A previsão do tempo de amanhã

Rodrigo Ortiz Vinholo
7 min readAug 31, 2023
Destaque da carta "Ás de ouros" do tarot Rider-Waite. Arte por Pamela Colman Smith.

Nós só assumimos certos riscos, e só tomamos certas atitudes, porque temos . E já aviso que não estou necessariamente falando sobre religião. Só que vale nós pensarmos em nossos diferentes tipos de fé e expectativa para entender justamente onde nós erramos.

Vamos começar pelo simples: todos nós temos uma relação ambígua com a previsão do tempo, especialmente aqueles que moram em locais de clima mais caótico como a cidade de São Paulo.

Se a previsão do tempo fala que vai esquentar, e não esquenta tanto quanto o previsto, nós não a descartamos, tratando-a como inválida. Idem para o frio, idem para a chuva. Se levamos roupas a mais ou a menos, um guarda-chuva a mais ou a menos, podemos ser inconvenienciados e reclamarmos, mas renegar completamente a previsão é algo impensável.

Nós sabemos que há uma chance de erro, que a previsão fala de um espaço grande, que há elementos imprevisíveis e novos. Temos um vago conhecimento de certa terminologia e da lógica por trás, ainda que pouco saibamos explicar a respeito e, vez ou outra, alguns de nós recorram a crendices populares para explicar o clima. No geral, também, entendemos que não importa tanto se ela errar.

Falando em crença, de modo nada neutro, temos as religiões. Seja lá qual for sua religião/divindade de escolha, se você acredita em algo é comum que atribua muito do que acontece (ou deixa de acontecer) à influência de forças acima de nós. Pede-se que intercedam a nosso favor, que nos protejam, e que qualquer coisa que o destino trouxer nos seja positivo ou, ao menos, que o pior seja evitado.

Você já notou como é difícil alguém perder a fé? Claro, existem histórias daqueles que abandonam a religião frente a um evento traumático. Outros mudam de crença ou se tornam menos religiosos (ou mesmo agnósticos/ ateus) frente a diferentes motivações e lógicas, mas são muitos raros aqueles que não o fazem porque algo não foi atendido. Normalmente, é importante demais para as pessoas para largarem isso, porque a própria noção da realidade dessas pessoas depende disso.

Diariamente temos incontáveis orações, rituais, pedidos que não são atendidos. Do mesmo modo, coisas terríveis acontecem com aqueles que estariam sob a proteção de suas divindades. Só que as pessoas continuam acreditando, cultuando, orando, rezando, sacrificando… A ausência também é explicável, pela fé. Nós conseguimos entender que se a divindade fosse atender tudo que pedissem, seria inviável conciliar tudo. Ou dizemos que faltou fé de nossa parte, que o problema somos nós. Ou que não somos merecedores daquela bênção, ou que não precisamos daquilo de verdade. Ou que, entre incontáveis outras explicações, o pedido não fazia parte do plano para nossas vidas e o mundo.

Recapitulando: nós não vamos abandonar a previsão do tempo de amanhã porque ela errou que hoje não ia chover. Isso porque não nos importamos o suficiente para a renegarmos, e porque ela em geral, acerta o suficiente para ter credibilidade. Em comparação a essa ideia, também dificilmente abandonamos a religião porque pedimos à nossa divindade de preferência para que não chovesse e, apesar de tudo, choveu. Isso porque, apesar de incognoscível em muitos aspectos, a religião tende a ser importante para nós e nos garante segurança, conforto, e uma base estrutural considerável.

Está começando a ver um padrão? Em geral, nossa fé nas coisas funciona dentro de proporções de resultado desejado, envolvimento emocional e base lógica clara/mensurável. Se uma dessas é alta o suficiente, não importa o quão baixa sejam as outras, nós conseguimos confiar. A mesma lógica se aplica, claro, para o que decidimos não confiar.

Um exemplo importante desse sentido oposto são as pesquisas e, para o melhor entendimento, recorro às de fundo político. Nos últimos anos, todos constatamos esse efeito: pesquisas de eleições, opinião e mil outras cada vez mais sendo questionadas agressivamente, com canais de mídia, institutos e mesmo indivíduos sendo acusados de manipulação.

A questão é que, ainda que sem dúvida existem erros e ocasionalmente exista manipulação, muitas dessas pesquisas mostraram não apenas consistência histórica em resultados e metodologia — ou seja, estavam sendo feitas do mesmo jeito quando eram questionadas ou não, e os resultados tinham lógica com o que diziam antes de serem o assunto em pauta — como muitas vezes refletiram com sucesso resultados reais, quando eram preditivas. Vários resultados de eleições são resultados claros dessa tendência.

Mas aí é que está: pesquisas eleitorais evidenciam as mesma características levantadas acima. Primeiro, elas servem para expor proporções de resultado desejado pelas pessoas e, havendo divergência do que elas querem (e, na maioria dos casos, esperam), elas geram questionamento. Aí entra o segundo ponto, o envolvimento emocional, ainda mais em tempos de paixões políticas exacerbadas. O terceiro ponto, de base lógica clara/mensurável, então, mesmo que esteja dentro do esperado e do padrão histórico, nunca conseguirá superar as outras duas frentes, ainda mais porque nunca haverá uma transparência alta o suficiente para convencer aqueles que simplesmente não querem acreditar em fatos que não sejam os que esperam.

Nós fazemos tudo isso porque sabemos que há a chance de tudo ser parte de uma manipulação de opinião. Nessas horas, é fácil ver como os erros históricos são usados como justificativa para desacreditar as pesquisas, ou pesquisas com resultados similares ao esperado são favorecidas. O primeiro caso só funcionaria se existisse um padrão de erro, que geralmente não é o caso, e o segundo apenas reforça o desejo de certo resultado, evidenciando os outros dois pontos.

Nós não chamamos a previsão do tempo de enviesada ou manipuladora, nem o fazemos com nossa divindade de escolha (mas podemos fazer com as religiões dos outros, justamente porque não afetam nossa fé). No primeiro caso, não nos importamos o suficiente e não temos nada contra o canal. No segundo, nos importamos muito com o próprio objeto de fé a ponto de nada mais fazer sentido.

E é aí que está: no fim, o crédito que damos às coisas, a fé que colocamos (ou não) nelas depende muito mais do que gostaríamos que fosse verdade do que no que realmente elas fazem. Nossos paradigmas de realidade são difíceis de questionar, por natureza, e o questionamento deles é inaceitável. E não podemos esquecer que nossas expectativas também fazem parte de nossos paradigmas.

O Brasil tem passado por uma febre de sites de apostas. Os chamados “bets” incluem desde apostas esportivas até jogos de azar sem referência externa. Influenciadores fazem vídeos com cupons e guias de como ganhar em um ou outro jogo, anúncios ocupam sites e redes sociais, boatos sobre apostas “garantidas” são repassados como se fossem segredos… E nós somos o país que lidera acesso a esses tipos de sites. (1) (2)

Nós queremos acreditar que há um jogo perfeito que nos enriquecerá. Nós queremos acreditar que a dica aleatória sobre o “jogo do tigre”, ou seja que bobagem for, é o que multiplicará nosso dinheiro facilmente. Nós achamos que vamos encontrar o caminho que ninguém mais fez, a dica que ninguém mais notou, que vamos tomar o risco que ninguém mais tomou e ter o lucro que ninguém mais teve.

De fato, provavelmente não temos fé ou preferência específica pelo canal de apostas em questão. Nós queremos o que nos dê dinheiro, pouco importando se é um ou outro. E nossa fé é tão grande na possibilidade de ganharmos que ignoramos que o próprio modelo envolve muitas pessoas perdendo para que alguma, em tese, possa ganhar. E nem isso é garantido.

Nós vemos os “depoimentos” em redes sociais e queremos ser aquelas pessoas, porque, afinal, não somos tão diferentes delas. Talvez sejamos até melhores. E, se perdermos, não culpamos o canal. Culpamos a falta de sorte, o destino, ou nós mesmos. E aí tentamos de novo. Podemos até trocar de site, mas a possibilidade de ganharmos dinheiro, e o fato de que, em algum lugar, há pessoas ganhando e nós poderíamos ser uma delas, é o que segue sendo atrativo.

Naturalmente, a comparação com o mercado de ações, day trade, investimentos milagrosos, criptomoedas e incontáveis esquemas de pirâmide nos mostram como nossa fé se baseia muito mais no que queremos ver do que na realidade, exatamente porque ela é fé. Nós apostamos conhecendo os riscos, com a fé de que nunca estaremos na porcentagem que não tem retorno sobre o investimento. Os mais religiosos não levem a mal, mas não é tão diferente do que muitas vezes fazemos com divindades, exceto que aqui geralmente se perde mais dinheiro.

Chegando neste ponto, invariavelmente vem a pergunta: “certo, mas e daí”? E daí que, a partir do momento em que entendemos o quão tendenciosos nós somos o tempo todo e com tantas coisas, fica mais fácil domarmos nossos impulsos e alinharmos nossas expectativas. Com a possibilidade de soar um pouco como auto-ajuda, preciso apontar que mesmo a fé que depositamos no que fazemos em muitos casos não se equipara ao nível de desapego que temos com o risco de um site de apostas.

O site de apostas enriquece apenas o dono do site de apostas. O dono do bingo é o grande vencedor. O dono do cassino é o sortudo todos os dias. O investidor que te ensina a investir jamais te ensinaria a lucrar mais do que ele, caso contrário não precisaria estar ensinando. Mesmo quem ganhar na aposta — e esses serão poucos, na proporção geral das coisas, e no modelo de como essas coisas funcionam — não será o principal vencedor.

No fim, se tratássemos sites de apostas com o rigor que temos sobre pesquisas políticas, apostaríamos bem menos. Mas, é claro, é difícil, porque esses apelam a impulsos mais básicos e intensos de nossas personalidades. Não é por nada que existem bets que possibilitam apostas em resultados de eleições.

Se você não puder reverter sua fé para algo que realmente te ajude, ao menos tente mudar o foco dela para outra coisa. O malandro não encanta tanto o trouxa por falta de conhecimento, mas sim por excesso de fé.

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Rodrigo Ortiz Vinholo
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Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

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