Binarismos sem contexto
Me lembro de uma vez ter conhecido uma pessoa que afirmava que tudo que existe é binário. Não que “tudo pode ser interpretado de jeito binário”, mas sim “tudo é binário.”
Na época discordei, e hoje continuo discordando, mas esse pensamento de vez em quando surge em minha mente, como uma lição sobre como enxergamos o mundo.
É fato que, dependendo de como olharmos o mundo, é possível assumir tal filosofia, e frequentemente a adotamos onde menos esperamos. Só que conforme fui analisando todas essas situações, eu me dei conta de uma coisa: majoritariamente, ou talvez em toda a existência, só se é possível ser binário se estamos em um contexto que permite binarismo.
Pareceu óbvio? Mas note o detalhe nisso: os únicos contextos que permitem binarismo foram criados para permitir binarismo. Fez sentido? Vamos conversar.
Parece óbvio falar que não há binarismo se pensamos que existe o cinza entre o branco e o preto, mais todas as cores visíveis e invisíveis. Parece óbvio se pensarmos na variedade de sensações e sentimentos que temos. Mas para esquecer isso é muito fácil, especialmente se entrarmos em assuntos mais subjetivos, como qualquer um correlato a política e sociedade.
Você, que lê este texto, está vivo(a). A alternativa a isso é que esteja morto(a). Tudo bem até aí, certo? Só existem essas duas opções, certo? Mas… o que define sua vida? É sua consciência? É o funcionamento de seu sistema circulatório? As batidas do seu coração? A atividade do seu sistema nervoso? Diferentes respostas a essas perguntas trazem a diferentes concepções de vida e, dependendo do caso, criam meios-termos.
Já que estamos falando em vida e morte, vamos para outro exemplo: você é a favor que humanos matem humanos? Responda sem contexto algum, “sim” ou “não.”
Repito: não há qualquer contexto aqui, nenhuma condicional. Estamos discutindo a pura ideia de humanos matarem humanos. Sim, ou não?
Difícil, né?
Se disser que “não”, você teria que se opor até mesmo à morte causada por legítima defesa, já que, sem contexto, todas são viáveis. Isso cria um problema filosófico bem específico, em que, se a única solução para evitar uma morte é matar, não há maneira de se safar sem violar sua moralidade, ao menos não enquanto não se recontextualizar.
Se disser que “sim”, simplesmente, você viabiliza e apoia qualquer tipo de assassinato, inclusive vários com que jamais concordaria, dada uma contextualização que você inevitavelmente tem.
Se olharmos o problema como máquinas, é curto-circuito na certa. Podemos até pensar que para uma máquina é fácil escolher um dos lados, mas mesmo elas necessitam de uma programação que defina critérios condicionais e uma ordem de priorização. Não é errado alguém dizer “sim” ou “não”, mas essa decisão, na prática, nunca existirá neste ambiente neutro proposto no exemplo.
Se as respostas são “sim” ou “não”, é praticamente impossível, em nossa configuração de mundo, que se escolha “não” sem qualquer noção estranha de auto-sacrifício, e que se escolha “sim” sem qualquer ressalva.
Eu diria que a resposta média para esta pergunta deve ser “depende”.
Muitas pessoas podem entender essa pergunta como uma discussão de pena de morte.
Outras, sobre a viabilidade de comemoração ou tristeza de uma morte, em alguma circunstância.
Outros podem entender a pergunta como uma discussão sobre religião.
Outros, ainda, sobre eutanásia.
Outras, sobre leis e regras de convivência.
Outras, sobre como uma sociedade deve se organizar ao redor de saúde, bem-estar social e renda.
Outros, sobre como uma sociedade deve tratar a contextualização social da ideia de morte.
E valem outros tantos contextos, que tornam impossível tornar essa pergunta binária sem que algo se perca.
Eu, por exemplo, tenderia a dizer um “não” que invariavelmente viraria “talvez,” por conta do meu pacifismo. Sou contra a pena de morte, contra uso de força excessiva, e entendo que toda a sociedade deve se organizar de modo a maximizar a qualidade de vida de todos seus membros. Mas, dada uma situação como a citada acima, em que uma morte ocorre em uma situação de defesa, não me oporia a isso. Só que entenderia que esse é um ato por natureza vil, que não deveria ser comemorado de modo algum.
Ou seja, dependendo de como você ler minha resposta, vai achar “não” em um momento e “sim” no outro. Um “talvez” ou “depende” é a única resposta que responderia justamente isso.
Então já entendemos que binarismo é ruim porque ele torna simples o que não é nunca simples para o nosso raciocínio e o dos outros, mas o buraco, como em tudo na vida, é sempre mais embaixo. A partir do momento em que entendemos que o que o binarismo apresenta é sujeito a interpretação, as coisas se complicam.
Uma pessoa pode querer dizer o oposto de outra e ambas quererem dizer a mesma coisa.
Entendeu?
Vamos lá, em outras palavras: o que é o meu “sim” pode ser igualzinho ao seu “não”. E um não necessariamente vai saber o que o outro quer dizer com isso.
Vamos voltar ao nosso exemplo, que ainda que simples e extremo, é fácil de entender:
“Você é a favor que humanos matem humanos?”
Pode ser que alguém responda “sim”, pois acredita que todos que matam devem morrer, então acredita que deveriam matar todos os assassinos.
Pode ser que alguém responda “não”, pois acredita que todos que matam não devem ser considerados humanos, e devem ser mortos.
O resultado é o mesmo, com respostas opostas à mesma pergunta.
Por isso que contexto é tudo, e qualquer decisão existe dentro de um contexto, mesmo que ele não seja declarado. Tudo que é decidido é decidido por algum motivo, atendendo a alguma agenda, a alguma ideologia ou noção prévia sobre o que é apresentado.
Quer algo para te deixar sem sono no meio da noite? Nós nunca vamos saber qual a ideologia exata, os motivos exatos das outras pessoas, quando elas tomam qualquer decisão. Mesmo que elas digam.
E aqui moram dois pulos do gato muito importantes de se entender para o convívio social e para comunicação:
1- Quando um binarismo é apresentado, ele sempre pressupõe algum contexto, que pode ser reforçado em detrimento de outros através da apresentação das opções. Ou seja, é fácil que alguém use um binarismo para te distrair e para manipular sua decisão.
Ex.: “Você é a favor ou contra o país?!”
2- Quando um binarismo é usado para contextualizar as escolhas de outrem, ele pode ser pautado pelo contexto do observador, e não de quem toma a decisão. Ou seja, é fácil que alguém use um binarismo para justificar as escolhas dos outros dentro de um espaço de decisão que não é real.
Ex.: “Eles podiam ter sido a favor do país, mas decidiram ser contra!”
Binarismos sempre surgem, e são facilmente fabricáveis para que você tome decisões simples, com pouco raciocínio. Basta contextualizar o oposto de modo que não exista meio-termo, e você está feito!
Há uma frase que ronda o imaginário de publicidade é marketing, de um vendedor de sorvetes que oferecia a seus clientes uma escolha, conforme a compra se aproximava do fim:
“Quantas cerejas você quer no seu sorvete, uma ou duas?”
Note que não é "você quer uma cereja?" A cereja no sorvete é um pressuposto. É uma decisão que já foi feita por aquele que apresenta para aquele que escolhe. Não sou de apostar, mas conseguiria dizer que o número de compradores que colocariam cerejas subiu consideravelmente quando a única opção apresentada envolvia colocá-las.
As pessoas não gostam de pensar. Soa horrível falando assim, mas não é uma crítica. Nossas cabeças gostam do que é familiar e do que é fácil, então entender algo diferente requer esforço.
Por isso, vai soar estranho quando eu lhes disser, neste fim de texto, para que pensem. Pensem no que é diferente, e tenham como hábito não aceitar qualquer binarismo.
É claro que decisões entre duas opções, opostas ou não, sempre surgem na vida. Mas entenda que decisões simples são exceções, não regras. E que, a partir do momento em que você entende que é fácil cair em binarismos e que eles são dependentes de contexto, é muito fácil você se tornar hipócrita.
Um último pensamento: o mais recente filme da série Vingadores, "Guerra Infinita" (2018) apresentou um vilão, Thanos, cujo plano era acabar com metade da vida no universo, como meio de balancear o consumo universal de recursos.
Ele justifica sua decisão com o exemplo de guerras, fome, desigualdade social, e uma série de outros problemas que seriam causadas por essa superpopulação e os conflitos derivados dela. Sua lógica — e existem modelos analíticos que a apoiam — é que, quando metade de uma população é eliminada, em um ambiente, balanceiam-se os recursos e, com isso, a vida de quem sobrevive é mais próspera.
Muitas pessoas questionaram essa decisão, e muitas outras concordaram. “Thanos estava certo” foi uma frase que muito se repetiu. E o motivo para isso era simples: a problemática do vilão existe dentro de um universo binário. Ele apresenta duas escolhas: ruína certa se nada for feito, ou prosperidade para todos às custas de muitas vidas?
Esse é um dos casos em que nós nos sentimos adultos e responsáveis porque fazemos uma escolha difícil por um bem maior. Quem opta pela vida de todos com a possibilidade de ruína pode ser visto como infantil, como sonhador, por quem acha que Thanos está certo.
Só que a problemática geralmente ignora outros cursos de ação que poderiam usar todo o poder que está à disposição dele. E, acima de tudo, a maioria das pessoas que está a favor ignora completamente a possibilidade de que poderiam deixar de existir nesse genocídio universal.
Fica a lição: concordar com o Thanos é fácil, difícil é querer virar pó.
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Por fim, como lição de casa, especialmente no momento político em que estamos, algumas perguntas como exercício para pensar em binarismos:
Quem é a favor de um político é contra os outros?
Quem é contra um político é a favor dos outros?
Quem é a favor do inimigo de um político é contra ele?
Quem é a favor de uma política que você acha ruim é mau?
Quem é a favor de uma política que você acha boa é bom?
Quer ler mais a respeito desse tópico e de assuntos correlatos? Eu falei a respeito de coisas parecidas no meu texto sobre “extremismo.”