Cada história é um filtro
Quanto mais histórias conhecemos, maior é o filtro do que é possível na nossa realidade. E quanto mais repetimos as mesmas histórias, mais cerceamos nossas possibilidades.
Nós somos personagens de uma história que estamos constantemente contando para nós mesmos, e participamos das histórias dos outros. Do nosso ponto de vista, somos sempre protagonistas, e é impossível deixarmos de ser, por menos que às vezes possamos não gostar da responsabilidade.
Conforme vivemos, tudo que acontece está dentro de um enredo que percebemos enquanto acontece, e isso existe dentro de certa coerência narrativa. Tudo tem um estilo narrativo próprio, lições próprias, gêneros, clichês, e se parecer que eu estou sendo metafórico demais, devo dizer que não é tanto o caso.
Pense assim: nós temos expectativas para nossas vidas. Nós olhamos ao nosso redor, e esperamos que nossa vida se pareça com os exemplos que nós temos do que entendemos como realidade. Ninguém existe sem expectativas e referências e, assim, nós filtramos o mundo através dos nossos sentidos.
É impossível que certa manhã um cristão, sem qualquer conhecimento prévio, acorde xintoísta. É impossível que uma pessoa seja espontaneamente transportada para o centro da Terra. É impossível, ainda, que você se transforme em uma capivara. Essas mudanças são coisas que nós entendemos como impossíveis, dentro de nossas histórias, porque entendemos que a realidade não permite tais alterações.
Nossas surpresas são, geralmente, previsíveis dentro de nossos estilos de vida e realidade em geral. Claro que um acidente nos pega desprevenidos e a morte nos assusta, mas sabemos que tanto acidentes quanto a morte são possíveis. No segundo caso, de fato, é uma certeza.
Mesmo surpresas positivas são previsíveis. Ninguém espera encontrar um tesouro perdido, ou ganhar superpoderes, ainda que reconheçamos que seria ótimo. Mesmo a ideia de ganhar na loteria, por mais que possamos apostar, é algo distante e improvável, nas nossas circunstâncias diárias.
Com isso, nós alinhamos nossas expectativas positivas e negativas para concordarem com a história que vivemos.
Sim, é perfeitamente possível mudarmos muita coisa. Não faltam exemplos desse tipo de coisa. Só que é sempre a partir do filtro que criamos sobre com o mundo funciona. Para algo mudar, você precisa de um ponto de partida definido.
E aqui, nesse papo de mudança, entra, claro, o modo como nós interagimos com histórias dos outros e com a ficção.
A história de nenhum ser humano é isenta de outras. Nós somos determinados pelas nossas famílias, genéticas, culturas, nacionalidades, classes sociais, épocas, criações e incontáveis outros fatores. Do mesmo modo, aqueles com quem convivemos nos apresentam outras histórias.
É comum que exista certa homogeneidade nas histórias que vivemos, porque é mais comum que os seres humanos tendam a se organizar em grupos similares. Lógico que o quão uniformes esses grupos são vai variar consideravelmente, mas sempre existem alguns elementos fundamentais que acabam nos unindo. Em um exemplo simples, é bem improvável que, morando no Brasil, você não viva com brasileiros, ou uma maioria que fala português do Brasil. Mas isso se aplica para todos outros aspectos.
Sei que estou sendo óbvio, mas preciso dizer: é por isso que nós identificamos o que é diferente. Porque o “diferente” é o que não tem lugar no nosso filtro. Ou não tinha até o momento de identificarmos. Se, a partir do encontro de um elemento diferente, nós observamos outros e entendemos e aceitamos esse padrão, é capaz que eles entrem em nosso filtro. Mas se não há interesse, ou aceitação, ou mesmo continuidade, isso não ocorre.
Ou seja, com risco de ser repetitivo, nós filtramos o mundo pelas expectativas que criamos da realidade, e essas também são influenciadas pelas histórias dos que convivem conosco que, no fim das contas, são partes amplas da nossa história.
E aí que entra uma questão engraçada: as histórias dos outros que nós vemos são sempre julgadas a partir de nossos próprios filtros. Não tem nada de errado nisso, propriamente, é algo que é inescapável, até certo ponto. Só que, exatamente por isso, nós temos que entender até onde nossos filtros estão agindo.
Vamos para exemplos extremos para facilitar a conversa: vamos falar de homofobia, racismo e misoginia.
No tempo que eu passo denunciando perfis e discursos de ódio na internet, eu frequentemente me deparo com perfis que seguem padrões muito específicos de comportamento: eles se dedicam única a exclusivamente a expor vídeos e imagens “demonstrando” como o grupo que eles odeiam é deplorável. Posts e mais posts, dia após dia, mostrando conteúdo que justifica os sentimentos que eles têm contra certos tipos de pessoa.
Cada um desses perfis parte de uma ou mais premissas, e eles se dedicam a confirmá-las em tudo que compartilham. Há alguns que se dedicam, por exemplo, a tentativas de expor mulheres como fúteis, aproveitadoras, ignorantes e destrutivas. Outros escolhem alguma etnia — geralmente negros, mas não exclusivamente — e tentam colocá-los como violentos. Alguns, ainda, querem colocar gays e pessoas transgênero como a escória da sociedade, chegando até a perseguições diretas de usuários.
Às vezes, os discursos vão se complexificando, mas a conversa básica é sempre a mesma do que aquele que só joga o ódio descaradamente. Um usuário, por exemplo, pode reproduzir uma teoria conspiratória inventando que judeus querem destruir o mundo através de filmes da Disney com pessoas negras e homossexuais, inserindo mil justificativas complexas, mas a base dessa pessoa é a mesma: ela não gosta de judeus, negros ou homossexuais, e todo o resto do que ela fala é um jeito de reforçar essa ideia básica. Ela não é diferente do ódio simples e direto.
Se não ficou óbvio por que estou falando desses pontos desagradáveis, explico: o filtro de realidade dessas pessoas é um em que é normal e esperado que esse ódio exista. Eles tem sentimentos claros, e conseguem racionalizar suas visões sem muito problema. Pouco importa a eles que vivam em um mundo que amplamente reconhece que tais visões são criminosas e execráveis: se o filtro de realidade deles diz que estão certos, eles tomarão como um elogio serem chamados de “racistas”, “homofóbicos”, “misóginos” ou qualquer outro identificador.
O reacionarismo, o ódio, o preconceito, se utilizam de um exemplo qualquer para expandir e provar uma tese. Se algum racista crê, por exemplo, que todo negro é um criminoso, qualquer exemplo se torna prova contundente, e qualquer explicação contrária se torna desculpa.
O mais provável é que os leitores que estejam aqui não sejam pessoas terríveis como essas dos exemplos que estou usando, mas existe algo que todos nós temos em comum com elas: nós somos pessoas. E, sendo pessoas, nós também temos filtros de realidade muito específicos. Nós podemos não ter visões extremistas e persecutórias, mas sem dúvida em algum ponto lemos o mundo de modos particulares, e procuramos maneiras de continuar reforçando isso, até ao ponto de “profetizar” futuros que concordem o que achamos que é verdadeiro e possível.
Um transfóbico que acredita que pessoas trans querem doutrinar crianças será incapaz de ver pessoas trans de modo inocente. Não importa a história, não importam os exemplos contrários, não importa a lógica que surgir provando o erro de sua visão. Ou, na prática, será muito difícil que ela veja a realidade, porque as histórias que combinam com seu filtro são as que confirmam essa informação, e ela sempre irá ler as histórias que não confirmam com um viés específico. Ou não as verá, simplesmente.
É aqui que eu repito o que eu disse no primeiro parágrafo: quanto mais histórias conhecemos, maior é o filtro do que é possível na nossa realidade. E quanto mais repetimos as mesmas, mais cerceamos nossas possibilidades.
Sabe por que existe aquele clichê de que viajar abre nossas mentes? Porque, de fato, se você está aberto para ver o que há diferente no mundo, essa se torna uma oportunidade única de ver como a realidade pode ser outra.
Veja, eu sei que isso soa óbvio. Eu sei que eu falo muita coisa óbvia quando eu escrevo… mas aí que está: a gente convive dia após dia com gente que fica vendo a mesma coisa, e a gente fica vendo a mesma coisa. Nós somos maquininhas de procurar confirmação para todos os nossos vieses.
E aí, o que sobra aqui? Eu não vou dizer “consuma todo tipo de conteúdo, incluindo o que discorda de você” ou “ande com pessoas horríveis”, porque esses seriam conselhos ruins. Claro, é bom entendermos o que fazem e falam pessoas de quem discordamos, mas especialmente se estamos falando de conteúdo de ódio, ele é feito para fecharmos nossas cabeças.
O apelo que eu faço aqui, que creio que cabe sempre, é que lembremos que nós vivemos em nossas bolhas, em nossos filtros e que temos que estar prontos para ver o que existe de diferente no mundo. A melhor maneira de alargar nosso filtro de realidade, na minha experiência, é buscar descobrir mais sobre as experiências dos outros. Livros, filmes, viagens, tudo ajuda.
E aí, com isso, nós entendemos um pouco mais sobre o mundo e, através disso, sobre nós mesmos. Se nós não sabemos o que é possível ser, jamais saberemos o que somos ou não. Em muitos casos, aliás, descobrir o que não somos é algo que nos faz crescer até mais do que descobrir o que somos. E os enganos e encontros que podem ocorrer nesse processo são vitais para continuarmos evoluindo individualmente e enquanto sociedade.
Ao mesmo tempo, lembre-se também que mesmo os livros, filmes e viagens que estão disponíveis para você estão filtrados por barreiras de mercado, cultura e língua, então é muito difícil escapar dos filtros que determinam quem você é, e como você está. O Brasil é um país culturalmente colonizado de maneiras muito específicas, do mesmo jeito que outros são. Do mesmo modo, temos nossos próprios filtros implícitos, nossas próprias misturas.
Então a questão é um pouco peculiar, mesmo, e não há uma resposta definitiva. Uma coisa é fato: mesmo dentro de nosso filtro social amplo, ainda há muito espaço para alargarmos os nossos individuais. Então não é porque há forças maiores que te limitam que você deve desistir, ou sequer fazer o mínimo esforço.
Boa sorte para nós. Que encontremos muitas histórias que nos ensinem sobre muita coisa.