Eu odeio liderança
Eu queria falar um pouco sobre liderança, e pensei em várias maneiras antes de colocar minhas ideias em palavras. Comecei com alguns caminhos e abandonei tudo, porque notei uma coisa muito simples: eu não estava sendo nem um pouco honesto, nem comigo e nem com as ideias que eu queria passar.
Me recuso a falar coisas sobre liderança de modo que simplesmente fique do jeito que as outras pessoas possam gostar, ou esperam ler. E parto disso pela razão direta de que eu odeio liderança.
Eu odeio seguir alguém, odeio sentir que estou sendo conduzido, e odeio liderar. Odeio mandar, desmandar, conduzir, acompanhar. Acima de tudo, odeio conversar sobre esse tópico como se ele fosse a solução do mundo, de todos os nossos problemas, e odeio ler e ver sobre líderes e sobre técnicas e sobre boas práticas, e odeio que me digam que tenho capacidade de liderar, que apontem características minhas que estão a favor disso e outras que poderiam melhorar para isso.
“Odeio” talvez seja um termo forte demais? Talvez. Mas é fato que, no geral, não gosto de tudo isso. E vejo com muita desconfiança esse tipo de conversa, então não é de todo errado usar esse termo.
Mas a coisa toda que me dói mais a cabeça é que eu sei que a ideia de liderança não é ruim, nem desnecessária, e eu realmente sei que sou um ótimo líder quando preciso ser, e mesmo quando não quero. Estou muito, muito longe de ser perfeito, mas para todos efeitos em geral sou eficiente e eficaz. E sei que existe muito valor em desenvolvimento de relações humanas e auto-desenvolvimento ao pensar e trabalhar com esse tipo de coisa, assuntos que eu aprecio e sempre busco explorar, quando posso.
Eu pensei por muito tempo e notei essas duas forças opositoras em minha mente e em meus sentimentos, e fiz para mim mesmo a pergunta que você talvez esteja fazendo: “qual é?”
Vamos conversar e descobrir “qual é”.
Vou ter que levar para o pessoal, aqui. Tanto porque eu já vi que muita gente tem o mesmo problema que eu, quanto porque quanto mais eu penso sobre isso, mais eu tenho certeza de que não há outro caminho: é impossível encarar liderança sem falar em algum nível sobre meu próprio estado emocional e mental, sobre minha capacidade de relacionamento humano, e sobre muita coisa mais. Não é um tópico que existe sem algum nível de auto-análise, e por isso me é mais doloroso.
Um motivo por que eu não gosto de liderança é porque ela sempre implica em eu ter que adequar a mim mesmo, e encarar a maneira como eu faço as coisas e como espero as coisas.
Por exemplo, não gosto de ser liderado, ou de obedecer, porque geralmente isso implica em ter que fazer coisas que não quero ou concordo, ou de algum jeito específico que eu não quero ou não concordo. Do mesmo modo, esse é um dos grandes motivos que me faz assumir o papel de líder em muitos momentos da minha vida: se eu não o fizer, pode ser que ninguém faça, e o que eu quero que aconteça não vai acontecer. Em outras vezes, do mesmo modo, se eu não fizer outra pessoa vai fazer, e ela pode não fazer do jeito que eu prefiro, ou que eu enxergue como melhor.
Nesse sentido, entra um outro ponto dúbio dessa ideia: parte do meu motivo para assumir a liderança é relativamente egoísta. Só que em seguida ele fica menos egoísta, porque, como eu mencionei, eu também não gosto de ser a pessoa que está mandando ou desmandando, indicando, recomendando. Mas aí eu coço a cabeça e penso bem e sei que o líder, na prática, não é alguém que manda. Quem manda é um “chefe”, um ditador de meia-tigela. Quem lidera, em vários níveis, serve alguém e representa alguém. É como (ao menos em teoria) deveria funcionar a política, por exemplo. Mas não vamos entrar nesse campo.
Chegando nesse ponto, inevitavelmente me dá um nó na cabeça: de um lado, não quero que mandem em mim e prefiro ser o responsável, e de outro eu entendo que há um fator de submissão em todo esse processo. O líder deveria ajudar as pessoas, e eu gosto de ajudar as pessoas. Então… qual o problema?
Um problema, eu acho, é que eu não gosto da ideia da chance — mesmo remota — de me tornar um “chefe”, nesse sentido ruim, seja por meu erro ou por expectativa alheia. Eu não gosto de hierarquias burras. Me mostre uma empresa onde existe um executivo de nariz empinado com um escritório privativo e nos meus piores momentos eu fantasiarei em incendiá-lo. Tudo bem, esse tanto foi um exagero, mas a ideia básica é verdade: eu acho que qualquer tipo de distanciamento e hierarquização desnecessária é ridículo e não deveria caber dentro de uma relação em que se espera ter uma boa liderança.
Estamos em um mundo em que qualquer idiota — com todo respeito aos idiotas — consegue se dizer líder ou é aclamado assim e fala todo tipo de asneira. Um mundo onde existem incontáveis líderes desonestos, moralmente (ou criminalmente) corruptos, incapazes de respeito. O risco de me tornar esse tipo de líder, egóico e tosco, é algo que me assombra, e que creio que deveria assombrar a todo líder pretenso ou incidental. Ou, ao menos, existir como uma ideia na periferia da consciência como algo a ser evitado.
Mas isso ainda não explica tudo, eu sei. Isso não explica “odiar” liderança. E me vejo forçado a olhar mais fundo, tendo consciência de que esse olhar também é algo que me incomoda, e aí chego a algo bem estranho: a síndrome de farsante.
Frequentemente, quando me vejo em uma posição de liderança, eu me sinto inadequado. Eu sei que o fracasso de qualquer liderado será minha responsabilidade, e sei que o fracasso da empreitada será primariamente meu, acima do conjunto. Então a todo tempo eu estou prestando atenção em mim mesmo e em minhas ações, e fica difícil não questionar cada uma das coisas que faço e ver nelas a semente de possíveis erros.
Eu vejo que não quero ser líder porque não quero ter a chance de encontrar o fracasso. Se eu não fizer nada, ou se a culpa não puder ser minha, não há chance de fracasso. Raciocínio depressivamente impecável, não?
Alguém já me disse que para liderar é preciso liderar a si mesmo. Mais do que uma frase de efeito com som de auto-ajuda, isso é uma verdade inevitável e difícil de engolir: se eu quero evitar o fracasso e evitar o fracasso alheio envolve esse mesmo trabalho, eu ter confiança no que eu faço, ou ao menos proceder com o máximo de assertividade e preparo que eu puder, se torna inevitável. Então liderar envolve eu me desenvolver, além do trabalho que já está sendo efetivado.
Resumindo, com toda a sinceridade que consigo ter, eu odeio liderar porque dá medo e dá trabalho. Porque até o ponto em que se tornar fácil, ou menos difícil, eu vou ter passado por muitos perrengues ou ao menos a tensão do perrengue iminente por algumas ou muitas vezes.
E qual a recompensa? Sucesso, possivelmente, mas geralmente mais liderança. Se der certo, as pessoas vão esperar que eu repita isso. E aí que vem a dor de cabeça maior, porque de liderança em liderança, sempre vai ter algum trabalho e algum medo diferente, e alguma melhoria e mudança de atitude da minha parte. Sem fim.
Ou melhor, poderia ter fim, poderia ter uma alternativa, mas geralmente não são coisas que eu quero, então para todos os efeitos não são alternativas. Eu poderia não fazer o que quero, ou só seguir os outros, e talvez eu não tivesse esse medo, tensão ou trabalho. Eu não teria que esperar outras situações de liderança que me levariam a tudo isso. Mas eu não poderia esperar sucesso, ou não o sucesso que eu gostaria de ter, como eu gostaria de ter.
Eu quase que desejo pelo fracasso, simplesmente para não ter a dor e o trabalho, para poder apontar para as pessoas um dedo acusador e sorrir de modo vitorioso e falar “Viu? Quem mandou acreditarem em mim, otários! Agora nunca mais esperem nada de mim! Eu sempre disse para vocês que daqui não sairia nada de bom, e eu estava certo! Vocês estavam errados! Me deixem em paz, para que eu nunca precise tentar novamente e me expor dessa maneira.” Eu quase desejo o fracasso para evitar o fracasso de ter um fracasso.
E sei muito bem que quando penso assim só estou querendo fugir, e estou procurando pretextos. Sei que a dor do fracasso e de abandonar tudo seria maior.
Eu odeio liderança. Eu odeio que ela tende a formar uma cadeia inescapável de eventos que vão forçar quem está dando certo a continuar fazendo essas coisas difíceis, destruindo a caixinha da própria zona de conforto. Mas eu odeio também a alternativa, e odeio encarar que, dentre as duas opções desenhadas, não é assim tão ruim tomar a primeira.
O próximo passo, então, é tratar tudo isso com mais tranquilidade. Meu ódio aqui é hiperbólico, mas por vezes sei que ele tem seus momentos de verdade. E ele geralmente nasce do medo, justificado ou não. Eu não quero falar “mãos à obra”, porque vai parecer que estou com mais vontade do que estou de enfrentar isso. Então eu troco por “paciência”. Vamos em frente.