com a empresa de aviação. Na visão dela, ela está garantindo o direito à alimentação e conforto para todos os passageiros, com mais ou menos as mesmas opções.
E outra, pense em outro aspecto: os o vinho disponibilizado para a primeira classe, os pratos diferentes e tudo mais, por essa lógica, não influenciariam o preço do seu? Por que não reclamar sobre eles?
Obviamente, não estou falando apenas de comida em aviões, aqui. O buraco é bem mais embaixo.
Mas veja, eu entendo que o nosso reflexo seja pensar que qualquer adaptação para que alguém caiba na norma nos faça pensar que há algum tipo de favorecimento em jogo. Nós estamos acostumados a pensar assim, porque nos adaptamos a certos moldes, e qualquer questionamento deles geralmente envolve entendermos por que as pessoas não estão se atendo a esses moldes. Nosso reflexo, assim, em vez de questionar o molde, é questionar as outras pessoas.
Um exemplo que gosto mundo de uma regra estúpida que é aceita sem questionamento é a conscrição, o serviço militar obrigatório. Em vários países, como o Brasil, o serviço militar é obrigatório para homens, que perdem uma série de direitos dos 18 aos 45 anos se não o fizerem. O motivo para isso é: está na lei. Que foi feita por homens. Para atender à ideia de que o exército e o país precisam disso.
Muitas pessoas odeiam essa regra, mas raramente ela é questionada publicamente, mesmo pelos homens, que são afetados diretamente por ela. Sabe quem é alvo mais frequente de questionamentos sobre ela? As mulheres, em especial as feministas.
Críticas frequentes a mulheres que falam sobre igualdade envolvem o serviço militar obrigatório. São pérolas como “as mulheres querem igualdade, mas não querem ser obrigadas a prestar exército, elas querem os direitos mas sem deveres!” ou “se as feministas querem igualdade, por que não estão lutando para acabar com o serviço militar obrigatório?”
Claro que muitas dessas perguntas são feitas de má-fé, ou ao menos assim esperamos, mas existem os que realmente não veem qualquer problema no questionamento, e ainda se sentem injustiçados. Nós temos pessoas que reconhecem a conscrição como injusta e sem sentido, mas em vez de pedirem que ela acabe, preferem que quem não tem também sofra com ela.
E veja: os direitos que os homens perdem ao não estarem em dia com o serviço militar não foram garantidos por estarem em dia com isso. Eles só são efetivamente atacados porque ela existe, porque a denominação dessas regras é posterior à existência de vários, se não todos esses direitos. Ou seja, pedir o serviço militar obrigatório para mulheres porque você acha que elas também deveriam ter o que você enxerga como uma desvantagem é como achar que, em vez de reduzir a violência urbana, todas as pessoas que não sofreram violência também deveriam ser atacadas.
Falar de “igualdade”, aqui, e achar que ela significa “prejudicar todos igualmente” é algo no mínimo desonesto e ignorante e, no máximo, completamente sociopático.
Mas, de novo, esse tipo de raciocínio não está muito longe do que pensamos no exemplo do avião. Acharmos que uma mulher tem vantagem porque homens têm a desvantagem da conscrição existe no mesmo imaginário de quem acha que o vegetariano é favorecido por ter uma opção.
Encarar esse viés de frente é importante, porque nós o levamos para outros lados, por vezes acidentalmente. E, por várias outras vezes, ele é usado como uma argumentação falaciosa que é fácil das pessoas aceitarem e repetirem, simplesmente porque, à primeira vista, ele realmente parece muito lógico!
Pense no casamento de pessoas LGBTQIA+. Muitos dos que se opõe à prática, pautados ou não em motivos religiosos, usam argumentos que se dizem que o casamento tradicional, entre heterossexuais, vai ser prejudicado pela própria existência. Vai “enfraquecer a família”, dizem. Vai “enfraquecer a instituição do casamento.”
A lógica deles, aqui, é que a exclusividade, a falta de direito de uma parcela da população, é o que garante a qualidade, sacralidade, ou mesmo a existência do direito deles. Isso é fácil de identificar por aqueles que, historicamente, argumentavam que o casamento entre pessoas do mesmo gênero levaria a coisas como o casamento de adultos e crianças ou de humanos com animais. E note que nem estamos falando em casamento em igrejas, mas casamentos civis, também, que estão ligados a diversas facilidades e direitos correlatos diversos.
Recentemente, quando foi discutido nos EUA o perdão das dívidas estudantis, um argumento dos que eram contra foi que isso seria injusto com quem pagou empréstimos estudantis no passado. Ou seja, eles sugerem que as dívidas, que são um problema crônico para os jovens dos EUA, devem ser mantidas e a prática deve ser continuada simplesmente porque pessoas um dia foram prejudicadas por isso.
Notem como os dois exemplos acima têm elementos em comum, ainda que não versem sobre a mesma coisa. E, se nós paramos para pensar, não há sentido algum que não um apego a um histórico. É como escolher dificultar o acesso a tecnologia ou a medicina porque as pessoas não tinham antes.
E aí que vem o ponto todo do motivo por que nós comumente preferimos reclamar não da conscrição, mas das feministas que não querem estar sujeitas a ela: as pessoas tratam direitos e liberdades como se fossem dinheiro. Só que as pessoas não pensam que, apesar de imprimir dinheiro afetar o valor do dinheiro já existente, igualar direitos e liberdades não segue essa mesma lógica.
Há a ilusão, ou ao menos a retórica, de que o aumento de direitos e liberdades específicas vão desvalorizar aqueles dos que já os têm, especialmente se entenderem que é algo que apela ou é exclusivo a um público específico. Isso fica evidente no modo como o ônus é sempre de quem é o elo mais fraco da corrente na discussão de direitos que é levantada.
O vegetariano ter a comida, mesmo que seja uma opção a mais para o onívoro, pode ser visto como favorecimento. O casamento LGBTQIA+ é visto como injusto, porque é um “direito a mais”, mesmo que ele também se aplique a pessoas heterossexuais.
As mulheres não serem sujeitas à conscrição — mesmo que por uma definição feita por homens — é visto como uma injustiça da parte delas, por não exigirem a mesma injustiça. Perdoar dívidas estudantis — mesmo que todos reconheçam que elas são abusivas — é visto como uma injustiça com os próprios estudantes atuais, históricos e futuros.
Eu poderia também falar sobre como certas pessoas se beneficiam de estruturas de poder por conta dessas desigualdades e da dificuldade de acertá-las, mas o básico, antes disso, é entendermos que essas pessoas só conseguem agir em cima disso porque estão ligadas a essa lógica torta, ou são apoiadas por pessoas que estão operando nela.
A partir do momento em que apontarmos com mais frequência essas contradições, a discussão ficará mais fácil. E realmente não é difícil: apesar de certas resistências, nós não temos problemas em mudar nossos hábitos de consumo de redes sociais, programas de entretenimento, sem falar de incontáveis práticas de tecnologia, trabalho e incontáveis outras frentes. Pensar em universalidade e valorização geral em vez de exclusividade e desvalorização é uma questão de hábito, da mesma forma.
Dez anos atrás não havia o mercado de criptomoedas, nem o teletrabalho, nem o TikTok. Nós não deixamos de usá-los, quando surgiram, por isso, e nem nos ressentimos de suas existências por conta de suas ausências históricas. Não vamos preferir o que era ruim no passado, simplesmente por uma percepção de injustiça com as pessoas de quando a solução não existia ou a resposta não queria ser implementada.
Para finalizar, então, vamos a um último pensamento.
Acima, eu generalizei a filosofia de pensar em direitos e liberdades como dinheiro, sugeri o questionamento e a readaptação, mas vale pensarmos: quem são as pessoas que se abraçam a essas ideias? Bem, eu tenho algumas ideias.
Primeiro, existem pessoas que não entendem a natureza de direitos e liberdades. Essas, eu diria, são a maior parte das pessoas, porque nós estamos acostumados a pensar em termos de dinheiro e mercado o tempo todo, de modo que mesmo quando não existe um custo efetivo envolvido — o caso da conscrição, por exemplo — nós tendemos a achar que ele está lá.
O segundo grupo são de pessoas que são adeptas a ideologias que delimitam essas liberdades e direitos a partir da exceção — ou seja, aqueles que dizem que só valem quando uns tem e outros não. Apesar disso acontecer como decorrência do primeiro ponto, existem grupos que declaram abertamente essa diferença de valores, por vezes defendendo-as com argumentos econômicos. Geralmente a conversa vai no caminho de que a equidade, ao poder custar ou pedir a alteração de hábitos, é nociva.
O terceiro são pessoas adeptas de ideologias que pregam superioridade de pessoas em certas condições, ou de uma necessidade. Esses são grupos religiosos ou ideológicos que, por exemplo, acham que pessoas LGBTQIA+ devem ter menos direitos, bem como grupos, machistas, racistas e nazistas diversos, que acham que pessoas de certas etnias, mulheres e minorias são menos importantes de alguma forma. E você pode achar que há diferença considerável entre alguém que opta por agir com preconceito por religião ou ideologia, mas eu reforço: se o resultado é o mesmo, não interessa a base ou as palavras bonitas por trás, é a mesma coisa.
O quarto grupo é aquele que simplesmente não quer a equidade. Eles podem ou não usar os argumentos dos outros grupos, mas eles não esconderão que não se importam e não fazem questão de um mundo com mais equidade, geralmente porque estão levando vantagem por conta da desigualdade, diretamente, ou porque seus aliados ou pessoas que admiram estão aproveitando disso.
Seja qual for o caminho, não há razão para defender ou apoiar esses motivos.
Para o primeiro grupo, nós podemos conversar, argumentar e demonstrar, e apontar as irregularidades dos outros grupos. Os outros três, por sua vez, trabalham dentro da base de dogmas, lógicas próprias e interesses próprios, e dificilmente serão convencidos. Resta expô-los como o que são, para que não manipulem mais pessoas.
Espero que você, que está aqui, se for adepto dessas ideias, seja do primeiro grupo. E coloque a mão na consciência.
(E se você é a favor da conscrição, não é nem militar e se diz a favor da liberdade, sugiro que vá você lá se voluntariar e levar os da sua família antes que querer obrigar os outros.)