A parábola da torradeira (ou “Mas não tem radar”)
Vamos brincar de imaginar: Imagine que você tem uma torradeira. Toda vez que você coloca pão nela, ela o transforma em carvão. Ela faz isso em um instante, mesmo que você esteja cuidando. Essa torradeira estará com problema, certo? O PROPÓSITO dela é torrar pão para consumo.
Ela tem a FUNÇÃO de transformar o pão em carvão, se você quiser. Se você colocar no máximo a regulagem, é uma opção. Mas se ela faz isso em todos os casos, ela tem um problema. Ou seja, você sabe que o PROPÓSITO dela é tostar pão, ainda que ela tenha a função de CARBONIZAR o pão.
Você, nesse caso, tenta consertar. Leva para a assistência técnica. Em último caso, você compra outra torradeira. Porque o PROPÓSITO dela não esta sendo cumprido. Certo?
Agora imagine um funcionário em uma loja. O PROPÓSITO dele é atender clientes. Imaginou?
Imagine que, dentro das FUNÇÕES dele exista a possibilidade de afastar da loja alguém com um comportamento nocivo. Ele pode defender a loja. Mas imagine que ele é rude e agressivo o tempo todo com todos os clientes, afastando-os da loja como se eles fossem ameaças da qual precisasse defender o estabelecimetno. Ele esta cumprindo uma FUNÇÃO dele, mas não seu PROPÓSITO.
O que acontece com esse funcionário? Ele leva uma bronca, ou uma punição, ou essa FUNÇÃO é tirada dele, ou ele é até demitido. Porque é inaceitável que ele não cumpra seu PROPÓSITO. Afinal, ele é pago para isso. Se ele cometer um ato muito grave, pode ser punido pela lei, porque a lei tem um poder que vai além de sua autoridade na hierarquia da loja.
Pensou em tudo isso? Fez tudo sentido? Vamos para outro caso.
O PROPÓSITO de um policial é defender a lei e a ordem, ou matar? Eu entendo que matar é uma de suas FUNÇÕES. E assim, se ele usa essa função de modo questionável, ele não esta cumprindo seu PROPÓSITO. Essa é uma discussão complicada, né? Aqui já entra em muito mais coisa, porque nós estamos diretamente pensando na relação que eles têm com as pessoas que não cumprem seus PROPÓSITOS na sociedade, então é fácil esperarmos que essas pessoas sejam paradas a todo custo.
Mas em vez disso, vamos pensar em qualquer um de nós. Nosso PROPÓSITO na sociedade é colaborar com ela. Isso é feito de vários modos. Discutivelmente, através de nosso trabalho. Mais efetivamente, podemos contar nossa parte no pagamento de tributos. Também na obediência às leis. Se um cidadão não cumprir o que é seu PROPÓSITO, ele é sujeito a punições.
Mas aí começam algumas discussões interessantes. Afinal, nós devemos pensar em nós mesmos como ligados a essa mesma relação de propósito e função enquanto membros de uma sociedade? Mas se nós temos direitos e deveres, é justo dizer que, invariavelmente, esperam que nós cumpramos esses deveres, então mesmo que o termo não seja confortável, não é de todo errado pensarmos assim, mesmo que “cidadão” não seja um trabalho.
Vamos voltar e seguir um pouco mais longe em outra direção. Qual o PROPÓSITO das leis? Essa é uma pergunta importante, que nós não fazemos com frequência o suficiente. Um profissional de direito dirá isso melhor do que eu, mas a lei descreve os acordos sociais de uma sociedade, seus valores, e muito de como se expressa culturalmente. A lei busca garantir justiça, acima de tudo.
As FUNÇÕES da lei são até onde nós permitimos que ela influencie as pessoas. Punir uma pessoa é uma FUNÇÃO. Prender uma pessoa, também. Matar não é algo que tem muito espaço na nossa legislação. Isso até existe, mas geralmente como exceção.
Mas note uma coisa: mesmo se a lei tivesse a FUNÇÃO de matar, esse não é o seu PROPÓSITO. Talvez um conjunto de leis dentro do conjunto que denominamos "a lei" possa ter esse PROPÓSITO, mas esse não é o mesmo que "a lei" tem. Do mesmo jeito que ela não é feita para gerar injustiça em nenhuma forma, porque isso seria o seu oposto.
Lembrando: a torradeira não tem o PROPÓSITO de carbonizar o pão. Uma torradeira também não é feita para molhar o pão.
A torradeira que não torra o pão, não funciona. A torradeira que torra demais o pão, não funciona. A torradeira que molha o pão CERTAMENTE não funciona, e levanta a pergunta: quem foi que colocou uma passagem de água para dentro da torradeira? Porque qualquer coisa que envolva água está totalmente longe do PROPÓSITO e da FUNÇÃO de uma torradeira.
Nós, enquanto pessoas que querem se chamar de membros de uma sociedade, “cidadãos de bem”, precisamos decidir o que nós queremos dizer quando falamos “membros de uma sociedade” e “cidadãos de bem”. O que geralmente é uma definição amplamente aceita é que nós queremos sempre que as leis sejam cumpridas, certo? Ou não?
Se nós não queremos, isso abre algumas questões. Se nós queremos que exista algumas ocasiões em que a lei não se aplique, nós permitimos uma abertura para exceções. E esses pontos trazem algumas discussões bem interessantes.
Pense na sua relação com as leis e nas exceções que você abre ou não abre, e então vamos pensar em alguns pontos.
Defender a lei é defender a lei como um todo. Isso é uma complicação moral para muita gente. Não existe como defender algo que não é previsto pela lei sem que, muitas vezes, isso não seja um crime. Então o seu papel enquanto "pessoa boa" entra em um momento de dúvida: se ser um "cidadão de bem" é defender as leis e obedecê-las, pode ser que você queira dizer outra coisa quando diz que é um "cidadão de bem" e pede algumas coisas que seriam consideradas crimes.
Se existe o “crime do bem”, sua cobrança de crime se enfraquece, porque mostra que seu problema não é com crime, mas alguns tipos de crime. Se existe a “fake news do bem”, sua cobrança por veracidade de informação se enfraquece, porque mostra que você só quer questionar alguns tipos de informação e só quer alguns tipos sendo veiculados. Se existe o “homicídio do bem”… já sabe. Inclusive, vale lembrar que, se você é uma pessoa religiosa, sua obrigação moral é seguir os preceitos que não têm exceções ou meias-palavras. Já falei sobre isso e coisas parecidas com isso no passado.
Então aí vem a dúvida: você é um "cidadão de bem", mesmo? Ou não? O que significa o que você está usando como rótulo? Vamos fazer mais perguntas.
Pense bem: por que você não comete um crime? Porque alguém te disse? Porque está na lei que é crime? Porque sua religião não permite? Por você, independentemente do resto? Essas são perguntas que parecem simples e é capaz que nós mesmos erremos nas respostas, porque é difícil se autoconhecer. Mas eu sempre penso que é perigoso quando levamos isso para fora de nós. Afinal, se nós dependemos do que existe fora para fazer algo certo, isso significa que esse é nosso único freio, e que nós estamos a uma frase escrita de distância de realizarmos atos terríveis.
Isso dito, por que você questiona algumas leis? Por que acha que algumas punições deveriam ser maiores, ou menores, ou que algumas coisas não deveriam ser crime, ou que mais coisas deveriam ser crime?
Mais de uma vez encontrei pessoas que dirigiam em alta velocidade em algumas vias da cidade de São Paulo. Quando questionadas sobre isso, essas pessoas justificavam seus atos dizendo que a exigência de baixa velocidade naquele ponto não era razoável, ou que eram motoristas competentes, ou, de modo mais marcante, diziam “Mas não tem radar!”
Ou seja, a justificativa para cometer uma violação foi a falta de capacidade de uma força punitiva por essa pessoa, fosse ela um policial ou um radar que enviaria uma multa para a casa do infrator em questão.
Esse não é um comportamento raro, especialmente em um cenário como o Brasil onde leis de trânsito são frequentemente questionadas, mesmo com dados apontando a efetividade das medidas. Mas realmente uma resposta como “mas não tem radar” dá muito o que pensar, e fiquei refletindo sobre como alguém pensaria que isso é uma boa justificativa para esse comportamento.
Eis o que conclui: Isso só foi aceito porque a pessoa entendeu duas coisas — que o comportamento realmente era uma violação, mas não haviam vítimas; e que ela não seria punida pela violação. Ou seja, a pessoa não se importava com a lei e a ordem, ou por cometer um crime, ao menos não no sentido mais literal do que entendemos de lei. Isso não diz que ela não se importa com a lei como um todo, mas sim que, se não há impacto, a violação pode ser ignorada.
Só que aí é que está o ponto: isso é um crime.
Óbvio, seria exagero da minha parte igualar isso com um roubo ou um assassinato, mas não posso deixar de considerar um crime, porque é uma violação de um grupo de acordos sociais, tanto o de não cometer crimes, quanto o do agrupamento de regras que constitui o código de trânsito brasileiro. É aquela situação: um crime sem vítimas não deixa de ser um crime. Ele só é sem vítimas.
Qual é a solução para essas pessoas? Abrandar as leis de trânsito? Isso é o que tem sido feito em muitos casos, mas basta ver todo o mercado de resoluções de burocracias de multas e pontos na carteira para entender que há um universo de problemas questionáveis por trás de todo o modelo.
Não sou um homem das leis e não quero propor uma solução a isso, neste cenário. Eu estou apenas apontando qual a tendência que isso nos leva. Se nós construímos um sistema de punição e regulação, e ao redor dele nós construímos meios de fugir do mesmo sistema, de dois um: ou nós estamos dizendo que somos melhores que o sistema, portanto não deveríamos ser afetados por ele… ou nós não acreditamos no sistema, e por algum motivo nós não queremos nos livrar dele, ou não sabemos como.
E isso é uma coisa complicada de pensar, porque nós geralmente não queremos admitir isso. Eu entendo que a pessoa média vai ter uma combinação de opiniões diferentes sobre leis de trânsito de um modo que seja conveniente para ela, e raramente terá uma visão ampla, porque não tem conhecimento para isso ou simplesmente porque não se interessa o suficiente.
Nenhum de nós quer o caos no trânsito. Mas todos nós gostaríamos de chegar rápidamente aos nossos destinos. Muitos de nós prefeririam um tratamento preferencial, e não necessariamente tendo um motivo para isso além do fato de sermos protagonistas de nossas próprias vidas.
Então chega a hora de fazermos a pergunta: se nós permitimos exceções, o que isso significa? Que nós reconhecemos o valor da lei em algum sentido, mas não queremos ser afetados por ela. Ou queremos ser afetados de outra forma.
Só que aí que temos a questão de como a lei funciona. Afinal, o PROPÓSITO das leis é amplo. Não temos leis focadas por indivíduo — no máximo, por cargos — então pensar no modo como queremos que as leis sejam muitas vezes parece ridículo, ou simplesmente falso.
É por isso que leis, muitas vezes, são feitas com base em estudos, tentando remediar situações muito mais amplas do que nossas relações de dia a dia permitem ver. É por isso, também, que leis geralmente nivelam por baixo situações, porque exceções enfraquecem regras.
Existem motivos para termos limites de velocidade. Existem motivos para termos limite de idade para consumo de bebidas alcoólicas e cigarros. E todos esses casos, por exemplo, podem ser violações sem vítimas, mas se o pior ocorrer, o resto da sociedade vai arcar com as consequências dessas violações. Ou você acha que um carro batido é resgatado automaticamente, e o motorista acidentado é tratado por mágica? Mesmo que vivêssemos em uma sociedade que cobrasse da pessoa esses custos, ainda houve uso de trabalho, de espaço, e inconveniência de outros membros da sociedade que não há dinheiro que pague.
Tudo isso que estou dizendo é para chegar em um ponto importante: retomando, leis são feitas para ajudarem a sociedade e a funcionar, e para expressarem seus valores, culturas e outras características. Se elas não nos atendem, elas podem e devem ser mudadas. Se elas nos atendem e há quem busque atacá-las, entortá-las ou invalidá-las, há algo para ser observado sobre o que essa pessoa está propondo.
Pode ser que essa pessoa tenha um bom ponto. Claro, incontáveis leis são mudadas e se tornam defasadas. Mas também pode ser que a pessoa realmente só queira algo que concorde com sua visão de mundo, ou que a beneficie.
E aí temos que pensar: se temos pessoas que só mantém baixa velocidade porque existem radares que vão puni-la até certo ponto por dirigir fora da norma, nós deveríamos lotar as cidades com muitos outros radares, ou nós deveríamos melhorar a qualidade dos motoristas de alguma forma para que os radares não sejam necessários? O que é possível? O que é correto?
O mesmo vale para qualquer outra lei. As pessoas que acham que relações sexuais entre adultos e menores de 18 anos devem ser facilitadas querem o melhor para eles? Você acredita na maturidade de um menor de idade o suficiente para tomar boas decisões? Sabendo que as pessoas burlam essa lei, você acha que é mais seguro para os jovens que a lei inexista e alguns casos não possam ser punidos, ou que ela continue, apesar de tudo, mesmo nivelando todas as exceções pela mesma régua?
Qual o nível de cobrança e fiscalização que deve existir para um oficial armado do estado? Eles devem ter o direito de matar pessoas? Você confia que um policial ou qualquer outro profissional armado é confiável? Você confia na pessoa média com uma arma ou com um carro?
O PROPÓSITO da torradeira é torrar pão. Nós sabemos disso. Qual a flexibilidade que nós devemos considerar aceitável na qualidade que ela cumpre essa função? Se nós estamos contentes com pão molhado, ou pão pouco torrado, ou com nacos de carvão, pode chegar o momento em que teremos que admitir para nós mesmos que nós queremos comer pão molhado, ou pouco tostado, ou carvão.
O que não faz sentido é chamar o carvão de torrada, ou a torrada de carvão, porque não queremos admitir publicamente que não estamos satisfeitos com a torradeira ou com sua FUNÇÃO ou com seu PROPÓSITO. Também não faz sentido aceitarmos que nos vendam carvão como torrada, simplesmente porque o questionamento é incômodo de alguma forma.
Junto disso, antes de qualquer outra discussão, nós precisamos dar um passo a mais e termos palavra, lógica e comprometimento. Quanto mais você escolher certas liberdades, mais complicado fica tentar tirar liberdades dos outros. Quanto menos você achar que deve ser cobrado, mais complicado fica cobrar os outros.
E se tudo isso ficou muito abstrato para você, eu vou dar um exemplo aqui baseado na minha visão de mundo: eu acho incrível que existem pessoas que são a favor de matar os outros por cometerem crimes com a lógica de que isso evitaria crimes futuros, mas que ficariam horrorizados de tivessem seus carros destruídos por autoridades porque os carros foram usado para cometer crimes.
Você pode até discordar comigo nesse meu exemplo final, mas este não é um texto sobre pena de morte ou legislação de trânsito. O que eu quero que você tire daqui é a imagem da torradeira e, toda vez que for discutir novamente sobre leis, papéis sociais e todas as expectativas que envolvem isso, lembre-se de pensar sobre a FUNÇÃO e o PROPÓSITO de cada uma das coisas. O que você está esperando, o que a lei prevê e o que as outras pessoas estão esperando?