Graças a mim
Me lembro que alguns anos atrás, em uma festa de aniversário, virei assunto entre os familiares da aniversariante porque fui identificado como um escritor.
Essa é uma daquelas ocupações que geralmente trazem reações diversas, geralmente resumidas em dois grupos: ou as pessoas falam com você com uma admiração reverente e estranha, ou elas olham com certa desconfiança e julgamento, se você não for um autor publicado por uma grande editora, ou ao menos não puder ser encontrado facilmente em qualquer livraria que elas já tenham frequentado.
Felizmente, as reações que eu vi na festa foram todas do primeiro grupo, com comentários de incentivo e interesse. A certa altura, porém, fui informado que uma senhora que eu não conhecia queria falar comigo.
Era uma tia-avó ou algo do tipo. Uma velhinha muito velhinha, frágil e enrugada, que não conseguia falar muito alto. Ela queria me conhecer e me cumprimentar por ser um escritor, e eu, não tão a vontade pela interação com a desconhecida, mas educado o suficiente para lhe dar toda atenção necessária, fui até lá falar com ela.
A conversa foi tranquila. Ela segurou minhas mãos e não soltou enquanto falava, em uma proximidade excessiva que me pareceu desnecessária mesmo para um período anterior à pandemia, e disse que era muito bom que eu fosse um escritor, que eu devia ser muito estudioso e inteligente, e várias outras coisas. Eram bons elogios, ditos no vocabulário e no ritmo de quem havia vivido muito tempo e com uma intensidade específica que eu realmente só me lembro de ter visto nessa faixa etária.
Note que ela não fazia ideia sobre o que eu escrevia. Ela jamais suspeitaria que contos de terror e suspense, mais reclamações diversas na internet, eram o que eu mais frequentemente publicava. Na minha experiência, ela deveria ser parte do público-alvo que é repelido pelas minhas criações. Mas ela havia se apegado à ideia de “escritor” e “autor publicado”, e isso bastou.
Por mais que eu goste de receber elogios, a troca logo começou a ficar cansativa, por ser cerimoniosa demais. Eu confesso que não lembraria dela se parasse por esse ponto, mas o final da conversa foi a parte mais cansativa e, por isso, memorável.
Depois de discorrer sobre os meus talentos sem saber de nada além do que haviam dito a meu respeito e sem ter lido qualquer obra, ela soltou a fatídica pergunta:
— Você sabe como conseguiu isso, esse talento para a escrita?
Estou parafraseando. Talvez ela tenha dito algo como “Você sabe de onde veio isso?” ou “Você sabe o que é isso?”, mas o sentido era basicamente o mesmo, e me lembro de me sentir extremamente confuso.
Debati internamente no instante de silêncio que se seguiu, inflamado pela ansiedade social da conversa desconfortável. Aquela era uma pergunta retórica? Soava como uma pergunta retórica, mas, se fosse, qual era a resposta certa? Era uma pergunta real? Ela queria saber aquela informação? Se fosse literal, com eu poderia responder? A velhinha estava mais uma vez elogiando meus estudos e queria argumentar algo sobre meritocracia? Ou era outra coisa?
Decidi que a melhor resposta era ser sincero, e ainda assim, falei de modo hesitante:
— Foi através de meus estudos e esforço? — respondi. Talvez as palavras exatas não tenham sido essas, mas a intenção era a mesma. E sim, havia uma interrogação na minha resposta.
— Isso aí é Jesus! — disse ela, corrigindo minhas suposições e imediata e indiretamente respondendo minhas perguntas silenciosas. Não era sobre meritocracia, afinal. Era sobre religião. Eu deveria ter suspeitado.
Eu me esforcei para manter a expressão firme em um sorriso enquanto ela falava sobre como Jesus havia me abençoado com aquele talento, e que eu deveria agradecer a ele, e como ele tinha um plano, um papel para mim, e mil outras coisas. Confesso que não lembro as palavras erradas porque meu esforço estava em responder educadamente concordando com ela, soltando uns “ah, sim” e “amém” nos lugares certos e tentando não transparecer meu incômodo com aquela frase e tudo que estava implícito nada.
Se você chegou a este ponto da minha história, provavelmente está em um de três grupos diferentes. Um grupo compartilha o meu desgosto com a conclusão da tia-avó desconhecida. Outro, geralmente religioso, concorda com ela e talvez tenha se incomodado com o meu incômodo. Outro, ainda, é o grupo que, concordando ou não com ela, acha que eu não deveria me preocupar com a fala dela, sabendo que é um costume popular falar esse tipo de coisa.
Mas eu quero dizer que isso está errado. Sendo educado, digo que essa é uma ideia ruim. Mesmo para quem é religioso, essa é uma ideia que chega a ser ridícula. E é sobre isso que eu queria falar com vocês.
Veja, eu não sou uma pessoa particularmente religiosa. Quando digo isso, notem, não significa que sou ateu. Eu só não me importo o suficiente para seguir à risca livros sagrados, ou frequentar templos, ou ter alguma frequência de rituais dedicados a alguma linha ou entidade.
E antes que pensem que este é um texto contra religião, eu já quero antecipar que não é o caso. Este é um texto contra a ideia de que a minha habilidade em qualquer coisa na vida é um pacote pronto, seja um presente divino ou uma habilidade inata.
Com isso eu digo, deixando a educação de lado: na minha opinião, “talento” é um conceito imbecil, não importa a origem que você dê para ele.
Então quando eu ouço alguém falar “ah, foi graças a Deus que você escreveu isso” ou “foi graças a seu talento”, eu geralmente agradeço e sorrio, mas por dentro o meu impulso é de balançar a cabeça e anunciar, para a pessoa: não! Você, pessoa, está errada! Não foi graças a um talento natural, nem a Jeová, Odin, Zeus, Shiva, Cthulhu ou quem você quiser atribuir!
Foi graças a mim!
Não foi o talento que me fez ler incontáveis livros e passar horas escrevendo. Não foi Deus que mandou uma dose de talento carregado por anjinhos, em um raio de luz divina, e eu falei “puxa vida, vou colocar essa dádiva pra jogo!” Essas ideias só perduram porque as pessoas só querem olhar a parte de cima do iceberg que existe em basicamente qualquer atividade que envolva esse tipo de desenvolvimento.
Foram anos de estudos, de prática, de experiências e incontáveis erros e frustrações, para a pessoa jogar fora tudo que eu passei e querer sintetizar tudo em talento ou em Deus? Sem essa!
O argumento de Deus, inclusive, deveria ser ofensivo mesmo a uma pessoa religiosa, afinal a ideia de livre arbítrio é vital à religião, ainda mais em um contexto cristão. Então se Deus ou Jesus ou qualquer outra entidade me escolheu para algo, ou se eu tenho um “talento natural” para aquilo, isso significa que o livre arbítrio não é tão livre assim.
Ou seja, ou eu tenho livre arbítrio, ou eu estou seguindo o plano. Alternativamente, se eu estou seguindo o plano porque isso é um sinal de que sou alinhado com os valores da entidade de escolha, isso significa que a entidade de escolha quer que eu produza histórias e textos que apresentam ideias que incomodam e até ofendem as pessoas que a seguem e que até, por vezes, questionam os ensinamentos da entidade e de seus profetas e representantes.
O resultado é: ou há alguma entidade por trás de mim e ela está pouco se danando para o que seus seguidores querem, ou eu tenho livre arbítrio, tendo entidade ou não por trás.
Pela lógica, se eu tenho livre arbítrio, isso significa que eu escrevo bem graças a mim, e não graças à entidade. (Acredite: por mais que muitos possam não pensar assim, essa é a frase mais respeitosa que eu jamais poderia fazer sobre qualquer entidade criadora e/ou mantenedora de nossa existência.)
E aí o povo do “talento” pode apontar, corretamente, que talvez existam fatores biológicos que facilitam para que eu escreva bem. E sociológicos. E econômicos. E culturais. E vários outros. Podem apontar que existem pessoas que acabam se dedicando tanto ou até mais que eu e não conseguem os mesmos resultados.
Talvez elas tenham algum ponto, só que esse argumento não se sustenta a partir do momento em que temos o ponto básico que é: houve alguma dedicação. Mesmo se eu ainda tiver alguma base diferente, ainda precisou da minha vontade, esforço e tempo.
Ainda é graças a mim, não graças ao talento. O resultado ia ser diferente se não fossem esses aspectos? Se eu não tivesse o tempo, dinheiro e apoio que existem em minha vida? Certamente. Só que aí que surge uma armadilha interessante: quando nós falamos de talento e esforço, nós jamais separamos os dois aspectos, mas usamos pesos estranhos para eles.
Nós gostamos de ideias de superação. Se vemos alguém agindo contra as adversidades, o esforço pesa mais, e o talento vira base. Se a pessoa não tem tantas adversidades, nós reforçamos o talento e deixamos de lado a visão de esforço. Não caia nessa. A ideia de talento é uma armadilha ideológica.
Por fim, mesmo que você discorde de mim em algum ponto ou em todos, deixar de lado esses papos de tirar o mérito das pessoas e colocar em algo externo é de uma falta de educação imensa.
Médicos são vítimas frequentes disso. O cara vai e faz uma cirurgia complicadíssima e salva uma vida. As décadas de estudo e prática saem pela janela na hora do agradecimento, porque foi “graças a Deus” que o paciente foi salvo. Claro, eu sei que alguns profissionais de saúde contam com apoio divino, ao menos em suas palavras, e até atribuem o sucesso nesse sentido, mas isso não significa que é verdadeiro para todos e, claro, nem que Deus realmente estava envolvido no processo.
Felizmente, para os médicos, raramente eles ouvem coisas como “você tem um talento especial” depois de uma operação. No geral, quem recebe o agradecimento é o próprio profissional ou a entidade de escolha, mas não o “talento”.
Para entender esse meu ponto, pense no oposto: ninguém fala que foi Jesus ou Deus quando um político rouba, quando um assassino mata uma pessoa, quando um terrorista invade uma escola com uma metralhadora. Mesmo que ele seja muito bom nisso. Mesmo que ele tenha “talento”, mesmo que ele mostre uma performance única, mesmo que não exista justiça divina aparente que possa impedi-lo.
Esse papo de “graças a Deus”, “graças a Jesus”, só dura se supormos que Deus está interferindo em todas as operações que dão certo, e escolhendo deixar de lado as que dão errado. Ou que não está intervindo no ato do sequestrador, do atirador em escolas, do cara que escolheu beber e dirigir e acabou matando uma família na calçada.
Do mesmo modo, o papo de “talento” só surge nessas desgraças quando alguém fala de “talento desperdiçado”. Só que aí também é uma conversa bem torta, porque ela, novamente, ignora que mesmo a pior das pessoas, quando talentosa, geralmente praticou para cometer bem suas atrocidades.
Respeite as pessoas. Respeite a habilidade das pessoas. Esse respeito também é para você, pessoa que está lendo, porque quando você minimiza o que outra pessoa conquistou depois de estudo, treinamento e prática, você também abre a porta para que minimizem seu esforço e história.
Não caia nessa.