Novidade e competição (ou "A virgindade em cada experiência")
Pense em alguma coisa que você nunca fez, mas sempre quis fazer. Pode ser uma comida que nunca experimentou, uma viagem que sempre desejou, um filme que quer ver há tempos, ou qualquer outra experiência que quer ter.
Como você se sente por não ter tido essa experiência? Ela faz com que você se compare aos outros? Quando você tiver conquistado esse sonho, a experiência fará com que você se compare? Ter essa experiência vai mudar seu valor perante o mundo? Vai te dar mais maturidade, sabedoria, conhecimento, força? Você vai ser uma pessoa substancialmente diferente de quem é? Você vai ser melhor do que é hoje? Ou pior? Ou diferente? Ou nada vai mudar? Você quer ter essa experiência por uma questão de dever? Se sim, quem definiu esse dever? Se você for a primeira pessoa que conhece, ou uma das poucas que importam na sua visão de mundo, a ter essa experiência, algo vai mudar? Ou ainda, você se sente mal por não ter tido essa experiência? Isso te deixa em alguma situação de exclusão?
Agora pense em outra coisa, relativa a tudo isso: você quer essa experiência por ela mesma, ou por qualquer um desses outros motivos e alterações que sugeri? Essa é uma pergunta interessante de se fazer sobre tudo que fazemos e sobre tudo que encaramos como nossos desejos, especialmente porque nossas motivações dizem muito sobre nós, sobre o mundo, e sobre nossas relações com ele e com todos que nos cercam.
Não há problema em querer ter experiências, nem na exploração eterna de novidades. Tudo bem nós lutarmos para que nossas vivências sejam amplas e diferentes, e para sentirmos coisas que nunca sentimos antes, e até repetirmos essas coisas. Tudo bem, ainda, que nós queiramos conquistar algumas coisas não tanto por elas mesmas mas porque elas possam refletir algo sobre nós, sobre nosso lugar no mundo, e sobre nossas capacidades.
O problema é quando isso se torna uma competição, seja com os outros ou com nós mesmos, e quando essa competição se torna um dever, e quando esse dever nos prejudica.
Vamos brincar com um exemplo prática e extremamente comum: quando somos jovens, em muitos casos há a pressão pela perda da virgindade. Cria-se uma mística em torno de sexo e da experiência sexual, e desenvolvem-se rituais, manias e até mesmo noções de identidade e status social em torno dessa passagem. Em muitos casos, o jovem só se sente adulto após perder a virgindade e, em alguns círculos, pode-se criar até uma aura de superioridade para os que conseguiram, em relação ao resto do grupo.
A maior parte de nós, mesmo passando essa fase, volta a encontrar tipos de pressão similares, outros tipos de virgindade, por assim dizer. Mesmo que a pressão não seja a mesma, e que tenhamos supostamente alguma maturidade a mais, é a mesma natureza de cobrança.
Isso se torna um problema, porque nós estamos em uma configuração social que prioriza a competição. Nós competimos no mercado de trabalho, como artistas, por vezes em relacionamentos e por incontáveis oportunidades. Ver um episódio de uma série de televisão vira competição, ver um filme, também, do mesmo modo que saber mais sobre um assunto específico, conquistar títulos, passar em provações, conseguir pontuações e posições em listas… Quando você está com a cabeça em termos de competição, não é difícil que você tente competir com tudo em sua vida, especialmente em suas experiências pessoais, seja na variedade delas, em toda amplitude de experiência que existe no mundo, ou em alguma categoria especializada.
A conversa da virgindade existe nesse mesmo âmbito: para muita gente, há a pressa para ver quem consegue primeiro, e o ato de se conseguir define o clube dos vencedores e dos perdedores. Isso já é uma mentalidade estranha demais, e pouco natural, mas pense que muitas pessoas aplicam isso em tudo que fazem. E eu quero sugerir que nós paremos com isso e nos atentemos para as vezes que estamos fazendo esse tipo de coisa. Não é muito difícil.
Eu quero que todos nós tenhamos menos ânsia pela experiência e mais respeito à inexperiência. Ou, se não “respeito”, mais neutralidade. Condescendência e desrespeito ao novato serve como meio de elevar o experiente, mas de envenenar toda a dinâmica da experiência em questão.
E aqui está uma questão: ainda que experiência possa ser útil, ela não necessariamente garante conhecimento ou autoridade plena. Não há valor pessoal maior ou menor em ter ou não ter tido uma experiência específica, ou um conjunto delas. Assim, a competição por ter tido mais experiências, ou ter tido antes, ou ter sido o primeiro, não faz sentido algum, e só prejudica todos nós e as próprias experiências que nós queremos ter ao adicionar no imaginário de todos a ideia de que isso é importante.
Digo mais: essa mania deriva da nossa ética de trabalho problemática horrível que, permeando outros aspectos sociais, adiciona valores de “performance” e “competição” em tudo. Nós nos acostumamos a viver como se tudo que fizéssemos existisse em um mercado, até mesmo nossas experiências. Como se tivéssemos metas para cumprir, clientes para atender, diferenciais de mercado a conquistar. Isso é uma doença.
Só que aqui, antes de prosseguirmos nessa discussão, precisamos parar e levantar algumas outras questões.
Afinal, o que é a ausência de experiência, o que é essa “virgindade”? Qualquer definição de ausência pede uma definição exata da experiência pedida.
Vamos dizer que eu fiz uma viagem para os EUA, e meu vôo fez uma escala no Panamá. Eu posso dizer que eu visitei dois países, porque eu parei por algum tempo no aeroporto do Panamá? Ou a experiência só é válida se eu realmente passar pela alfândega e ganhar um carimbo no passaporte e visitar o país? Fazendo tudo isso, eu posso dizer, ainda, que a visita conta, ou eu preciso dormir no país? E mais, quanto dele eu preciso visitar para que possa contar como tendo visitado realmente?
Para algumas pessoas, no exemplo acima, bastou eu estar fisicamente no aeroporto para contar. Para outras, eu tinha que ter efetivamente entrado. Outros exigiriam mais tempo ou experiências, enfim. Poderíamos ainda ir mais além, e subdividir. Podem existir incontáveis “primeiras vezes” para as mais diversas atividades dentro daquele país, ou dentro de qualquer outro contexto.
Se quisermos levar isso para um ponto de vista mais filosófico e subjetivo, ainda, poderíamos apontar a estranheza que há no ato de comemorar qualquer primeira vez. Se você não se lembrar da primeira vez que fez algo, você fez? Ou ainda, se você mudou significantemente de uma experiência para a repetição dela, e conseguiu aproveitá-la ou entendê-la de outro modo, a experiência é a mesma? Poderíamos argumentar que toda vez que fazemos alguma coisa estamos fazendo pela primeira vez, porque nunca havíamos feito nas exatas circunstâncias que estamos vivendo naquele momento.
Mais simples ainda: qual o valor de ter tido uma experiência? E de ter tido pela primeira vez? Todo valor aqui é subjetivo, então ou estamos inventando algum, ou estamos absorvendo o que outra pessoa inventou.
Desse modo, se formos levar a sério essas ideias, nenhuma experiência se torna uma expressão plena do que foi experienciado. Você pode ter visitado São Paulo mil vezes, ou vivido na cidade sua vida inteira, e sua experiência é diferente de outros viajantes ou moradores, e isso não torna a experiência do outro mais ou menos legítima. Assim, o que significa ter feito algo primeiro que os outros? Mesmo a repetição de uma experiência não é a garantia de que ela é, por isso, mais válida, uma vez que é possível repetir a mesma variação, e evitar os mesmos pontos em todas as vezes.
Por que, então, damos tanto valor e status às pessoas com base em experiências pessoais?
Lógico, não estou negando o valor de estudo, nem do conhecimento adquirido através disso, mas o que estou dizendo é que a experiência, em si, não garante nada. O que se extrai dela é que traz o verdadeiro valor. Essa diferença por vezes é sutil, mas na maior parte das vezes é imensa, ao ponto de ser irreconciliável. Pense assim: uma estrela-do-mar que assistiu mil filmes tem essa experiência, mas isso garante que ela poderá discutir sobre cinema? São tantas variáveis que é só o conhecimento da experiência que poderá servir como tira-teima. O foco em experiência, em “quem fez mais”, “quem fez primeiro”, “quem veio antes” significa pouco perante qualidade.
E aí entra outra vez a questão de valor. Tudo bem que quem experimentou mais não necessariamente “vale” mais. Mas e quem sabe mais, vale? Não, claro que não. E, novamente, não estou falando contra o conhecimento, mas apontando que qualquer tentativa de dar valor intrínseco a um ser humano sobre outro é uma roubada moral. É imoral, no meu entendimento, atribuir qualquer valor em qualquer existência. Qualquer noção de valor necessita existir em um contexto.
Lógico que um profissional com experiência comprovada e conhecimento em uma área de atuação vai ser mais valioso para ser contratado, mas tirando esse contexto, eu jamais poderia dizer que ele vale mais do que qualquer outra pessoa. E este exemplo falando de emprego é para reforçar o que eu já disse antes: noções de valor existem apenas no mercado, e não deveriam existir fora dele.
Depois disso tudo, vem a próxima pergunta óbvia: por que nós estamos competindo? Se há algum status a ser obtido a partir da conquista de alguma experiência, quem é que definiu que ele existe assim e por que as outras pessoas devem se adequar a essa noção de status ou de ausência dele?
É difícil afastarmos essas ideias de nossas noções de valor, porque tudo que fazemos gira em torno disso. O clichê “você sabe com quem está falando?” é entendido como uma fala arrogante geralmente usada por pessoas desprezíveis, mas nós a utilizamos sem essas palavras em tudo que podemos, o tempo todo. Do mesmo jeito que usamos uma formação profissional, um cargo, algum reconhecimento ou o quanto temos de dinheiro como noções de valor, nós transferimos esse tanto competitivo para nossas experiências.
A questão é: a sua experiência com alguma coisa na vida te torna apto apenas a falar sobre aquela coisa e, ainda, apenas sobre a sua percepção daquela coisa. Sua própria versão. E isso significa muito menos do que gostamos de pensar que realmente significa.
Finalmente, em um último ponto que é onde tudo isso mais se assemelha à ideia de virgindade: para muitas experiências, existe uma ideia estranha de que elas devem existir em momentos específicos da vida, criando-se ainda mais regrinhas e convenções que só servem para que qualquer experiência se torne menos proveitosa, porque ela estará envolvida por obrigações, regras e expectativas. Só que se paramos para pensar, esse tanto raramente faz algum sentido, não precisando ser como é apresentado e popularizado.
Tudo isso que eu falei, no fim, poderia ser simplificado com um único pedido de minha parte: sejamos humildes. Mas essa fala diz muito pouco, porque mesmo a humildade não é algo que sempre entendemos do mesmo modo, e a sua expressão já foi deturpada de diversas maneiras ao ponto de por vezes sequer fazer sentido. O fato é que temos que dar ao mesmo tempo menos importância para a experiência e mais às pessoas, e isso é extremamente vago, mas necessário.
E tudo bem, pode ser que você não queira ser, e não terá nada que eu possa fazer para te impedir. Você gosta da ideia de se sentir superior por suas experiências ou por seja lá o que for. Você pode acreditar que merece ter esse status ou sensação. Mas independentemente de discordarmos, quero que você se atente para o fato de que o pedido de humildade também é para cada um de nós com nós mesmos. Em nome da saúde, sanidade, bem-estar de cada um, bem como das próprias experiências.
Explico: a simplicidade de fazer as coisas sem competir garante uma melhor experiência. Digo isso por mim, mesmo. Eu tenho dificuldade em não pensar na vida como uma lista de tarefas, sempre em termos de performance. Eu corro atrás de metas, busco resolver problemas, e isso tudo muitas vezes faz com que eu me afaste da experiência que estou tendo e me aproxime apenas da ideia dela. Incontáveis vezes eu terminei de cumprir algo que eu supostamente queria e só me encontrei com uma vaga tensão e um alívio estranho por ter tirado aquilo de uma lista, em vez de ter aproveitado.
Se eu espalho essa noção para outras pessoas, direta ou indiretamente, eu crio apenas mais um universo de pessoas que vão fazer o mesmo que eu, que vão viver suas experiências como listinhas de tarefas, incapazes de relaxar, ansiosas por performance e para provarem algo para os outros e para elas mesmas.
Este texto, como a maior parte do tipo que eu escrevo, é muito mais para mim do que para quem lê. Para eu organizar minhas ideias, mas para que eu possa absorver melhor minhas conclusões. E uma delas é essa: por toda minha vida, minha gana por experiências e qualquer noção de status gerada por elas apenas serviram para que eu tivesse mais tensão e sofrimento. Mesmo que existisse vitória, mesmo que existisse prazer, era desproporcional.
Então eu apelo a vocês, do mesmo jeito que apelo a mim mesmo: esqueçam essas competições. Esqueçam metas que não representem tanto uma experiência, mas um número ou marca. Ou, ao menos, atentem-se para que isso não consuma vocês de alguma forma. Façam tudo no tempo que preferirem. Façam como quiserem fazer. Relaxem.
E não deem tanta atenção a quem vive dessas conquistas. Geralmente, essas pessoas estão se alimentando exatamente da noção de importância que fomos treinados a dar para isso. No geral, elas não merecem a tensão que criamos em nós mesmos à toa.