A verdade nunca será mais forte que um mentiroso apaixonado
Eu, como uma pessoa que escreve e que trabalha com comunicação em diversas formas, sempre fui muito interessado na ideia da mentira, nas implicações filosóficas, nos motivos por que se mente e, também, no que a define como tal, e no modo como podemos combatê-la.
Permitam-me compartilhar algumas ideias, bem como já anunciar, desde o início, a derrota completa da verdade, especialmente nos tempos que vivemos hoje.
Vou começar com o lado mais filosófico, mas prometo não me alongar muito: a verdade é uma coisa extremamente difícil de se definir. O motivo para isso é porque nós somos criaturas difíceis, com órgãos sensoriais falhos, com raciocínio falho, mentes tendenciosas e tendemos a, por vezes, sentir demais, pensar demais, pensar de menos e simplesmente “pensar errado”.
Nós mentimos o tempo todo. A convivência social nos pede que mintamos, porque é conveniente e permite relações mais harmoniosas. Nós respondemos “tudo bem” quando estamos mal não necessariamente porque queremos esconder nossos sentimentos, mas porque mesmo a pergunta feita pela outra pessoa não era sincera em sua função de querer saber como você está, mas apenas um cumprimento, um reconhecimento de sua presença e existência.
E nós nunca, nunca, vamos entender o mundo de forma pura e simples, porque nossos vieses não permitem, do mesmo modo como nosso corpo não permite. Nós sempre temos que nos contentar com uma parcela. Nem nossos apelos mais esforçados por uma visão objetiva e científica de mundo são o suficiente, porque mesmo eles são tendenciosos em alguma forma. Nós podemos chegar a algumas verdades simples, a alguns fatos indiscutíveis, mas eles são surpreendentemente poucos, na relação que temos com o mundo, porque sempre estamos partindo do ponto de vista de equipamentos biológicos (ou não) que invariavelmente são incapazes de conceber e entender verdades completas.
Você pode discordar de mim, dizer que somos melhores que isso, que um dia podemos alcançar algo maior, mas não é nem esse o ponto que quero chegar. Eu quero apontar que tudo da humanidade até agora existe nessa imperfeição. Se um dia vamos nos livrar disso, o que é algo que eu duvido, é outro ponto. Agora eu quero olhar para a função que a mentira nos serve.
A mentira tem perna curta, mas é muito mais bonita. Nós gostamos de dar significado para o mundo, de explicar tudo ao nosso redor, de entender as outras pessoas. Para isso, criamos explicações sem base alguma na realidade, ou baseadas em percepções que nem sempre são verdadeiras ou sequer funcionam.
Só que aí entra um ponto interessante: uma conclusão errada, seja a partir de imaginação ou de uma observação tendenciosa ou incompleta, pode ser sobrepujada se nós não nos importamos o suficiente com ela ou, caso nos importemos, se a evidência for convincente ou inegável o suficiente. Temos incontáveis casos na história de pessoas que mudaram de ideia. Toda nossa evolução tecnológica e científica parte disso, todas as nossas evoluções pessoais, tudo parte de alterações sobre conclusões. Algo era “verdade” e depois passou a ser “mentira”.
Só que o elemento emocional, se forte o suficiente, é impermeável a qualquer evidência.
E aqui entra um ponto importante: existe a distinção da mentira para a verdade que parte da intenção e da emoção. Esse é o ponto que torna tudo mais difícil, porque além da conveniência e da natureza incerta da realidade para os nossos sentidos, nós temos lidar com o fato de que nós gostamos muito da mentira, e nós muitas vezes precisamos que as pessoas concordem com ela junto com a gente.
Se eu estou fazendo a publicidade de um carro, e eu disser que ele é perfeito para aventureiros, posso justificar isso apontando que ele tem tração nas quatro rodas, espaço de armazenamento, carroceria reforçada ou mil outros detalhes que podem ser objetivamente explicados. Mas note que há uma subjetividade enorme entre eu chamar o carro de “aventureiro” e simplesmente explicar que “ele carrega muitas coisas e anda bem na lama”. Quando eu uso a primeira descrição, eu não estou mentindo para enganar alguém, mas estou apelando ao emocional de quem compraria esse carro porque quer uma vida aventureira, podendo ou não ter realmente um uso desse espaço e características do carro. É até questionável o quanto isso é realmente uma mentira, porque é verdade para alguém.
Se esse carro é amplamente reconhecido como tal, quem comprar pode receber a apreciação do público em relação a ele. A mentira é amplamente reconhecida, aceita e validada, até que se torna um tipo de verdade. Mas ela ainda é só uma interpretação que, em certos pontos de vista, não significa nada.
Uma etiqueta de preço tem o mesmo efeito. O conceito de dinheiro, também. O preço do carro inclui o material, a tecnologia envolvida, a montagem, todos os profissionais envolvidos da concepção até a venda e assistência técnica, e mil outras coisas, mais a margem de lucro. Mas a ideia de lucro é uma abstração filosófica que nós criamos, e o valor do carro, também. É o velho clichê do carro perder valor assim que saiu de uma concessionária: o valor do carro zero quilômetro é uma abstração, uma mentira que nós concordamos.
Questionarmos essa mentira significa questionar muitas outras questões que não são convenientes ou práticas, então nós aceitamos isso em todas as partes. Se quiser elevar a discussão, é só pensar no significado da existência humana: filósofos e religiões se debruçam sobre esse problema há séculos e o máximo que chegamos foram fórmulas discordantes, e nós escolhemos o que é mais conveniente para nós, o que concorda com a cultura que estamos inseridos e com as pessoas que nos cercam.
E aí que está o ponto todo: a partir do momento em que entendemos que não há como escapar de algum tanto de mentira, seja no significado mais abrangente ou específico do termo, nós temos que abraçar esse nosso lado, e entender que combater a mentira e promover a verdade sempre será uma guerra de redução de danos.
Pense em notícias falsas. Por que elas perseveram? Não é porque elas são convincentes, porque muitas vezes são vergonhosamente simplórias e óbvias em sua falsidade, mas sim porque as pessoas querem acreditar nelas.
Viver é lidar com a realidade, e lidar com a realidade é difícil. É por isso que precisamos de algumas mentiras.
Nós nos sentimos sós, então procuramos pessoas que nos acolham.
Nós sofremos, então procuramos alívio para o sofrimento.
Nós nos sentimos perdidos, então procuramos explicações que nos deem um caminho.
Nós queremos vencer, então mudamos o campo de jogo e as regras para que o que façamos signifique uma vitória.
Nós queremos estar certos, então fazemos com que os outros pareçam errados.
Nós não aceitamos nossas falhas, então tentamos fingir que elas não existem, ou são virtudes.
Nós encaramos rejeição, então procuramos aceitação.
Nós sentimos medo, então procuramos reconhecimento desse medo.
Se nós temos pessoas que concordam conosco, estamos felizes. Se encontramos uma explicação para o sofrimento, ou ao menos a validação dele, estamos felizes. Se encontramos explicações, caminhos para a vitória, confirmação de nossos vieses, elogios, aceitação e reconhecimento de nossos medos (e até cura), nós estamos felizes. Nós não nos importamos se a reposta para essas coisas é uma mentira, nem se não pode ser provado. Nós queremos acreditar. Queremos ter fé. Queremos a mentira que for melhor, e será ideal se ela não se parecer com o que as pessoas chamam claramente de mentira.
Leia essas questões e pense na adesão a qualquer teoria de conspiração, a qualquer agrupamento humano, a qualquer religião. Dadas algumas variações de intensidade em um ou outro ponto, o maníaco de conspiração não é tão mais louco que outras pessoas, só mais assustado, ou carente.
A grande questão é que, nessas questões tão humanas, nós não queremos aceitar que as nossas respostas são mentiras, em parte ou totalmente. Nós vamos nos agarrar a pequenas verdades incontestáveis, ou a pontos de intersecção da experiência dos outros, mesmo que discordem de nós, e expandir a partir daí algo que nos explique o mundo.
Nós queremos mentiras para nos apaixonar, para nunca mudarmos de ideia a respeito, e para que cada uma de nossas experiências sirva para validar o que já acreditamos que é real.
Onde isso nos deixa? A minha conclusão, que talvez seja mais uma mentira conveniente entre tantas, é que a intensificação de mentiras e divergências diversas ocorre por questões sociais e psicológicas muito mais básicas do que estamos trabalhando normalmente, quando falamos sobre corrupção, notícias falsas, crimes e mais. E isso é extremamente desconfortável, porque significa que temos que encarar que a punição pura e simples, mesmo que embasada, mesmo que correta em vários casos, sempre existirá em relação a uma incapacidade de conexão.
Claro, existem conspirações e notícias falsas que surgem de caso pensado para arruinar reputações, gerar perseguição e tantas outras coisas. Existem pessoas moralmente corruptas. E, sim, elas se dão bem porque respondem bem a essas demandas que eu enumerei acima. Este texto não tem a intenção de minimizar as mentiras e os mentirosos, nem fingir que não há efeitos deletérios e problemas correlatos. Mas a pessoa que eu chamei de “moralmente corrupta” pode achar totalmente razoável que faça o que faz, porque faz contra algumas pessoas específicas, ou, mesmo reconhecendo que há um problema, entende que esse caminho é aceitável. Por mais que gostemos de maniqueísmo, é fato que os “maus” são sempre os outros, e nunca nós mesmos.
É por isso que não adianta provarmos a verdade inquestionável, demonstrarmos a manipulação, e provarmos que fontes não são confiáveis. Enquanto as pessoas ainda quiserem acreditar no que as atende da melhor forma, elas irão continuar negando a verdade. Nunca foi sobre objetividade, por mais que pensemos que isso é o caso.
Meu ponto é que essas pessoas, seja porque lucram monetariamente com isso ou porque se beneficiam de outras formas, ainda têm sucesso porque existe uma questão muito maior de falta de coesão social. De certo modo, elas existem porque o que fazem funciona, porque essas necessidades humanas estão cada vez menos atendidas.
A internet e a globalização nos ajudam com muito, mas elas também intensificam esse poder. Nós estamos objetivamente mais ansiosos e mais tristes do que fomos no passado por incontáveis motivos. Esse é o cenário perfeito para procurarmos mentiras, e procurarmos grupos que nos validem. E que, a partir disso, tentemos encontrar algum sentido, especialmente porque os formatos e instituições tradicionais já não nos atendem.
Nós nunca vivemos sem mentiras, mas quanto pior for a realidade, mais mentiras nós desejamos. E isso me leva a uma conclusão ainda mais triste: nossas conclusões são eternamente incompatíveis. É possível encontrar alguém que, em tese, terá os mesmos valores morais que você em qualquer conversa lógica, mas essa pessoa ainda assim achará justificável que você morra, porque ela se convenceu que esses mesmos valores morais só podem ser protegidos a partir da destruição do que se entende como ameaça.
Não nos falta moralidade, nem meios para atingir esse e outros ideais. A grande questão é encontrarmos meios de inviabilizar certas ações até um nível tolerável de convivência. Concordância e convencimento são bons, mas o fim da animosidade é um objetivo, na prática, quase tão bom quanto eles. Seria ótimo que todas as pessoas aceitassem umas às outras como são mas, na ausência disso, que uma não ataque a outra já é um bom passo.
A história nos mostra que ideais do nazismo e outros movimentos de miséria moral humana sempre existiram e, mesmo derrotados, voltam a ressurgir. Nós continuaremos combatendo todos e seus discursos, e temos que ter a consciência de que sempre há a chance desses monstros saírem de debaixo das cobertas, mas entendendo que eles só surgem porque há outros problemas que permitem que surjam, e esses problemas devem ser continuamente mitigados.
Desse modo, é mais lucrativo para todos que o nazista tenha medo de se expor, e que qualquer tentativa de organização seja punida. Raramente o nazista vai ser convertido de volta a uma ideia civilizatória minimamente válida, porque as mentiras que essa ideologia descreve validam o que ele precisa. Mas o seu silêncio e inação, coibidos por uma coesão social maior, já são bons o suficientes para todos.
Se não conseguimos acreditar em todas as mentiras que contamos para nós mesmos e que nos dariam alguma coesão, em vez de perdermos tempo tentando fazer a verdade prevalecer, impedir as piores mentiras e criar algumas confortáveis para todos é um caminho muito melhor para nossa bizarra condição humana.