A metáfora do Xuxanismo
Outro dia eu estava no Quora e vi a seguinte pergunta: Por que misturar política e religião é algo tão ruim?
Para mim, a resposta era bem clara, com diversas nuances interessantes que eu podia explorar. Mas eu queria que as pessoas entendessem, e sabia que se usasse exemplos reais muitas fechariam a cabeça para mim, sentindo-se ofendidas. Em outros casos, eu poderia alimentar alguns preconceitos que não são legais, e que também acabariam afastando o foco da resposta.
Decidi, então, inventar um cenário fictício para ver se minhas ideias ficavam evidentes. Eis, abaixo, uma versão levemente revisada do que eu respondi:
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Vamos fazer uma metáfora, aqui. Imagine um país em que várias religiões vivem em harmonia. Sim, parece utópico, mas imaginemos para o nosso exemplo.
Eis que uma das religiões desse país começa a ganhar mais proeminência. Ela se chama Xuxanismo, e seu deus se chama Seu Vavá.
Existem três alicerces na fé Xuxanista:
1- Os discos de Xuxa Meneghel e suas letras são textos sagrados.
2- O jogo de sinuca em todas suas variações é moralmente corrupto e deve ser combatido.
3- Bombons de chocolate devem ser consumidos de maneira religiosa.
Esquisito, né? Mas nada que pareça muito problemático. Ninguém ia querer se opor a isso, certo?
Conforme a fé Xuxanista cresce no país, vemos um aumento do consumo de bombons, e de pessoas ouvindo músicas da Xuxa. Vez ou outra existe alguma confusão em botecos porque um xuxanista tenta pregar para os jogadores de sinuca no lugar, e existem o caso dos donos de estabelecimentos que, convertidos, não permitem mais que seus clientes joguem. Nada muito grave, e poderíamos até dizer que, apesar das estranhices, os xuxanistas querem o que entendem como o bem de todos.
Eis que surgem políticos que pensam que pode ser mais interessante tornar o país alinhado com os ideais xuxanistas. Claro, também existem aqueles que estão se aproveitando do público engajado com as questões dessa religião, e usam isso para ganhar mais poder político, mas no fim, o resultado é o mesmo: eles fazem políticas se dizendo alinhados com esses ideais.
A primeira grande coisa que fazem é um movimento pela proibição da sinuca em todo território nacional, pregando que ela corrompe a alma das pessoas, desagrega famílias e leva à ruína moral. As pessoas acham isso um absurdo, claro, mas a discussão logo cai na questão de que os opositores são preconceituosos com a religião xuxanista. Há uma organização de uma bancada xuxanista, e uma movimentação ampla com apoio da parcela da população que adere a essa religião. O projeto avança, entra em votação, e vence! A sinuca passa a ser proibida no país e, logo, a polícia passa a perseguir e prender qualquer um que jogar escondido, mesmo na privacidade do próprio lar. A oposição segue tentando liberar o jogo, e são taxados de “sinuquistas” por esses. Os supostos "moderados", que já não ligavam para sinuca, ficam indiferentes, com alguns até mesmo votando junto com os xuxanistas em trocas de favores.
Enquanto isso, lideranças xuxanistas estão fazendo o possível para que todas as sessões e votações do governo sejam iniciadas com a reprodução de algum dos sucessos da Xuxa, em respeito à religião deles, que consideram a correta. Eles também querem que todas as escolas comecem as manhãs tocando “Ilariê” como um meio de garantir as bênçãos de Seu Vavá às crianças. A oposição se coloca contra, e os xuxanistas os acusam de intolerância religiosa e de tentar corromper as crianças.
Começam a surgir notícias falsas, sobre professores tentando fazer jogos de sinuca nas escolas para corromper as crianças. Um aluno reclamando de que acha a música da Xuxa chata viraliza e é usado como exemplo de doutrinação anti-xuxanista nas escolas. Novos projetos de lei são reforçados, e aqueles que se opuserem, claro, são considerados verdadeiros monstros.
Alimentados por essa sensação constante de medo e perseguição, ou aproveitando-a conscientemente, alguns políticos xuxanistas passam a criar projetos para proibir e/ou regular esportes com bolas e bastões, julgando que, afinal, sinuca possui bolas e bastões, então a degradação moral desse jogo pode se refletir em outros esportes. Toda oposição a essas ideias é colocada como algo terrível e pouco razoável, e logo os esportes são adaptados, quando não proibidos de serem praticados.
Na rua, pessoas que andarem com bastões — incluindo bengalas, muletas e tantos outros itens similares — são paradas pela polícia, com questionamentos sobre possíveis jogos de sinuca ilegais. Prisões arbitrárias ocorrem aos montes, para garantir.
Enquanto isso, o governo passa a subsidiar todas as fábricas de chocolate do país. Os bombons são produzidos seguindo normas religiosas extraídas de interpretações da música “É de chocolate”, da Xuxa, e por serem itens considerados sagrados à fé xuxanista, qualquer produção diferente passa a ser proibida. Ou um bombom é xuxanista, ou não é um bombom. E mais, outros tipos de chocolate são vistos como problemáticos.
Em pouco tempo, traficantes de chocolate passam a ser presos. Nas igrejas xuxanistas, líderes religiosos lucram milhões com os chocolates da fé xuxanista.
E, claro, junto de tudo isso, os templos xuxanistas não pagam impostos, porque os políticos fizeram que fosse assim, argumentando que era a vontade da maior parte da população, dada a importância dos templos xuxanistas para a sociedade. Outras religiões pagam, a não ser que sejam reconhecidas pela autoridade máxima do Xuxanismo, que não reconhece nenhuma outra religião como certa.
Claro, o povo reclama, mas tudo agora é pautado pela lógica xuxanista. Se você fala que gostava da época em que podia jogar sinuca, a resposta é sempre algo tipo: “Mas gostava de ser um HEREGE?!”. Se você não é xuxanista e fala que gosta de bombom, algum espertinho vai apontar: “Aaaah, mas bombom é xuxanista, então quer dizer que você acha que estamos certos e só não quer admitir!” E, claro, você não pode falar NADA contra a Xuxa ou suas músicas porque pode ser preso por intolerância religiosa, perder o emprego, ser exposto em redes sociais e até linchado na rua.
Então a República Xuxanista decide que os outros países estão errados no jeito que comem chocolate, e por jogarem sinuca, e por não ouvirem Xuxa, e decidem que eles têm que mudar. A diplomacia não funciona para convencê-los dessas demandas, então eles reinterpretam as canções da grande profeta e decidem que isso pode ser feito à força, se necessário. ("Marquei um X" é entendido como alegoria bélica, servindo de justificativa.)
O exército da República Xuxanista, assim, passa a recrutar soldados para morrerem na guerra santa pela glória do Xuxanismo e você, que nem gostava muito de chocolate e só queria uma vida tranquila, acaba tendo que pegar em armas, ou a prisão é o seu destino certo.
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Não existe Xuxanismo. Não existem as regras estranhas que eu listei acima. Mas só é necessário um pouquinho de imaginação para entender que os mesmos problemas aqui expostos já existem na vida real em outros formatos, seja em atos reais ou em possibilidades desejadas por algumas pessoas, em diferentes graus, em diferentes locais.
Se você apontar essas questões para algumas dessas pessoas, é capaz que elas até concordem comigo e com você, mas vão garantir que isso jamais aconteceriam com a religião e/ou filosofia de escolha deles.
Por isso, eu deixo claro: eu me refiro a qualquer uma que você quiser misturar com política. Qualquer uma. Até a sua. Especialmente a sua.