A Máquina da Timidez
Recentemente eu descobri algo sobre mim mesmo que eu acho que pode ser útil para muita gente. Se você é uma pessoa que se considera tímida, ou que os outros consideram assim, ou se você conhece alguém assim, sugiro que leia este texto. Pode ser que ele te ajude, ou ao menos te dê algumas ideias.
Não, ele não é a única solução, ele não vai solucionar a ansiedade de ninguém e minha experiência não é igual à de todo mundo. Mas é uma perspectiva, e isso já ajuda, até onde sei. Isso dito, vamos:
Eu sou um cara introvertido. Isso não é segredo algum para quem me conhece: gosto de ficar só, gosto de recarregar as energias com tranquilidade e evito grandes movimentações e situações que me exponham muito.
Eu não sou tímido.
Vou repetir isso, porque até para mim não soa tão certo assim: eu não sou tímido. Eu sou introvertido, mas não sou tímido. As duas coisas muitas vezes se confundem, mas elas não tem tanta relação assim. Tímidos, eu diria, são geralmente introvertidos. Mas nem todo introvertido é tímido.
Isso quer dizer que eu consigo dar uma aula, falar a um público, fazer amigos, flertar, lidar com multidões e espaços públicos, mas que eu prefiro não fazer essas coisas das maneiras e frequência que uma pessoa extrovertida faria. Que prefiro ficar na minha.
Mas aqui que entra a questão: eu tenho meus momentos de timidez. Momentos em que claramente fico desconfortável de estar em frente a um público ou me expondo de alguma maneira, em que prefiro estar em qualquer outro lugar, até sumir, do que estar na frente dos outros. Momentos em que esqueço o que ia dizer ou engasgo nas palavras e, em alguns casos, até travo completamente.
Só que isso não acontece sempre, e realmente tem acontecido cada vez menos conforme o tempo passa. Consigo me expor várias vezes, variando em contexto, público, assunto que estou lidando e nível de preparo para a situação. E às vezes eu não preciso de preparo algum. Então em vez de me considerar um “tímido preparado”, eu prefiro não me considerar um tímido.
Recapitulando: eu sou introvertido, mas não tímido, mas tenho momentos de timidez. Depois de tudo isso, essa separação fez sentido?
Se não fez, eu explico: eu descobri que a timidez é um tipo de mecanismo. Nessa lógica, o tímido é alguém que deixou o mecanismo ligado em tempo quase integral, mesmo que não saiba que o fez.
Vou contar mais um pouco sobre mim e isso deve fazer mais sentido, ou assim espero.
Outro dia, pouco tempo depois de eu ser convidado por um amigo para palestrar sobre contos de terror e ter me dado muito bem com a experiência, eu estava pensando sobre essa minha relação com a timidez, sobre a diferença entre os motivos em que estou completamente desenvolto e completamente travado.
Eu tentei pensar no sentimento das duas situações, e nas necessidades que eu tinha em cada uma das decisões. Nesse momento, eu notei algumas diferenças que me ajudaram a explicar, e me fizeram finalmente ver o mecanismo da Máquina da Timidez.
Fui extremamente sincero comigo mesmo e notei que eu gosto de falar, gosto de me expôr, de contar coisas. Que eu tenho necessidade de informar as pessoas, e de que elas me apreciem por aprender comigo e reconhecerem o conhecimento que tenho. Gosto de ensinar. Mas também descobri que gosto de fazer isso nos meus próprios termos.
Geralmente, se eu estou sendo cobrado ou avaliado de modo superior ao simples julgamento social a que estamos todos expostos, eu fico mais tímido. Se o que eu tenho que fazer não é de minha iniciativa ou tem uma dependência maior em forças externas, bem como se tiver mais consequências possíveis por um erro — uma apresentação de estudos, no trabalho ou similares, por exemplo — eu fico mais tímido.
Isso não respondia todas minhas perguntas. Esses fatores eram claros e coerentes, mas ainda faltava um elemento que me explicasse por que eu, por vezes, conseguia ainda travar se as circunstâncias fossem muito específicas. Quais eram os fatores que me levavam a isso?
Se eu travava, o que eu precisava falar não saía, desaparecia completamente de minha memória, e mesmo meu corpo parecia se imobilizar. Tinha que ter alguma coisa.
E então, como um meteoro, caiu a ficha: o travamento era um mecanismo de defesa.
Era o ato de minha mente de ligar a timidez no máximo, porque se eu estivesse nesse estado, teoricamente eu não precisava falar, pensar direito ou me mover. Eu não precisava fazer o que eu não queria fazer. Eu não precisava me expôr e correr o risco de errar, se eu nem chegasse a errar. Eu não corria o risco de rejeição, se não tivesse nem mesmo algo que as pessoas pudessem ou não aceitar. Ninguém poderia me odiar, nem gostar de mim, nem me julgar com qualquer característica que não minha timidez, se eu não pudesse me expor.
Eu supunha que haveria um julgamento das outras pessoas, e julgava que sabia qual seria o julgamento deles, portanto antecipava o julgamento imaginado dos outros me julgando pelo que imaginava que julgariam, simplesmente para que o julgamento real não acontecesse.
Tem lógica? Claro que não. Mas minha mente não sabe disso, quando está operando na lógica de que a falha em uma situação é pior do que falhar em iniciar a situação.
Eu sempre fui uma criança, depois um adolescente e finalmente um adulto tímido, e essa era a chave: em algum momento de minha vida, escapei de enfrentar todo tipo de situação por conta dessa timidez. Porque alguém fez no meu lugar, ou porque perdi a oportunidade, ou porque alguém me dispensou de fazer, vendo que não daria certo que eu fizesse. Funcionou uma vez, depois outra, e logo a máquina da timidez se ligava automaticamente a cada situação de confronto, até que o tempo, a experiência e muito trabalho fizeram com que eu pudesse atenuar o funcionamento e até desligar em alguns casos.
Mas como eu nunca havia reconhecido conscientemente a máquina como o mecanismo de defesa que ela representava, eu ainda permitia que se ligasse ocasionalmente, ignorando que o mundo não entenderia ou aceitaria esse mecanismo de defesa que talvez funcionasse quando eu era criança, e que conscientemente eu nem queria.
Quando notei tudo isso sobre mim mesmo, vários sentimentos afloraram. Senti alívio, e senti alegria, porque eu sabia que havia identificado algo importante, que eu deveria trabalhar. E senti raiva, também. De vários tipos. Uma raiva era voltada a mim mesmo, por eu ter a certeza do quanto havia usado isso no passado. Outra era voltada às pessoas e circunstâncias que me permitiram usar esse mecanismo de fuga. Mas a maior, e mais forte, vinha do próprio aspecto do meu emocional que se sentia acuado por eu estar tirando dele o controle sobre a Maquina de Timidez. Eu havia desmascarado o truque, o Mágico de Oz atrás da cortina.
Por um instante, parte de mim queria mesmo me isolar mais do que nunca, me fechar a cada situação que eu não quisesse participar, mesmo que tudo pudesse funcionar a meu favor se eu o fizesse. E no calor desse sentimento, que eu podia sentir em meu corpo, eu pensei com ainda mais cuidado e consegui desarmá-lo, como eu desarmei o funcionamento da máquina, ao notar uma coisa: eu só tinha essa raiva porque parte de mim realmente se sentia protegida com a timidez, com a não-participação, com a fuga, e identificá-la como um problema me dava medo.
Algo que eu aprendi há pouco tempo e que segue funcionando muito bem para mim, é que quando você identifica seus sentimentos, especialmente raiva e medo, você consegue se distanciar deles e retrabalhar o que representam. E o medo e a raiva sumiram, quando consegui, por assim dizer, apontar o dedo para eles e etiquetá-los.
Não, eu não estou curado das ativações pontuais da minha Máquina da Timidez, mas eu sei agora identificá-la quando começa a agir, e sei o que a faz agir. E sinto que, por conhecer como o mecanismo funciona, eu posso lidar com ele de modo mais controlado e maduro. Eu entendo e consigo agir sobre o mecanismo de defesa defeituoso, que quer se proteger tanto que atrapalha até a parte boa da existência.
Não espero eventualmente me livrar dele. Quero reapropriá-lo como um mecanismo de defesa de verdade. Afinal, é óbvio que há um mérito a ser considerado aqui: uma parte de mim está claramente ligada a meus sentimentos e medos, à maneira que lido com desconforto, e portanto se eu conseguir prestar atenção nisso sem ser atropelado, por assim dizer, conseguirei mapear muito bem quais são as coisas que me trazem dificuldade e como as estou encarando.
E é isso. Obrigado pelo seu tempo, e espero que isso ajude de alguma maneira.