Imagina se fosse com a sua família?
Você provavelmente já ouviu esse argumento em alguma discussão. Dependendo, é possível que você também o tenha utilizado.
A situação é infelizmente comum: alguém comete um crime — geralmente algo grave, como agressão, estupro ou assassinato — e essa pessoa é punida. Só que, no processo, alguém comete um excesso, indo além do que a lei prevê, e quando isso é apontado como indevido, as pessoas acham ruim e, cheias de fúria, dizem algo nessa linha.
Os argumentos variam, mas dentre discussões sobre como a lei deveria funcionar ou sobre falhas no sistema de justiça, no geral acabam de um jeito ou de outro caindo em alguns clichês que são adorados por muitos políticos, apresentadores de televisão e adoradores desses: “Tá com pena? Leva pra casa!” ou “Vai defender bandido?” ou “Direitos humanos para humanos direitos” ou “essa gente é muito sensível e emocionada, não entende a vida real” ou a bobagem que melhor explica o problema de todos esses argumentos: “Achou ruim que mataram o bandido? Imagina se fosse com a sua família? Se fosse sua mãe, sua irmã, sua filha? Duvido que você não ia querer que fizessem a mesma coisa!”
Geralmente, quando a discussão chega nesse ponto, não há mais espaço para racionalidade, e o fato de que geralmente a conversa já começa com esses clichês indica o tamanho do problema.
Mas vamos lá, vamos responder a frase desses tantos brasileiros sedentos por sangue e “justiça”: é claro que eu, se estivesse furioso e arrasado com a morte de uma pessoa querida, ia querer acabar com quem causou tudo isso. Mas aí é que está o ponto que esse argumento ignora: isso não me torna certo.
O meu sentimento não é uma justificativa válida para qualquer decisão, especialmente se essa decisão é sobre justiça e vai afetar a vida de outras pessoas.
Eu imagino que estou falando o óbvio, mas como esse argumento continua ressurgindo, eu preciso deixar bem claro: as leis existem porque nós não podemos confiar em nós mesmos quando estamos emocionalizados.
Ou seja, quando você está falando “imagina se fosse com a sua família?” você não está me dando um bom argumento.
Transfira isso para qualquer outra situação e a diferença fica óbvia. Imagine que eu tenho um cliente e eu o agrido e depois tento justificar que era porque eu estava tendo um dia ruim. Eu perderia meu emprego. Imagine que seu priminho está te aporrinhando e você joga ele pela janela do quinto andar só por isso. Ninguém diria que é razoável, por mais irritante que o Enzo possa ser.
Fez sentido?
Se ainda não fez, vamos pensar puramente em leis, com algo que se aplique a você. Imagine que você está em seu carro e é parado por um policial por excesso de velocidade. Em vez de uma multa, o policial faz com que você saia do carro, te dá um tiro no joelho e manda seu carro para um desmanche. Aí alguém aponta o quão absurdo isso foi e você vê pessoas dizendo que o policial estava certo, que não pode pegar leve com gente como você.
Entendeu o ponto, agora? Claro que você não é um agressor, ladrão, estuprador ou assassino, mas a lei que julga o seu excesso de velocidade e qualquer outro crime mais grave tem princípios básicos em comum. Em qualquer um dos casos, uma violação desses princípios básicos é um problema, mesmo que nós odiemos mais o criminoso que cometeu crimes graves.
Então tudo que peço é algo difícil, mas que todos temos capacidade de fazer: vamos usar a razão.
Existe uma diferença clara entre você querer discutir o modo como uma lei é aplicada e você utilizar seus sentimentos para justificar uma violação das leis. Existe uma diferença enorme, também, entre alguém cobrar a coerência com as leis e defender as ações de um criminoso.
Nós não podemos, como sociedade, aceitar argumentos emocionais para justificar nossas ações, por mais horrendos que sejam os atos envolvidos. Isso abre as portas para o pior que o ser humano tem para oferecer.
Vale lembrar, os políticos, imprensa e muitos dos apoiadores sabem que esses argumentos emocionais funcionam, e os utilizam de propósito. Porque se alguém está chocado, essa pessoa vai querer fazer alguma coisa, e nessas horas aceitam cegamente as propostas mais absurdas que essas figuras tem a oferecer, ou aceitam ceder mais tempo para que se tornem público para o patrocinador. Conduzir nossas emoções e buscar a justiça efetiva, nessas horas, é um ato a favor do respeito a nós mesmos e à nossa liberdade.
Assim, de dois, um: se você usa esse argumento, ou eu não consigo confiar em você porque você é uma pessoa manipuladora e desonesta, ou eu não consigo confiar em você porque você é incapaz de pensar racionalmente.
Quando você me diz “imagina se fosse alguém da sua família”, você está dizendo que eu deveria parar de pensar, e apenas sentir raiva, ódio e tristeza.
A justiça é cega exatamente por isso. Porque se ela fosse jogar fora as leis de acordo com como estivesse se sentindo, ela não precisaria existir. Quem “defende bandido” é quem apoia que a lei seja usada de maneira errônea, quem é “sensível” ou “emocionado” é quem pensa que um policial — ou seja lá quem for que cometeu a injustiça — está correto simplesmente porque agiu de acordo com o que seus sentimentos ditam.
Quando aceitamos que profissionais que deveriam agir dentro de normas específicas fujam dela, seja porque discordam de como a lei funciona ou porque são tão emocionais quanto estamos sendo, nós estamos incentivando esse comportamento. Estamos recompensando um crime, por menos que queiramos admitir que é um crime.
“Puxa, mas existem punições que variam de acordo com envolvimento emocional! E existem leis que protegem pessoas que se ofenderam com algo! Vai dizer que isso não é emocional?”
Mas a questão, aqui, é que estamos falando de sentimentos de quem sofre por efeito de uma ação, versus os sentimentos que estão embasando uma tomada de decisão. Note que a lei que pune alguém por algum dano psicológico, ou de reputação, ou qualquer outro, não foi definida em um momento emocional: ela foi feita, em tese, racionalmente, e separadamente do momento de decisão.
É a questão: eu posso processar alguém por ter me difamado ou caluniado. Eu não posso matar alguém por ter me difamado ou caluniado e achar que isso é justificável.
Fez sentido? Se não fez, volte pro começo e leia de novo.
E se você só funciona de modo emocional, faça você esse exercício odioso: imagina se fosse alguém de sua família que as pessoas estão tratando injustamente. Você não ia gostar, né?