O caso do chá chinês

Rodrigo Ortiz Vinholo
5 min readMay 25, 2020

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Alguns anos atrás, eu ganhei um convite para uma degustação de chá chinês em uma simpaticíssima casa de chás de São Paulo. Naquela ocasião, tive várias experiências interessantes, que se transformaram em ótimas memórias. Aprendi muito, mas uma das coisas que mais me marcaram foi, como geralmente acontece, uma história.

Vou reproduzi-la abaixo, ao meu estilo, com algumas leves intervenções e observações que não estavam no discurso do professor, ao menos não diretamente, mas que acho extremamente relevantes porque servem como ótimas lições sobre a vida, relacionamentos humanos e algumas outras coisas.

Lá vai:

Era uma vez a Inglaterra. Ela tinha navios e tropas aos montes. Era a época das grandes navegações, e os ingleses espalhavam seus barcos pelo mundo todo para fazer comércio e batalhas e basicamente se intrometer na vida de todos que pudessem.

E então eles acabaram conhecendo o que seria seu principal vício: o chá. E quem entendia de chá era um outro país, que ficava um pouco longe e, para eles, era bem exótico: a China. Então a Inglaterra fez o que a Inglaterra melhor fazia, e mandou ingleses até lá para atormentarem os chineses até que eles conseguissem o que queriam.

Alguns outros países ocidentais já haviam tido contato com o chá chinês, mas a Inglaterra não brincava em serviço, e ela começou a comprar muito chá da China e, vendo o sucesso da bebida, começaram uma bela parceria comercial. A China, interessada no lucro e talvez subestimando os perigos da Inglaterra, não pareceu notar que estava entrando em um relacionamento abusivo.

Pois estava. E isso era por um motivo que nenhum dos dois países poderia antecipar. Gosto de imaginar que as coisas aconteceram da seguinte forma:

Um dia, a Inglaterra chegou lá na casa da China com uma expressão um pouco irritada, as mãos na cintura. A China não entendeu bem o que havia de errado, até que começaram a conversar.

— Tá tudo bem? — perguntou a China.

— Tá sim… — respondeu a Inglaterra, obviamente mal-humorada.

— Ah, que bom — retorquiu a China, só querendo acabar logo com a situação estranha.

— Eu só acho que você poderia ter me avisado direito como as coisas são. Diálogo é importante em um relacionamento — disse a Inglaterra, claramente rancorosa.

A China, completamente confusa, conseguiu responder apenas:

— Quê?!

— Você sabe do que eu estou falando — disse a Inglaterra, com os braços cruzados.

— Eu não faço ideia do que você está falando.

— Aaaaah, a senhora agora vai se fazer de desentendida?!

E assim ficaram por um bom tempo, discutindo, até que a Inglaterra deixou de lado a ladainha e explicou que o problema era o chá.

Acontece que quando a Inglaterra levou o chá para casa nas primeiras vezes, acabou se acostumando com o sabor de um jeito. Só que, conforme o tempo passava, o chá acabou mudando um pouco, e ela não gostou nem um pouco daquilo. Sabor diferente, formato de folhas diferentes… para ela, era inaceitável!

Para a China, aquilo nunca havia sido um problema, por isso sequer pensaram que poderia ser um problema. Afinal, o país tinha naquelas belas folhinhas e nas bebidas extraídas uma relação tradicional, de séculos e mais séculos de existência. Para começar, a China sabia que o chá sempre ia variar de colheita para colheita, e apreciava essa variação. Do mesmo modo, na hora de servir o chá, havia todo um cuidado muito específico.

Para você ter uma ideia, o chá chinês tradicionalmente passa por diversas infusões das mesmas folhas. A cada vez, diferentes elementos das folhas são extraídos, com a primeira, por exemplo, tendo mais cafeína, e a segunda levantando outros elementos, e assim por diante. Dependendo do tipo de folha, era possível fazer uma dezena ou mais infusões, com resultados diferentes a cada vez. Nesse processo todo, as sutilezas e diferenças que surgiam a cada colheita eram apreciadas e abraçadas pela cultura local.

A China tentou explicar isso para a Inglaterra, que não queria ouvir. Ela queria que a cada vez que qualquer um sentasse para tomar seu chazinho ele fosse igual à xícara anterior. Ela não queria saber da tradição, ou da profundidade, ou da cultura, ou da natureza. O que a Inglaterra gostava muito era que obedecessem suas ordens e que pudesse tomar xícaras de chá, e que tanto as ordens quando o chá fossem sempre feitos com o mínimo de hesitação e cerimônia possível. Ou, ao menos, sem qualquer cerimônia que não fosse do seu gosto, é claro.

É claro que não deu certo.

A Inglaterra deu seu jeito: desenvolveu um jeito de prensar as folhas de chá que envolvia cortar e amassá-la de um jeito específico que deixava o resultado da infusão sempre igual. Era o pesadelo de qualquer chinês que apreciasse as sutilezas da bebida: lembra quando expliquei que cada infusão revelava diferentes aspectos do chá? Pois a partir da técnica inglesa, ali vazava tudo de uma vez, todos os gostos concentrados em uma extração só.

Nesse ponto a China já estava meio contrariada com a Inglaterra, especialmente porque viu que não dava para insistir. Eis que, pouco tempo depois, ela chegou lá na casa da China, mas foi só pra se despedir: ela tinha uma amiga nova para atormentar, uma tal de Índia, e estava plantando chá lá na casa dela e amassando e cortando as folhas do jeito que queria. Ficava mais fácil, mais perto e barato, e não tinha que ficar lidando com o papo de tradições da China.

A China ficou lá, com um cliente a menos e sentindo-se insultada. No fim das contas, mesmo se tivessem cedido às exigências pouco razoáveis da Inglaterra, ainda teriam perdido o negócio para as plantações lá na Índia, porque a Inglaterra realmente só estava priorizando uma produção fácil e rápida.

Infelizmente, a Inglaterra não deixou a China em paz e eventualmente aconteceram as Guerras do Ópio, que só mostraram mais uma vez que, no decorrer da história, a Inglaterra sempre foi especialista em meter os outros em roubadas. Mas esse é outro caso.

O ponto todo aqui é o chá da China e a Inglaterra. E disso, eu consigo tirar algumas lições para a vida.

Uma delas é “não adianta toda a profundidade do seu chá chinês para quem quer um chá inglês mequetrefe.”

Ou “se alguém está fazendo muitas exigências sobre como seu chá deve ser servido, talvez essa pessoa nunca quisesse realmente o seu chá como ele é, e quem vai sofrer com a mudança é você.”

(Façam as adaptações para os aspectos da vida que quiserem.)

Ou, se preferir uma pegada mais de negócios: “O cliente nem sempre tem razão. Se o seu cliente é incapaz de perceber a qualidade do seu produto, não piore o produto para atender à falta de gosto dele.”

É isso. Quando tiverem a oportunidade, visitem alguma casa de chá.

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Rodrigo Ortiz Vinholo
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Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

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