Não há mérito na virtude acidental

Rodrigo Ortiz Vinholo
9 min readOct 24, 2022

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Alegoria das virtudes, 1525–1530, Antonio da Correggio

As pessoas gostam muito de falar sobre as virtudes dos outros, e nas próprias, e essas são coisas que eu tenho dificuldade de engolir.

Veja, não quero dizer que eu sou uma pessoa amarga, que não reconhece quando uma pessoa é genuinamente virtuosa, nem que atitudes virtuosas não deveriam ser incentivadas. Não é isso. O que afirmo, aqui, é que a semelhança da virtude não indica virtude, e a produção de um benefício, do mesmo modo, não a indica.

Um exemplo clássico é o que popularmente entendemos de honestidade e trabalho.

Muitas vezes, quando um inocente é vítima de um criminoso, algumas frases padronizadas surgem para descrevê-lo, para posicioná-lo na crítica àquele que o agrediu, roubou ou matou. Diz-se que era “inocente”, “pai de família”, “trabalhador”, “honesto”, que “trabalhava honestamente”. Todas são características tidas como excelentes, e citadas, claro, propositalmente em oposição ao bandido que, sem dúvida alguma, é péssimo por atacar essa pessoa.

Mas existem algumas coisas peculiares, quando nós descrevemos essa cena acima. Para começar, o que significa citarmos que a vítima era “inocente”? Não a presunção de inocência em si, mas a necessidade de citarmos. Estamos falando que o crime seria menos crime, ou que seria justificado se ele também tivesse sido acusado ou cometido algum outro crime? Do mesmo modo, ele “trabalhar honestamente” torna o crime pior do que se ele não trabalhasse, ou trabalhasse em algo ruim?

Agora note que, mesmo que você me responder “sim” para esses questionamentos, e genuinamente achar que é justificável, ainda sobra um ponto curioso: na nossa vida em sociedade, todas essas coisas são pressupostos e, portanto, por padrão não são necessariamente valorizados como excepcionais.

Nós não achamos nada fora do normal se uma pessoa tiver um emprego, e se esse for honesto, e se a pessoa não cometer crimes. O padrão é que adultos trabalhem honestamente, o padrão é que ninguém cometa crimes. Não é um mérito, mas o oposto que é um demérito. Quando colocamos em qualquer circunstância que isso é um fator amenizador, nós estamos entortando nossa escala de expectativas.

Ou seja, e serei repetitivo para tudo ficar bem claro: se um cara segue a vida dele, fazendo as coisas que ele faz, e que ele faria normalmente, nós não vemos isso como nada fora do normal. Se ele não trabalhar, por exemplo, pode ser que o julguemos como preguiçoso ou inábil, dependendo das circunstâncias. E aí vem a pergunta: um preguiçoso inocente vale menos que um trabalhador inocente? Nós talvez consigamos responder essa pergunta, mas todas as respostas invariavelmente esbarram em questões éticas sobre o valor da vida humana. O oposto, a generalização de que toda vida tem seu valor, já nos aponta que há algo de estranho com essa fixação com o que a pessoa faz, enquanto vítima ou não.

Aqui, antes que continuemos, talvez você já esteja achando ruim o que eu estou escrevendo. Talvez pense que é um monte de bobagem, que eu estou pensando demais. Você pode dizer que é óbvio que essas características só são citadas para colocar a oposição entre uma vítima honesta e um criminoso, para que fique claro o absurdo da situação, de uma pessoa que nada fez ser punida por alguém que vive cometendo atos absurdos.

Veja, até certo ponto eu concordo com você, mas esse é só o começo de uma questão maior, que é onde eu realmente quero chegar. Porque o meu argumento é que nós não fazemos essa oposição à toa. Primeiro, nós necessariamente gostamos dela porque ela simplifica a situação para nós, porque coloca o criminoso como totalmente criminoso e qualquer ato contra ele como algo justificado. Segundo, porque nos permite criar a ideia de um tipo de crime justificado, e comemorar se dois males se eliminarem, ou se a vítima não for tão vítima, mas alguém que está sofrendo porque merece.

E, mais, essa nossa sanha cria a ideia de virtudes como um escudo moral estranho, que não faz o menor sentido. O meu ponto, assim, é levantar aqui algo mais básico: nosso trabalhador hipotético tem alguma virtude por ter um trabalho e não cometer um crime? Eu sustento que não.

Como eu comentei antes, nós não achamos fora do normal a honestidade e o trabalho. Nós não recompensamos pessoas por cumprirem as leis e, geralmente, também não o fazemos por se adequarem a normas sociais. Nas duas circunstâncias, o mais comum é que as pessoas simplesmente evitem diversos tipos de punição. Trocando em miúdos: mesmo que consideremos que são virtudes, e exista uma pressão social para que se mantenham, não há uma recompensa além do que o próprio trabalho e honestidade oferecem. Um dá um salário, o outro dá coesão social, talvez respeito e admiração (mas não necessariamente).

Mudando o exemplo, nós podemos ver outros aspectos da mesma questão. Vamos mudar o ângulo do trabalhador para o empregador, o “empresário”, essa figura mítica que nós adoramos mencionar em nossos jornais, revistas e colunas sociais, preocupação constante dos políticos.

Aqui, os homens de negócio são muitas vezes aclamados com adjetivos similares aos vistos antes, porque seguem na mesma ideia de valorização do trabalho. Mais do que isso, porém, adiciona-se a ideia de serem “geradores de emprego”, “geradores de renda” e “movimentarem a economia”. E aí que mora uma coisa engraçada: o empreendedor gera empregos e renda e movimenta a economia porque isso é necessário para a atividade que está executando, ou porque é uma pessoa virtuosa? Você sabe a resposta.

Aqui, uma resposta “tanto faz”, ou “as duas coisas” convence menos. É difícil ver a virtude como algo desinteressado e espontâneo se ela é apenas um passo dentro de um processo de enriquecimento. Isso é algo peculiar que surge quando entramos em discussões políticas e os empresários são colocados como figuras que detém poder sobre a economia e os empregos, ameaçando tirar o dinheiro do país, ou demitir pessoas e contratar máquinas, ou tomar outras decisões que vão beneficiar pessoas direta ou indiretamente.

O ponto todo é esse: é verdade que eles geram empregos, dinheiro e fazem coisas boas como consequência de irem atrás dos próprios interesses, mas a partir do momento em que eles colocam isso como um ponto condicional, toda a virtude que poderia ser atribuída a esses atos foi embora. Isso significa que qualquer virtude que eles gerem, nesse contexto, é acidental e, portanto, sem mérito.

Repito o título do texto: não há mérito na virtude acidental.

Do mesmo modo, o trabalhador inocente não tem mérito por ser um trabalhador inocente. Ele tem um demérito caso seja desonesto.

Dentro da convivência social, porém, nós temos momentos em que precisamos de medidas, de qualificadores, e subentende-se que essas diferenças surgem como importantes. Ou seja, pensa-se que se temos que escolher entre beneficiar um empresário que gera empregos e um que não gera, o primeiro é mais importante, porque ele leva a um bem maior. Do lado oposto do espectro, há o inocente e o “menos inocente” na hora de um crime.

Eu digo que isso tudo é bobagem desonesta, se queremos usar “virtude” como um meio de medida. Eu sustento que nós só temos essas medidas como meio de justificar a punição desigual de quem desejamos punir, e o benefício desigual de quem desejamos beneficiar.

Nós aceitamos uma punição desproporcional, bem como uma estrutura de punição desproporcional, se ela for justificável para alguém que pareça que “merece mais”. Do mesmo modo, nós beneficiamos desproporcionalmente quem nos convencerem que são os representantes de certos tipos de virtude, em situações específicas.

Se parece exagerado, basta observar que, misturando os exemplos, o “gerador de empregos” que for colocado sob escrutínio depois de um momento de desonestidade, muitas vezes tem sua sentença amenizada justamente porque possui a virtude indireta de gerar empregos e dinheiro.

Há uma lógica estranha, uma negociação terrorista bizarra, onde até se desincentiva a punição do gerador de empregos que for criminoso usando os próprios empregos como alavanca. O errado dele é “menos errado”, é “mais perdoável” se a consequência da punição dele for a geração de desemprego. Isso gera um ciclo: o empresário tem que ser protegido, caso contrário ele não gera emprego, e ele não é obrigado a gerar emprego, que surge como uma virtude, que deve ser protegida e assim por diante.

Note que há uma discrepância nas medidas de virtude que se alinha com o poder social de cada pessoa. Um político ou um empresário desonestos, se forem representativos o suficiente, fogem facilmente de punições que outras pessoas com menos poder sofreriam, mesmo sem contar discrepâncias de poder econômico e possibilidade de defesa na justiça.

E aí que está o ponto todo: não só não há mérito na virtude acidental, como só poderia existir mérito se ela fosse quantificável, se existisse uma cobrança. Se o empresário quiser fechar todas as suas fábricas ou substituir seus empregados por máquinas, ele está no direito dele, dentro de certos parâmetros de compromissos que tiver assumido (que muitas vezes são ignorados, diga-se de passagem). Mas se a punição por uma irregularidade surgir, em vez de ele ser tratado como o culpado por prejudicar a vida das pessoas por sua própria irresponsabilidade, o ônus cai em quem fez (corretamente) a punição.

Se vamos proteger uma pessoa de punições devidas, que sabe quais são as regras e escolheu não jogar dentro delas, qual a contrapartida? Qual a garantia que esse empresário vai me dar? Quantos empregos ele promete, qual a garantia de retorno que seus investimentos vão dar para que facilitemos as regras para ele? Ou todos temos que admitir que não há mérito algum nessas supostas virtudes deles, e isso jamais deve pesar em qualquer julgamento, ou precisamos de garantias e compromissos para amenizar o julgamento.

Em todo caso, nós admitimos que essa sinalização de virtude é bobagem, e que é terrorismo ideológico trabalhar dentro disso.

Quer outro exemplo? Por que templos religiosos possuem isenções de impostos no Brasil? Existem várias discussões, aqui, mas além de “nós somos um país que mistura religião em tudo”, existem algumas justificativas mais práticas, como a função social que igrejas geralmente têm. Também já ouvi o argumento que templos religiosos executam diversas ações de fundo social, de modo que mantê-las seria benéfico à sociedade, porque elas atuam de formas que atendem aos interesses da sociedade, e por vezes de modo complementar ao governo.

Mas aí que vem a questão: se esses são pressupostos básicos dessas religiões, por que elas deveriam ser beneficiadas por isso? Claro que há virtude em diversas das atividades, mas por que uma empresa, ou um indivíduo, ou qualquer instituição que faça o mesmo tipo de coisa não tem o mesmo tipo de liberdade? Sim, existem exceções pontuais, mas nunca é a mesma garantia que essas instituições religiosas.

Alguém pode argumentar que, sem essas isenções, várias igrejas não conseguiriam se manter, e talvez seja verdade, mas, novamente, se estamos dando um benefício com base em um pressuposto de virtude, por que não há uma cobrança de retorno? Como eu sei que uma igreja está de fato ajudando pessoas, se ela não formaliza esse suposto retorno à sociedade? Como eu sei que as doações que ela recebe de seus fiéis não são mais que o suficiente para cobrir tudo que ela precisa, de modo que a cobrança devida poderia ajudar a sociedade amplamente, inclusive algumas instituições de outras religiões?

Se eu fizer um clube filosófico, e esse clube fizer atividades sociais, mesmo que eu corra atrás, eu não terei o mesmo nível de isenções de uma igreja. Isso nos leva a crer que ou há uma proteção pressuposta a certas atividades religiosas, ou à suposição de virtude. Por vezes, claro, a virtude é usada como pretexto para proteger a atividade religiosa, em outro ciclo lógico sem sentido.

Se toda virtude deve ser recompensada, estamos muito longe de fazer isso no nível individual, de modo que o pouco que existe se torna apenas um protecionismo suspeito daqueles que não precisam de proteção. Na mesma lógica, se queremos falar de uma ideia de “meritocracia”, nenhuma dessas proteções deveria ser considerada, mas sei bem que quando esse tópico entra em pauta, ele geralmente só é usado, novamente, para punir quem não está na vantagem.

O caminho mais honesto aqui é admitirmos que nós não apreciamos essas virtudes que dizemos apreciar. Porque, se fosse assim, as punições proporcionais seriam sempre iguais, e os benefícios proporcionais, também. Precisamos admitir nossa hipocrisia, e parar com esse papo-furado que finge que não é tudo um pretexto para protegermos pessoas específicas, por lucro, conveniência, ou cumplicidade.

A próxima vez que alguém elogiar outro por seu trabalho honesto, ou por gerar emprego, ou por ajudar os outros (ou, pior, se elogiar por alguma dessas coisas), olhe bem e se pergunte: o quanto essas pessoas estão se beneficiando por essa puxação de saco?

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Rodrigo Ortiz Vinholo
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Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

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