Bolhas e conexões
Existem bolhas — ou seja, comunidades fechadas — na internet. Existem grupos isolados. Existem câmaras de eco. Existe miopia e distorção. Mas a alternativa não é tão viável ou saudável quanto querem vender por aí.
A Internet é uma área propícia para discussões recorrentes. Fala-se de alguma proposta, levanta-se alguma polêmica, discute-se à exaustão e, havendo ou não conclusões, o assunto morre e tempos depois volta a ser revivido na próxima oportunidade.
Nesse cenário, com discussões mais ou menos embasadas, não faltam falas sobre a própria Internet, sobre o que é definido ou não por ela, sobre como ela funciona ou deveria funcionar, e sobre como ela influencia ou não as pessoas. E no meio disso, como em qualquer outra plataforma on-line ou off-line, há muita bobagem, incluindo não só nas respostas geradas, mas nas próprias premissas iniciais.
Recentemente, nesse segundo semestre de 2024, com a transição de público do Twitter (ou X) para o Bluesky (e uma parte para o Threads), muito se discutiu sobre a natureza das redes, e o papo de bolhas voltou à tona. Enquanto alguns se adaptavam e outros resistiam, surgiam pitacos de pessoas supostamente preocupadas com o efeito de bolhas na internet.
Se você ler esse texto em algum momento mais distante do futuro, pode ser que a conversa de bolhas volte a surgir, e esse texto permaneça atual acidentalmente. É um risco que estou disposto a correr, porque eu irei declarar aqui algo que, no meu conhecimento histórico, não mudou até agora: esse papinho de redes sociais formarem bolhas é um daqueles pontos nulos de discussão.
Note, não estou falando que o efeito inexiste, mas que a discussão é completamente inútil. É uma babaquice inflamatória, e podem me citar e sublinhar onde eu disse “babaquice”.
O caso, aqui, é que o assunto surgiu frente a um movimento de foco maior em moderação, dentro do Bluesky. Em oposição ao caos do Twitter/X, a nova rede oferece a chance de cortar discussões inúteis e isolar intromissões indesejadas de um jeito que outras plataformas não fizeram até hoje. E aí levantou-se a preocupação sobre o mal que isso pode causar, pela suposta formação de bolhas.
E então eu repito: isso é uma discussão nula.
São dois os motivos para que eu diga isso. O primeiro é que já existem bolhas. Mesmo redes mais abertas como o Twitter/X geram bolhas, e achar que ninguém deveria existir assim (querendo ou não) é irreal. Existem bolhas no Facebook, no Instagram, no TikTok, no LinkedIn e, sem dúvida alguma, nos grupos de WhatsApp. Céus, até o YouTube tem bolhas! Fóruns e chans são bolhas, também. O fenômeno é antigo na internet, existindo desde seus primórdios salas de chat, IRC, MSN, Orkut, ICQ e BBSs. Hoje, o Telegram é rei de comunidades fechadas, para fins legais e ilegais, e até figuras esquisitas e duvidosas como Donald Trump criam suas próprias redes que, convenhamos, são bolhas de seus adoradores.
Temer a formação de bolhas em uma rede social é como temer que o céu seja azul, e acreditar que o Twitter é uma praça pública totalmente aberta é de uma ingenuidade imensa, para não falar “ignorância” ou mesmo “estupidez”.
Quando alguém se preocupa com bolhas nesse sentido, eu fico com a pulga atrás da orelha, porque a pessoa me parece estar mais preocupada com o público e a substância da bolha do que propriamente da existência, porque se ela não está questionando todas essas outras bolhas por vezes bem mais restritas.
E convenhamos: é lógico que bolhas podem ser preocupantes, se há material ilegal, agressivo e tal, mas o que estamos falando aqui é de cenários de pessoas que estão querendo evitar intromissões indesejadas, que incluem justamente esses comportamentos nocivos.
O que nos leva ao segundo motivo para minha descrença nessa discussão: a alternativa dada às bolhas não faz o menor sentido.
Diz-se que a formação de uma bolha, de uma “câmara de eco” seria nociva… mas os argumentos contra isso tratam toda a interação online como um tipo de obrigatoriedade de convivência, como se o conteúdo e presença das pessoas tivesse que estar à disposição de outras. E mais: além desse tipo de obrigatoriedade social, afirma-se um nível moral e intelectual para isso, como se as discussões, em nome do debate, elevariam a sociedade de alguma forma. Isso não é o caso, e boa parte da insanidade do Twitter morava justamente nesse ponto.
Achar que um cenário de livre agressão é um cenário de livre troca de ideias é falhar no entendimento básico de qualquer interação social. E preciso dizer mais, dando uma carteirada de quem já escreveu dois livros a respeito*: ninguém é obrigado a conviver com os outros na internet, ainda que tenha o dever (por etiqueta, moral ou leis) de conviver bem, quando existir essa necessidade por um ou outro motivo.
Quem acha que a inexistência de bolhas fortalece o debate não entendeu o fundamental sobre como funcionam debates, especialmente na internet de hoje. Debates são comuns dentro de bolhas, e há espaço para divergência dentre de um grupo de semelhantes. Acreditar que isso não ocorre evidencia tanto uma percepção estranha do que significa a adesão das pessoas a ideias, como indica que o próprio grupo do acusador é uma das tais “câmaras de eco”.
Soma-se a isso a ideia ingênua (ou até desonesta) que supõe que alguém não vá querer debater em momentos relevantes porque está em um grupo fechado nesse tempo. Isso leva a um reflexo paternalista que parece sugerir que essa interação em redes sociais é a única oportunidade que o indivíduo terá a oposição e, mais ainda, sugere que essa é a função da rede e, mais, que é esperado do indivíduo o engajamento com essa situação, mesmo que contra a sua vontade.
Somando-se a tudo isso há a afirmação, novamente ingênua, ignorante ou desonesta, que acha que o debate em redes sociais vai ser saudável ou proveitoso. É amplamente conhecido e documentado que redes sociais, ainda mais espaços como o Twitter/X, oferecem pouco ou nada no sentido de aproveitamento de debates. Se há a preocupação com “câmaras de eco”, elas deveriam girar na proposta do que é chamado de debate, que é a xingação e perturbação de estranhos para reforço das próprias crenças e para agitação de uma base através de exposição. Em outras palavras: desocupados tentam forçar debates com pessoas que odeiam para incomodar os outros e tentarem levar vantagem em cima disso.
Alguém gritando em um reply que você deveria ir para o inferno (para ser educado) não é debate, e não adiciona nada. Pelo contrário, o saldo é sempre negativo.
Choramingar porque as pessoas não estão no seu playground porque não querem conviver com o grupinho que está atirando merda em todo mundo não é um problema de quem não quer conviver, mas sim do grupinho que está atirando merda. E de quem está achando que os outros devem ser alvo.
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Aliás, me sigam lá no Bluesky.
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