Desnecessário em histórias

Rodrigo Ortiz Vinholo
6 min readJan 29, 2024
"A leitora", Jean-Honoré Fragonard (c. 1770)

De vez em quando ressurge uma discussão estranha: afinal, o que é “necessário” em uma história? Discutem-se elementos imprescindíveis e aqueles que são tratados como completamente supérfluos em livros, filmes, séries de TV, peças de teatro etc. Nesse momento, as opiniões sempre divergem em detalhes, mas a maior parte das pessoas não tem problema em reconhecer a posição mais aceita, de que não há nada que seja desnecessário, que cada caso é um caso, cada contexto é um contexto.

Pois bem, dentre argumentos bons e ruins, simples e complexos, há um ponto que sempre ressurge com uma intensidade estranha. Para algumas pessoas, há um elemento que se não é considerado completamente desnecessário em histórias, o é para a grande maioria delas: cenas de sexo.

Os argumentos variam. Alguns falam de quebras de ritmo, outros que não querem ver, outros que sugerem que qualquer aplicação de sexo é apelativa e, em geral, o argumento que mais é usado para justificar é a conversa do “é desnecessário”.

Eu sou um escritor e, como basicamente toda pessoa no mundo, consumidor de histórias em várias formas. Para mim, ouvir que uma cena de sexo é sempre desnecessária é como alguém me dizer que algum elemento da vida humana é desnecessário. É aquilo, independentemente de opiniões e preferências, o exercício de imaginar a vida sem algum elemento é sempre uma ficcionalização perculiar, fazendo com que isso me pareça uma afirmação ilógica, estranha, e nascida se não de um moralismo estranho, de uma percepção estranha de como as pessoas entendem o papel do sexo na própria vida e na sociedade em geral.

Pensemos assim: uma cena de alimentação é necessária? Uma cena de beijo? Uma cena de matança, mutilação? Uma cena de perseguição de carro, ou de um passeio de carro? Nada é necessário em uma história. Como já sugeri no início, e como já apontei que muitas pessoas reconhecem, cada história tem suas necessidades. Por que existe esse elemento que é tido como a grande coisa diferente?

Claro, adequação é a palavra-chave. Eu entendo que existem motivos para limitar cenas e referências sexuais em diversos contextos. Eu entendo que se eu fosse assistir um filme infantil não faria sentido ter cenas de sexo. Nesse contexto, efetivamente algo estaria bem errado.

Do mesmo modo, às vezes a questão é só de clima, de expectativa. Eu entendo que se eu fosse assistir um filme do Godzilla seria estranho, dado o histórico, ver o lagartão copulando em cima de Tóquio. (Sim, eu sei que alguns de vocês adorariam ver o Godzilla copulando, mas o ponto aqui é outro.)

Mas o ponto é que existem incontáveis histórias em que sexo é importante. O Godzilla copulando pode não fazer sentido, mas nós já vimos vários filmes de monstros, bem como de catástrofes, em que havia romance e até mesmo cenas de sexo, ainda que não necessariamente explícitas. Isso porque qualquer história de superação e motivação humana passa por sentimentos, e tanto o amor quanto o sexo se ligam a esses tópicos.

Sim, nossa cultura tem suas razões para colocar o sexo dentro de quatro paredes. Ou, até, “nossas culturas”, pensando amplamente no mundo. Temos nossos pudores em como apresentamos certos assuntos. Mas uma história não necessariamente existe dentro de quatro paredes. Ela pode e deve falar sobre espaços fechados e abertos.

Vale pensar, também: quando falamos em sexo em uma cena, do que estamos falando? O quão explícito somos? Hoje, no Brasil, quando falamos de classificação de filmes, temos seis escalas (livre, 10, 12, 14, 16 e 18 anos), que são avaliadas a partir de eixos de “violência”, “sexo e nudez” e “drogas” (ref).

Para vocês terem uma ideia, maiores de 14 anos podem ver referências a eutanásia, exploração sexual, morte intencional e pena de morte. Maiores de 16 podem ver atos de pedofilia (sem consumação sexual), crime de ódio, estupro, mutilação, suicídio, tortura e violência gratuita. A limitação de 18 anos só entra para apologia à violência e crueldade.

Consumo de drogas ilícitas e irregular de medicamentos só podem ser vistos por maiores de 12 anos, bem como discussões sobre legalização, indução ao uso e menção de drogas ilícitas. Maiores de 14 podem ver “consumo insinuado” de drogas ilícitas, bem como a descrição do consumo ou tráfico. Maiores de 16 podem ver o consumo de alguma droga, indução ao consumo, produção ou tráfico, e só se limita a maiores de 18 a apologia ao uso de drogas.

Na hora de falar de sexo e nudez, as visões são interessantes, e elas já dão um contexto bom para entendermos o quão difícil é generalizar a ideia de sexo e erotismo em uma obra.

Vamos de trás para frente: sexo explícito e situações sexuais “complexas/de alto impacto” são, claro, não recomendados para maiores de 18 anos. Esse tanto é esperado, certo? Para maiores de 16, “relação sexual intensa”, ou seja, uma “cena superestimada e/ou de longa duração, em que é apresentada qualquer modalidade de sexo (…) não explícito. Nesta modalidade, o ato sexual é mostrado de forma verossímil, extensa ou contundente.” Continua parecendo adequado para a idade, não?

Agora, qual a idade mínima para uma cena que tenha sexo que não seja “intenso”? Claro, pela sequência, talvez você já adivinhe que é para maiores de 14 anos. E é isso mesmo. Mas há um outro ponto a ser considerado: simulação de sexo, nudez velada, masturbação, insinuação, carícia sexual e apelo sexual são todos itens que estão na categoria 12 anos, tudo dado certos cuidados de não serem explícitos, mas ainda assim.

Obviamente estou usando visões gerais, aqui, e há toda uma situação sobre atenuantes e agravantes que são considerados nas classificações, mas o ponto em que quero chegar é outro: mantendo isso em mente, pense novamente no “é desnecessário”. Pense no que as pessoas querem dizer com “sexo”, em toda a variedade.

Esse é o ponto em que talvez algumas daquelas pessoas que generalizaram se corrigissem e falassem que se referiam aos estilos de cenas classificadas acima de 18 ou de 16 anos, mas isso ainda me é estranho, do mesmo jeito que me é estranho o jeito como se sentiram confortáveis em generalizar tudo que está abaixo desses como uma visão difusa e proibida de sexo.

Nós falamos de sexo em nossas vidas, então ignorar tudo que se refere a sexo me sugere uma busca por uma artificialidade da existência, um tipo bizarro de filtro da realidade. Sem falar que isso também sugere uma mensagem, que já vi até por vezes ser expressada com palavras próximas disso: “sexo em uma produção de entretenimento só pode ser entendido como pornografia.”

Conseguem ver o quão estranho é isso? Uma história para adultos pode ter cenas significativas de “relações sexuais intensas” e — por que não? — de sexo explícito, porque essas coisas acontecem na vida real e, mesmo que não ocorressem, é do campo da ficção subverter o que existe na realidade.

Pensar que o entretenimento não pode demonstrar essas coisas aponta uma limitação não no formato, mas na expectativa das pessoas. Me parece um reflexo se não de consumo, de rejeição a esse reflexo de consumo. Me parece que as pessoas não querem arriscar se sentirem estimuladas, se enojando com a possibilidade e exacerbando suas reações. Também há a possibilidade mais simples, mas que não exclui nada do que já foi dito, que é velho e simples moralismo, de fundos diversos.

Para algumas pessoas, sexo é necessariamente entendido como algo sujo, ruim e proibido. É capaz que por vezes sequer percebam que suas explicações são apenas racionalizações de um problema muito mais básico relacionado a culpa, vergonha ou coisa parecida. E, de novo, preciso apontar o óbvio: tentar generalizar a partir disso é mais uma vez uma questão individual sendo tratada como uma verdade universal. É um estilo/preferência de consumo que tenta, através de uma exploração lógica, se expandir como algo auto-evidente.

Até certo ponto eu estou especulando, claro, mas não deixa de ser estranho o modo como tantos de nós não têm tantos problemas com assassinatos e cenas grotescas em produções, com os mesmos pudores que temos com sexo, e até com opiniões mais brandas sobre as classificações indicativas.

Já vi histórias com pessoas comendo, com pessoas defecando, com pessoas se drogando, praticando esportes, fazendo compras, caindo na depressão, sofrendo com doenças, vivendo tragédias e nunca vi ninguém falar que essas coisas são “desnecessárias” para as histórias contadas. Ou não com a mesma frequência.

Como escritor, juro que entendo quando uma cena está sobrando em uma obra. Acontece muito. E sem dúvida pode acontecer com cenas de sexo, mas eu jamais diria isso de todas. Essa generalização é, sinceramente, babaca e ignorante, para não dizer outras coisas. E, como já deixei bem claro, suspeita.

Se nós conseguimos contar qualquer tipo de história, sobre todos os aspectos da vida, mas um aspecto específico leva toda a má fama, não consigo deixar de pensar que o problema não é desse aspecto, nem das histórias que o incluem.

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Rodrigo Ortiz Vinholo
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Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

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