Apontar hipocrisia não te livra de ser hipócrita

Rodrigo Ortiz Vinholo
9 min readJun 11, 2021
Jean-Léon Gérôme, “Mendacibus et histrionibus occisa in puteo jacet alma Veritas” (“The nurturer Truth lies in a well, having been killed by liars and actors”) , 1895.

As pessoas gostam de discutir. Se tem uma coisa que seres humanos fazem bem, é isso. Nós pegamos ideias, reviramos, apresentamos pontos, contrapontos, concordamos, discordamos… Bem, no geral nós mais discordamos do que qualquer coisa, mas isso, dependendo da situação, não é propriamente um problema.

Nós queremos vencer as discussões em que entramos, seja porque isso significa que as coisas vão acontecer do nosso jeito ou simplesmente para sentirmos que temos razão. Só que aqui mora um problema: vencer por vencer, a qualquer custo, como um objetivo à parte do que é realmente discutido.

Se você passa tanto tempo quanto eu na internet, já deve ter visto esse tipo de coisa, e talvez já tenha tanta preguiça quanto eu das palavras “debate” e “refutar”, simplesmente porque as duas frequentemente são expandidas (ou reduzidas) até significarem coisas completamente distintas do que realmente eram para ser. Para algo que nós fazemos tanto, somos geralmente muito ruins nisso.

Discutir é uma arte. É algo que incontáveis pessoas há milhares de anos fazem, e também discutem. Dissertar e discutir sobre discussões, como neste exemplo que você lê agora, já rendeu muitas obras. Existem formatos, meios, argumentos, modelos que podiam ser abordados na Grécia antiga e ainda hoje são usados, para bem ou mal. Existem clubes de debate mundo afora. Nós somos apaixonados pelo formato, seja na política, na vida comum, ou em qualquer área de especialidade que nos apeteça.

Mas a questão é: como nós somos tão ruins, em média, se gostamos tanto disso e se temos tanta tradição? E eu respondo: o problema é que, muitas vezes, somos propositalmente ruins, porque como queremos vencer a qualquer custo, não interessa fazer sentido, interessa vencer o outro. E porque nós fazemos muito disso pelo espetáculo: “estar certo” é o que importa, mas que os fatos façam sentido acaba se tornando o menor ponto. A humilhação pública e completa do adversário em frente ao grupo que te aprova se torna o principal.

Se nossa visão é de simplesmente ganhar, nós muitas vezes fazemos o que for mais conveniente e depois ainda podemos elogiar esse argumento completamente sem sentido como algo valioso. E então nós replicamos isso ao máximo, para tentarmos reproduzir a glória da utilização desse artifício em outros cenários e conseguir novas vitórias.

O que nos leva à ideia de hipocrisia.

Se tem uma coisa que as pessoas adoram, é apontar quando os outros são hipócritas. E não é por menos: é realmente constrangedor para uma pessoa ser pega como hipócrita. Nós entendemos, como sociedade, que mais que um mentiroso ou um desonesto, um hipócrita tem uma falha moral vista por vezes até como maior que esses dois casos exatamente por combiná-los.

Eu poderia argumentar que há mentiras e desonestidades que são muito piores que hipocrisia, mas isso seria outro texto, e realmente não é uma discussão que vale a pena termos agora. O ponto que eu quero chegar é: dificilmente alguém discorda que hipocrisia é ruim. O hipócrita, uma vez identificado, perde toda e qualquer credibilidade, ou a maior parte dela, mesmo que esteja certo no que está afirmando.

E, vale lembrar, se alguém que é reprovável em qualquer sentido apontar algo reprovável ou errado, o que é reprovável ou errado não se torna aprovável ou certo por conta disso. Não é porque alguém é hipócrita que a pessoa está errada. Ela só é, no máximo, desonesta.

Mas vamos falar diretamente do uso de hipocrisia.

Podemos generalizar e apontar que alguém que fala algo errado por ignorância pode aprender e falar algo certo. Alguém que mente não necessariamente mente o tempo todo. Aquele que é imoral pode ser horrível, mas ele não finge que é. Mas o hipócrita é muitas vezes visto como pior exatamente porque é visto como alguém que usa a verdade, a moral e a lógica como armas ou ferramentas para um fim que não a verdade, a moral e a lógica.

Na nossa cultura estranha de debate, então, apontar um hipócrita é um jeito fácil de “vencer” uma discussão. Você automaticamente transforma tudo que a pessoa disser em algo desonesto e, por extensão, tudo que ele acreditar pode ser subentendido como ruim e errado. Ou, ainda, você pode afirmar que ele não acredita no que diz acreditar, o que é pior ainda para a pessoa. E o resultado final é inevitável: você vence por superioridade moral.

Agora você me pergunta: isso faz sentido?

E eu digo: não faz.

Mas as pessoas acreditam que faz, e é esse o ponto de quem adora essa argumentação de hipocrisia. Por que ter argumentos, fatos embasados, fontes confiáveis, se você pode simplesmente apontar que nada do que o seu adversário fala é confiável porque ele aparentemente é hipócrita? Na prática, uma hipocrisia não faz ninguém hipócrita em tudo mais, mas no espetáculo da discussão — ou na hora que você quer acreditar no que achar mais relevante — isso não importa. E você, que apontou a hipocrisia, ainda passa a imagem de credibilidade! Só vantagens!

Só que aí que existe a fragilidade desse argumento que é constantemente ignorada: apontar hipocrisia não te livra de ser hipócrita. É o título deste texto.

Como eu disse antes, nosso nível de discussão é baixo, simplesmente porque nós queremos vencer o tempo todo e a qualquer custo. Estamos em guerras por supremacia em diversos assuntos. É comum, assim, que o jogo se torne simplesmente “coloque o outro como hipócrita antes que ele faça com você”, e aí quanto mais aplauso de um dos lados, maior a chance de um ou outro “ganhar”.

Vamos entender: imagine que você quer falar mal de um político. Essa é uma situação comum a todos nós, não?

Você pode criticar a conduta desse político. Você pode apontar que ele cometeu atos corruptos ou reprováveis. Você pode insultar a inteligência dele. Você pode falar que as ideias dele estão erradas. Você pode falar que as relações dele com outros políticos envolvem fatos escusos. Você pode especular sobre o caráter dele caso ele se envolva com pessoas de baixa reputação. Tudo isso é válido.

Em condições gerais, se discutiria no máximo os méritos das suas afirmações: você está mentindo em algumas delas? Você consegue provar esses pontos, seja a corrupção ou o erro das ideias dele? Há mérito na reprovação das ideias, ou não? Ele realmente se envolve com pessoas reprováveis? Elas são mesmo reprováveis?

Só que aí há uma questão básica por trás de tudo isso: se você apoia um político que tenha qualquer um desses problemas e critica outro político, você se torna imediatamente suspeito, tanto de estar fazendo a crítica por conta de algum favoritismo, quanto por estar criticando algum desses pontos convenientemente. Seus argumentos perdem força. Supõe-se que você está atacando porque conseguiu um meio de atacar, mas não porque você realmente acha que isso é ruim. E é uma suspeita justa.

Mas, para começar, note que isso não te torna errado. O que você acusou não deveria deixar de ser julgado como válido para a discussão em questão.

Mas vamos seguir com a lógica básica: entende-se que, a partir do momento em que você tem uma posição, você deve ser coerente com ela. Se você é contra o machismo, por exemplo, é hipocrisia apoiar um político machista. Se você defende que uma mulher sofreu um ataque machista, o mesmo tipo de ataque com outra mulher, mesmo que você discorde dela, também deverá gerar a mesma reação da sua parte. Justo, não?

E aqui entra o debatedor espertinho, e ele tenta utilizar seu próprio código moral como uma arma contra você. Se você é contra o machismo, você terá que ser todas as vezes. Incluindo as vezes históricas, e até algumas que você sequer conhece. Então ele tentará te desqualificar a cada vez que você não encontrar machismo em uma situação — seja ele definindo pelo critério dele como machismo, ou mesmo sendo de acordo com o seu mas não tendo sua manifestação veemente.

Só que há alguns problemas lógicos nesse tipo de abordagem que são facilmente esquecidos. Primeiro, ele parte da interpretação externa de um código moral — ou seja, o que ele acha que você deveria achar com base na interpretação dele de suas palavras e ações — , e, segundo, ele automaticamente se torna hipócrita exatamente por fazer essa captura de comportamento moral.

O texto ficou confuso? Vamos voltar ao exemplo.

Se eu disser que uma ação é machista e outra pessoa concordar, nós dois dividimos a mesma interpretação. Nesse sentido, se eu agir de modo machista, essa pessoa poderá indicar isso para mim, e ela terá razão. Eu me tornarei hipócrita, por agir contra algo que eu prego, e a outra pessoa, não.

Se uma pessoa concorda comigo sobre machismo e eu faço um ato machista, e ela também faz, ela poderá me acusar de machismo, MESMO tendo feito o mesmo ato. E eu poderei acusá-la, também. Será hipocrisia da parte dela, mas ela não estará errada em me acusar de desvio de conduta. Será hipocrisia de minha parte, mas eu não estarei errado em acusá-la de desvio de conduta.

Agora, se eu disser que uma ação é machista e a outra pessoa discordar, a situação muda de figura. Claro, se eu cometer um erro, ela pode até apontar minha contradição. Supondo que essa pessoa esteja coerente dentro da visão de mundo em que eu atuo, ela não estaria errada em dizer que entrei em contradição e fui hipócrita. Mas a cobrança desse comportamento, em si, é hipócrita e tem pouco valor porque essa pessoa que está cobrando não vê problema nessa ação.

Essa pessoa basicamente está reconhecendo meu código moral — e o poder de cobrança percebido, implícito nele — e tentando tirar essa “arma” das minhas mãos, ou reduzir/invalidar minha possibilidade de ataque. Se a outra pessoa não acha a ação descrita problemática, ela usar a minha régua para afirmar que é problemática, configura hipocrisia com as próprias convicções.

Resumindo: se uma pessoa usa o código moral de outra para acusá-la de hipocrisia, em discordância do próprio código moral, ela também se torna hipócrita.

Eu vejo isso acontecer frequentemente com brigas entre partidários de políticos.

Pessoa 1: Seu político fez tal coisa.
Pessoa 2: E o seu, que fez [coisa equivalente ou vagamente comparável]? Ele você não critica, né? Engraçado, não? Seu hipócrita!

Note que a Pessoa 2 caiu em uma contradição que, no calor da discussão, acaba se perdendo. Se ela enxergar um problema na ação descrita, a comparação com o outro a torna hipócrita, porque não apenas indica que reconhece que o político que ela apoia fez algo problemático, como que ela o apoiou apesar disso. Se ela não enxergar um problema na ação descrita, ela está implicitamente concordando que o político que criticou está certo e, portanto, a cobrança de uma análise moral da outra parte é enfraquecida, o que também configura hipocrisia pelo abandono do próprio código moral.

Se fôssemos todos ser um pouco mais coerentes e lógicos, a Pessoa 2 seria imediatamente a “perdedora” da discussão, se é que tal coisa existe.

Assim, quando surge esse argumento, deve-se questionar: o político da Pessoa 1 está certo, ou o político da Pessoa 2 está errado? Não há outra saída, e a hipocrisia existe em ambos.

Só o fato de eu ter que escrever tanto para explicar esse exemplo já mostra o motivo porque esse tipo de argumento é usado com tanta frequência sem que se notem as contradições. É contraintuitivo, simplesmente porque não estamos acostumados a ficar pensando nisso.

E há a questão temporal sempre implícita, também.

Muitas vezes, alguém é acusado de hipocrisia por falar contra (ou até a favor) de algo sobre o qual antes se calou. Tirando o absurdo que é esperar que as pessoas tenham se expressado historicamente sobre todas as coisas, bem como ignorar que pessoas podem mudar de opinião, essa cobrança também pode tornar um acusador facilmente hipócrita.

Pense assim: se você está reconhecendo em algum nível que há um mérito na reclamação, não reclamar do que acontece no presente porque não houve reclamação do passado é deixar dois erros passarem impunes quando era possível ter ao menos um sendo criticado.

Muitas vezes, quem critica isso não se importa com nenhum dos erros. Geralmente a pessoa só não quer que falem do novo erro, e por isso que usa o argumento de hipocrisia para tirar a força de quem quer “vencer”.

Isso é complicado, e não há muito saída, porque esse nível de discussão já se tornou a regra.

O que nos resta? Entender essas armadilhas e cobrar quando elas forem usadas.

Claro, de novo: hipocrisia não deixa as pessoas erradas. Mas apontar hipocrisia também não deixa as pessoas certas, então temos que parar de achar que isso é a solução para qualquer conversa.

Acima de tudo, se a discussão está baseada em apontar hipocrisias em vez de fatos e argumentos, suspeite que você está lidando com alguém que só quer ganhar a todo custo ou, ao menos, tumultuar para vencer por W/O.

Faça o possível para não ser hipócrita, mas lembre-se que, no campo minado da internet e das discussões contemporâneas, outras pessoas vão se isentar de julgamento tentando fazer com que você que tenha que se provar para que o mérito discutido seja minimizado.

O machista vai tentar te chamar de machista, o homofóbico vai tentar te chamar de homofóbico, o racista vai tentar te chamar de racista, o desonesto vai tentar te chamar de desonesto e, como ele joga por cima um balde de tinta com o rótulo “hipócrita”, ele espera que você se distraia por tempo suficiente para que ele ganhe o argumento e saia isento de punição com seu machismo, homofobia, racismo, desonestidade ou seja lá o que for.

Sem falar da hipocrisia, claro.

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Rodrigo Ortiz Vinholo
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Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

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