Moralidade e Vitória Moral

Rodrigo Ortiz Vinholo
5 min readDec 26, 2019

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Study for a Head, Francis Bacon

Não há vitória moral em derrotar um inimigo.

Derrotar um inimigo, por si só, não representa um ato de moralidade, mesmo que todas as ações do inimigo representem a imoralidade que se quer evitar. Pelo contrário, é mais comum que se torne imoral quando se tenta derrotar alguém do que o contrário.

Moralidade nunca foi simples. (https://medium.com/@rodrigoortizvinholo/d%C3%A1-trabalho-ser-bom-889521e4b083) Eu já falei disso antes outras vezes, mas entendo que seja um assunto que merece ser revisitado porque cometemos várias vezes os mesmos erros.

Apenas se atinge a moralidade através de atos efetivamente morais. Evitar o ato imoral de alguém não é necessariamente moral. Na prática, na maioria das vezes, evitar qualquer ato de qualquer pessoa pode nos levar a algum tipo de transgressão de nosso código moral, mesmo que minimamente, porque geralmente isso envolve limitação de liberdade de ação em algum nível, o que é quase universalmente considerado um ato imoral.

Moralidade é algo que pode existir apenas a partir de uma ação. Por exemplo: Você pode dizer que ajudar alguém espontaneamente é um ato moral. Mas não ajudar não é um ato imoral (observando, aqui, que há várias diferenças entre “não ajudar”, “abandonar”, “omitir-se” e/ou “ignorar”). Do mesmo modo, pode-se dizer que roubar é um ato imoral, mas “não roubar” não é um ato moral, uma vez que é a ausência de uma ação.

Nesse sentido, retomando o que foi dito antes, evitar que alguém realize uma ação imoral só pode ter efeito para a ação imediatamente evitada, e isso, em si, não garante que qualquer outro de seus atos seja moral. Se você teve que cometer uma agressão para evitar uma agressão, e você considera agressões atos imorais, então você deve compreender que há algum nível de imoralidade no seu ato, mesmo que ele tenha tido o efeito moral de evitar um ato imoral.

Note que não estou falando que as pessoas não devem se defender ou defender os outros, mas só que no momento em que tratamos de moralidade devemos compreender essas ações de proteção também devem ser julgadas pela mesma régua. Se não o fizermos, corremos o risco das grandes hipocrisias da história, onde um ato só era imoral quando afetava um lado específico, e sempre era moral quando afetava o outro.

Com isso em mente, proponho ainda que moralidade é algo que deve independer da existência de qualquer outra pessoa. Um ato é um ato. Ouso dizer, ainda, que moralidade independe de contexto, destinatário e efeito. Um ato imoral é imoral, mesmo que seja isento de tudo isso.

Se aceitamos como código moral que um ato que cause a morte de um ser humano é inaceitável, qualquer ato que cause a morte de qualquer ser humano deve ser tratada assim. Se aceitamos que a violação de propriedade privada é inaceitável, qualquer violação de qualquer propriedade privada é inaceitável. Se aceitarmos que o desrespeito à identidade de um ser humano é inaceitável, qualquer violação de qualquer identidade de um ser humano é inaceitável.

A exceção enfraquece a moralidade. É a admissão de que, para quem aceita a exceção, a moralidade nunca foi utilizada como um meio para justiça, crescimento, honra, ou o que mais quiser dizer, mas como apenas uma arma, um meio de perseguição, punição e segregação, especialmente através da viabilização da superioridade do acusador.

Nesse sentido, podemos concluir que moralidade, no fim das contas, é algo muito ligado ao respeito que temos com nós mesmos, porque quando somos incoerentes com ela, estamos nos desrespeitando.

Se dissermos, por exemplo, que somos a favor da vida, que temos um compromisso com ela, mas fazemos ações que contrariam esse código, ou apoiamos visões de mundo e decisões que o contrariam mesmo que em um único instante ou caso, nós estamos dizendo a nós mesmos que nossa moralidade é falha. E com isso, que nossa palavra e convicção é falha.

Isso é importante de distinguir: quando falhamos com uma regra dos outros, é possível se manter dentro do próprio código moral. Não se desrespeita, nesse caso. Mas isso também não é moralidade, é apenas obediência ou falta dela.
Assim, aquele que sustenta um código moral apesar dos pesares é merecedor de um respeito especial, pois é o único que se aproxima de agir moralmente de modo desinteressado — ou, ao menos, tendo apenas o respeito a si mesmo como único interesse em todo o seu processo de decisão.

Voltando na questão da independência existencial da moralidade, penso que, no máximo, a única reguladora que pode existir no caso é a intenção, e ela não é necessariamente sempre redentora ou condenadora. Observe que um ato imoral que não tem a intenção, assim, não é necessariamente imoral.

Se alguém envenenar outra pessoa por acidente, o envenenamento e homicídio resultante são imorais, mas não é justo considerar que o ato foi equivalente em imoralidade a alguém que o fizesse com dolo. Alguém que rouba um estabelecimento para se alimentar ou alimentar seus filhos está violando propriedade, o que é considerado um ato imoral, mas isso não deve ter o mesmo peso de julgamento que outros tipos de roubo cuja intenção fosse menos nobre.

Esse tanto é algo que nós, como sociedade, já reconhecemos e prevemos em nosso sistema de leis e punições: intenção é inegavelmente importante. E intenção também já pode ser crime, em si, se for uma intenção imoral: dependendo do caso, o planejamento de um crime, se comprovado, já é passível de punição, mesmo que o crime não tenha de fato ocorrido.

Se alguém fracassa em cometer atos imorais, mas tinha desejo de cometê-los, a pessoa ainda é moralmente problemática. Se uma pessoa tinha boas intenções e prejudicou os outros, ela não é isenta de ter seus atos considerados imorais.

(Aqui entra um aspecto importante da conversa inteira: ser competente e fazer as coisas propriamente pode ser, se não necessariamente um ato moral, um facilitador de moralidade.)

Mas o ponto é: a intenção não se basta totalmente. Nenhum ato imoral se torna moral porque a intenção era boa, nem um ato moral se torna totalmente imoral porque a intenção era ruim. Isso apenas reforça a tese que moralidade independe de contexto, destinatário e efeito.

E isso nos leva ao ponto inicial: não importa se sua intenção seja a melhor de todas, não há vitória moral em derrotar o inimigo. São só os seus atos morais que podem te gerar alguma superioridade moral, se é que tal coisa existe.

Lembre-se bem disso na próxima vez que vir alguém falando de quem deve ser combatido. Na minha experiência de vida, se você apenas constrói inimigos, você pode até conseguir derrotá-los até certo ponto, mas depois disso você não tem estrutura para construir coisa alguma, e a ruína moral tende a acompanhar.

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Rodrigo Ortiz Vinholo
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Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

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