Faz melhor
Dos primeiros anos da infância até minha vida adulta, quando a conversa é julgar a qualidade de qualquer obra ou decisão, há um argumento que sempre ouvi ser repetido: “Não gostou? Faz melhor, então!” Apesar da passagem dos anos, do (suposto) amadurecimento das pessoas e do (suposto) acesso amplo a informações, eu ainda vejo falarem essa frase que, no fim das contas, não faz o menor sentido.
Mais amplamente, esse clichê é parte de uma cultura que está imersa nas mais diferentes especialidades, que é a percepção de que é impossível ser um crítico de alguma coisa se você não é criador. Por essa visão, pouco importa sua experiência de consumo ou estudo, por extensa que seja, ou mesmo seu gosto pessoal: você só poderá opinar no resultado final quando tiver a capacidade de fazer algo no nível do objeto de crítica.
Eu tenho a impressão de que a ingenuidade e até má intenção de tal ideia é fácil de perceber para boa parte dos meus leitores, mas mesmo para aqueles que entendem, peço que permaneçam porque a discussão ao redor dessa frase infeliz e de seus desdobramentos culturais passa por alguns pontos importantes. É sempre bom discutir até mesmo as coisas que nós já sabemos porque podemos nos lembrar o que realmente é relevante sobre elas.
Bom, vamos tirar o óbvio do caminho: o básico do “faz melhor” é que se trata de uma reação emocional e, como tal, ele já traz desde o início a ideia de quem falou é incapaz de aceitar qualquer crítica ao que foi criticado e, portanto, essa pessoa será não apenas impossível de convencer ou argumentar, como pensará que a crítica foi uma tentativa de ofendê-la, ou de convertê-la, mesmo que a outra pessoa não esteja tentando convencê-la.
Geralmente, o uso dessa frase parte de seis princípios, direta ou indiretamente, e com níveis variáveis de intensidade:
1- “É impossível que o objeto em questão seja alvo de crítica, ou ao menos essa crítica que foi feita ou, ao menos, da origem específica de que veio”;
2- “A crítica ou rejeição fere o ego de quem gosta, porque essa pessoa se identifica com o objeto criticado e, portanto, recebe a crítica como se fosse para ela”;
3- “A pessoa que critica está fazendo uma crítica justamente para causar esse efeito de agressão, levando para o pessoal”;
4- “A pessoa que critica faz isso porque sente inveja, raiva, ódio ou uma combinação desses em relação à obra/decisão, ao autor(a) ou autores, e/ou é um concorrente desonesto”;
5- “A pessoa que critica reconhece o mesmo nível de qualidade que a pessoa que gosta sob os mesmos critérios, mas se recusa a aceitá-lo por algum dos motivos supracitados”;
6- “O objeto criticado é objetivamente superior e, por isso, a pessoa que o consome tem um gosto/conhecimento/opinião objetivamente superior.”
Se isso parece exagero, sugiro destrincharmos a frase, e imagino que esses pontos devam ficar mais claros:
“Não gostou?” ou “Você acha ruim?” ou “Como assim, você não gostou?” estão entre vários dos pontos iniciais da indignação e surpresa que levam ao “faz melhor”. Note como os três necessariamente surgem como resposta a alguma crítica e já pressupõe alguma rejeição a ela, cobrando confirmação e esclarecimento.
Uma variedade mais agressiva que pode ou não levar ao “faz melhor” é o “Não acredito que uma pessoa inteligente como você pense assim”, que é um jeito disfarçado de dizer “você é burro”. Em outros casos há aqueles que já começam com uma acusação para tentar desqualificar o argumento, algo tipo “isso aí é inveja” ou similares.
Todas essas frases já criam um pressuposto: “o que está sendo criticado é bom, e não compreendo ou aceito sua posição de rejeitar/criticar.” A partir dessa primeira impressão, o ataque ao ego fica óbvio, porque a pessoa se posiciona em um modo de rejeição essencial. A discordância com essa opinião se torna uma discordância com ela como um todo. A crítica passa a ser sobre essa pessoa, mesmo que seja simples.
É possível ver isso em discussões mais longas. Se algo é chamado de “fútil” ou “simples”, é comum que o consumidor disso se sinta chamado da mesma forma, mesmo que o crítico não tenha dito. Se algo é considerado “feio”, ou uma má ideia, é comum que alguém receba isso como uma crítica à sua capacidade de discernimento. Por vezes, claro, é inevitável que isso aconteça, ainda mais quando não estão em jogo fatores subjetivos, mas em grande parte dos casos uma crítica não reflete um ataque àqueles que apreciam o objeto de crítica.
E aí, a partir desse ponto, que vem o “faz melhor”. Soando como um desafio, ele propõe que o crítico seja, primeiro, capaz de fazer algo não equivalente, mas melhor do que o que foi feito. E, segundo, fica claro que o desafiante raramente o faz com honestidade: ele está pronto para rejeitar o que vier, porque o significado real da frase é “você é incapaz de fazer algo melhor”, sendo que “melhor” existe em um critério de análise dele mesmo, que pode ser algo mensurável (como lucro, por exemplo), ou algo subjetivo como “impacto cultural”, “importância”, ou mesmo o gosto de quem fala. Ou seja, de novo, o significado da frase é “eu nunca vou aceitar sua opinião, porque ela é a opinião de alguém que rejeita o que eu gosto.”
Ao colocar o outro no lugar de um não-criador ou um criador incompetente, o falso desafio já atesta essa falta de capacidade de criação ou superação como o próprio motivo para ela existir. É como se dissesse “você só diz isso porque sente inveja”, por exemplo. Na prática, uma crítica que venha de alguém em um lugar de propriedade equivalente ou superior ao do que é criticado geralmente será rejeitada se não com a mesma frase, com outra, e com o mesmo tipo de decepção.
Aqui há uma questão lógica frequentemente ignorada: se partiremos do princípio de que alguém só está fazendo a crítica para que ela seja um ataque, isso significa que essa pessoa entende que o que foi dito foi para desmerecer de caso pensado algo que não é merecedor da crítica. Mas aí que está o ponto: para que alguém faça uma crítica propositalmente injusta, essa pessoa tem que reconhecer o valor da exata mesma forma que essa outra pessoa. Ou seja, só é desonesto em sua crítica aquele que vai contra sua convicção, e esperar isso necessariamente de todas as críticas apenas explicita a inflexibilidade de quem usa o clichê. É como se dissesse “é óbvio para todos que isso possui tal qualidade e qualquer negação disso é inaceitável.”
Conseguimos entender por que isso é uma reação emocional? Espero que sim, porque tem mais, e agora, finalmente, conseguimos ser um pouco mais lógicos:
O grande ponto desse texto, finda essa análise do lado sentimental, é algo que é óbvio para nós em todos os sentidos de nossas vidas: é possível criticar uma coisa mesmo que você não seja um criador. Eu sempre achei que isso era óbvio, mas vejo cada vez mais que não para todos.
Segregar a opinião de quem consome ou é afetado pelo objeto de crítica é uma visão elitista, que coloca esse crítico como indigno. Nessa visão pretensamente superior, ele não só deve consumir sem reclamar, como deve gostar e, idealmente, até elogiar. Há um clube, um estrato específico de pessoas que podem ser críticas, e quem não se iguala a eles é uma massa amorfa de ignorância que deve ser impedida de opinar, ou cuja opinião deva ser descartada ou ridicularizada.
Se você achar uma xícara de café ruim, você não precisa ter tomado mil cafés diferentes, nem saber todos os segredos de plantio, torrefação e ainda ter dez mil horas de experiência como barista. Você vai só falar que não gosta do café de tal jeito. E não haverá erro nisso, porque é a sua opinião sobre o seu consumo de café. Você sabe do que gosta, e pode não concordar com descrições técnicas do que é considerado qualidade pelo mercado, mas, no fim, você não precisa concordar com isso no seu consumo pessoal. Você, inclusive, talvez até consiga “fazer melhor”, que seria fazer o café do jeito que você gosta.
Pensando em críticas em geral, há, claro, sempre um mar de subjetividade e alguns casos em que existem critérios técnicos. Há o gosto pessoal, que é variável, e existem quesitos técnicos em vários casos. Só que o peso que se dá para os quesitos técnicos vai variar também de pessoa para pessoa, metodologia para metodologia. É óbvio, então, que vão ocorrer discordâncias, já que haverá também críticas e opiniões sobre as diferentes metodologias.
Mas não é disso, precisamente, que estamos falando, não? O “faz melhor” não necessariamente existe dentro de um crivo técnico exato. Ele vai se referir a diferentes aspectos, mesmo que repetido no mesmo campo. E, de novo, caímos na questão de que ele é uma técnica de silenciamento bem descarada, e isso fica claro pelos contextos em que ele não é usado.
Se você está no trânsito na cidade, ninguém vai falar para você substituir os guardas de trânsito, ou qualquer órgão público responsável por ele. Se você for vítima de erro médico, ninguém vai te dizer para fazer melhor que o médico. Se entregarem seu prato errado em um restaurante, ninguém vai falar para você cozinhar melhor.
Talvez, com esses exemplos, você possa opinar que eu falei apenas de situações de erro. Pois bem, temos outras: se você prefere um estilo de roupas em detrimento de outras, porque acha que combina mais com sua identidade, dificilmente vão dizer para você “fazer melhor” por não achar que não combina com você. Idem para um corte de cabelo. Idem para a decoração de sua casa. Quanto mais pessoal, menos se aplica o “faz melhor”.
Ainda que existam pessoas que não entendam e que vão insistir para você comer uma comida que não gosta, ninguém acha que você não gostar, por exemplo, de acerola ou de tâmaras é uma crítica descabida às frutas. É bem mais fácil aceitarem seu gosto do que sua crítica a um filme ou ao comportamento de um político.
E aí que está a questão de paixões: geralmente o “faz melhor” surge com quadros, livros, quadrinhos, filmes, séries, esportes, política, administração, matérias jornalísticas… tudo que envolve não só um envolvimento emocional intenso, mas uma relação de identidade. É a crítica de crítica impossível de ser rebatida porque ela propõe uma solução impossível como o único método de rebatê-la.
Ninguém vai “fazer melhor” um filme da Disney, porque ele já foi feito. No máximo, farão algo parecido, mas nunca aquele, naquele momento, naquele contexto. Idem para uma política pública, idem para a performance de um time em um campeonato de determinado ano. Há uma temporalidade impossível, uma violação de causalidade que foi feita apenas para, claro, não existir resposta.
Com isso, deixo algumas observações finais relevantes: isso tudo não é um texto para defender críticos, muito menos para pregar qualquer irresponsabilidade na hora de uma crítica, mas para que cada um de nós possa ser um pouco menos apegado e entender que sempre haverá uma distância em experiência de uma pessoa por outra, não importando quantos critérios técnicos adotemos.
E, sim, críticos podem ter opiniões diferenças, e podem, pasme, estar errados. Existe desonestidade e existem críticas tendenciosas. Pode existir o crítico que é apenas um profissional frustrado, mas isso não quer dizer que todo crítico é assim. Essa generalização é um escudo para qualquer ego frágil se proteger da realidade e de palavras mais duras.
Se você aceitar a visão de que toda crítica é enviesada e existe com segundas intenções, isso provavelmente diz algo não só sobre o que você critica, mas sobre aquilo que elogia. Talvez exista nesse ponto uma grande lição.
Não gostou do texto? Não concorda? Faz melhor, então!
Não, sério, faça algo melhor mesmo, por favor. Ou faça algo, talvez eu ache melhor, talvez não. Juro que tentarei ser o mais civilizado possível.