A hora e a vez de apontar o dedo

Rodrigo Ortiz Vinholo
7 min readMay 20, 2024

--

A Flood on Java (c. 1865–1876) by Raden Saleh, lithograph, 32 x 44 cm, Royal Netherlands Institute of Southeast Asian and Caribbean Studies

Esteja você lendo isso aqui no futuro próximo ou distante, provavelmente você saberá que em maio de 2024 o estado do Rio Grande do Sul foi arrasado por um imenso desastre ambiental. A chuva destruiu cidades inteiras, acabando com vidas de formas literais e metafóricas. O Brasil se movimentou, se unindo de formas esperadas e inesperadas para tentar salvar vidas, ajudar os desamparados, e reduzir o rastro de destruição.

Eu não sei o que irá acontecer, ainda que consiga especular que não será fácil, porque não tem sido fácil. Eu não sei até onde irão os estragos, e não tenho a noção completa de tudo que aconteceu, porque as dimensões fogem à minha cognição, e mesmo que eu lesse tudo, visse fotos e vídeos, eu jamais teria o conhecimento completo, ainda mais porque vivo em São Paulo, longe de todo o impacto.

Eu ajudo com o pouco que posso, que tem sido através das minhas redes sociais (e no fim deste texto, também), e sei que isso é muito menos do que muitas pessoas mais competentes e solícitas têm feito.

Com isso dito, eu quero apontar dedos, e quero falar sobre apontar dedos.

Agora, no cerne da desgraça, levantou-se a discussão sobre os méritos de procurar culpados. Muitos dizem que não devemos fazer isso, que não é hora disso, mas como profissional de comunicação e uma pessoa que já viu o suficiente de história para ter alguma noção, é preciso dizer que agora é o melhor de todos os momentos para apontar dedos.

Primeiro, é preciso destacar que dedos já estão sendo apontados. E muitos deles são por motivos falsos. Nós tivemos um surto de boatos mentirosos, por vezes de desinformação aleatória, mas majoritariamente com uma estratégia política focada. Apontar dedos, agora, é um jeito de combater a falsidade e reforçar a verdade.

E mais, além das mentiras, quando a desgraça passar, por mais que deixe cicatrizes, nós teremos nossa visão filtrada pelo alívio e pelo luto. Nós teremos outras desgraças, alegrias e distrações, na eterna programação da realidade e da marcha do tempo. Com a distância, é fácil costurar fatos conforme a conveniência de quem quer contar a história. É fácil perder o contexto.

Então se alguém me fala para não procurarmos culpados, isso me diz que a pessoa só não quer que sejam apontados os culpados porque ela os protege, do mesmo jeito que os mentirosos espalhavam o que é mais conveniente para eles. Não faltaram os que buscavam essa pretensa neutralidade, só para indicarem outros culpados quando queriam.

Obviamente, e preciso dizer isso logo, eu não estou dizendo que o povo deve ser culpado. Culpar a vítima é de uma pequenez de caráter, de uma crueldade tamanha, que eu cuspo da cara de qualquer miserável de ruína moral que ousar fazê-lo.

Eu já vi os desgraçados reacionários que atribuem as chuvas à suposta ira de Deus contra umbandistas, misturando suas pretensas convicções religiosas com ódio e preconceito. Eu vi os imbecis reacionários de outras vertentes que culpam a desgraça por opiniões separatistas ou brigas políticas. E há até prefeitos obtusos tentando se isentar de culpa e culpando vítimas das próprias cidades.

Tratar esse sofrimento todo como uma dívida moral, como uma punição divina ou do universo não só é sem sentido — afinal, outros países de posicionamentos políticos e religiosos alinhados com esses discursos já sofreram desgraças nos anos recentes — como é do mais baixo punitivismo. Não há justificativa moral e, mesmo que houvesse, concordar com isso envolveria punir todos.

Agora veja: se não apontamos a culpa dos mesmos hipócritas que vomitaram essas noções, daqui a meses ou anos, eles serão lembrados como tais? Acho difícil que qualquer pessoa razoável — e quem concorda com eles não é razoável — discorde que eles não devem ser identificados e, se não for possível puni-los na lei, que ao menos nos lembremos de quem são. Que sofram em credibilidade e imagem, se não puderem sofrer por punições legais.

E disso, caímos aos administradores da desgraça. Caímos no governador Eduardo Leite, que tomou péssimas decisões, ignorou informações vitais e reduziu drasticamente o orçamento de desgraças, mesmo que um ano atrás sofrimento similar tivesse surgido em seu estado. (1, 2) Caímos em prefeitos como Sebastião Melo, de Porto Alegre, que não fez investimentos para prevenção de enchentes. (1, 2) E veja, você pode me acusar de posicionamento político de qualquer forma, mas isso não mudará que essas informações são verdadeiras.

Não será menos verdade o vergonhoso pedido de PIX do estado do Rio Grande do Sul informando ao público que a chave é “a mesma utilizada no ano passado”, deixando claro que ano passado o problema também estava ali, e reforçando o que foi ignorado. Não será menos verdadeiro o governador reclamando, depois, que doações atrapalharam o comércio da região. Não será menos verdade que políticos do estado não repassaram verbas que deveriam justamente para isso.

Essas mesmas figuras vão concorrer em reeleições, vão pleitear outros cargos, e daqui a um, dois, três, dez meses, o que sobrará é o resto de imagem, os acertos que talvez possam ter surgido depois de erros gravíssimos. A tentativa de ocultar a culpa, depois que a culpa destruiu vidas e esperanças.

Não procurar culpados é permitir que essas e outras figuras desgraçadas varram para debaixo do tapete cada um de seus erros e reabilitem suas reputações a partir de méritos falsos, ou, se verdadeiros, usados como disfarce para essas faltas.

E não acreditem nas figuras angelicais que tentam apaziguar, porque já há quem tente reabilitá-los, e já há quem tente apontar culpas para outros lugares. Enquanto de um lado ignora-se uma culpa, procuram culpados em outros cantos apenas para ocultar a balança, e não em uma tentativa de agrupar todos que tiveram erros.

Do mesmo modo, há quem prefira apontar que tudo isso não é resultado de incontáveis mudanças climáticas derivadas de ação humana, questão provada repetidas vezes pela comunidade científica. Não, preferem acreditar em charlatões simplesmente porque isso atende às suas necessidades, vieses e agendas.

Céus, eu já vi imbecis preferindo acreditar em teorias de conspiração sobre o tal sistema HAARP manipulando o clima do que de fato termos resultado de nosso própiro desmatamento, poluição, descuido e políticas feitas para proteger e incentivar grandes poluidores e desmatadores. Não é conveniente como acreditam na ação humana apenas para tecnologias bizarras e intromissões específicas que contribuem com as histórias que querem acreditar? Vocês realmente acham que não devemos apontar também esses que tanto prejudicam? Eles não estão piorando a situação?

Não estão também piorando a situação aqueles que mentem a respeito dos esforços de ajuda? Eu também já vi o modo como a cobrança por performance também é usada como disfarce para críticas políticas ou por ego, e vi como existem aqueles que, com pretexto de ajuda, só querem se autopromover. Todos esses devem ser reconhecidos como os pilantras que são e devem ter dedos apontados.

Toda ajuda é bem-vinda, mas as causas relativas a RS estão se tornando circos de performance. Uns fingem ajudar, outros fingem que quem está ajudando está fingindo, e o resultado é que as notícias falsas estão afetando os resultados reais. Você acha mesmo que não devemos apontar o dedo para essas pessoas, ou para aqueles que, por ignorância ou má intenção espalharam essas mentiras?

Talvez você tente amenizar uma divulgação dessas com base em uma suposição de boa intenção, ou de resultado apesar da má intenção. Lamento, eu não consigo aceitar: a internet não deve dar licença nenhuma para falsidade, não importando a ignorância alheia. Em diversos ambientes das nossas vidas, a mentira, mesmo sem intenção, pode gerar punições, e deixarmos isso de lado aqui é, no mínimo, ingênuo. Devemos apontar o dedo também para os enganados, porque precisamos que, se não punidos, eles sejam lembrados pelo que efetivamente são: pessoas pouco confiáveis, ignorantes e ingênuas.

Eu estou em São Paulo. Não estou no Rio Grande do Sul, e não tenho tempo, disponibilidade ou disposição para ir até o Rio Grande do Sul resgatar pessoas em enchentes. Como muitos, sou até certo ponto só mais um palpiteiro. Mas eu entendo de comunicação, e eu entendo de pessoas, então minha distância nada desabona minha mensagem ou credibilidade.

Inclusive, eis um outro truque que merece todos os dedos apontados: há mentirosos que estão no Rio Grande do Sul. Há pessoas que realmente estão lá e espalham mentiras. Há aqueles que, com vídeos editados ou outros truques, também fingem que têm mais credibilidade. Nosso viés de confirmação nos diz que porque uma pessoa está por lá, ela está falando a verdade. Nós tendemos a confiar em nossos olhos, e eles enganam nossos olhos com falta de contexto, ou fornecendo contextos mentirosos. Esses, também, devem ser alvos de dedos apontados (e outras punições, onde cabível).

(Se bem que, para quem quer acreditar, nem precisa ser convincente.)

Enfim, apontemos dedos. Escrevamos textos. E quem puder ajudar, ajude, seja com dinheiro, doações, trabalho voluntário, ou espalhando a verdade e combatendo mentirosos.

Eu finalizo listando um grupo mais próximo de minha realidade: são artistas, editoras e profissionais do mercado editorial que foram afetados diretamente. Se puderem, ajudem, acompanhem o trabalho deles, e ajudem a divulgar. A lista foi compilada pelo Fabiano Denardin no perfil da Editora Hipotética no Instagram, a quem agradeço.

Brasa Editora @brasaeditora — PIX eventos@brasaeditora.com.br

Diego Gerlach @vibetronxacomix — PIX diego.gerlach@gmail.com

Dínamo Estúdio @danielhdr — PIX contato@dinamoestudio.com.br

Felipe Xavier @felipexavier_ilustrador — PIX felipexavierilustrador@gmail.com

Gabriel Kolbe @gabrielkolbe — PIX gabrielkolbe@gmail.com

Luciano Ribeiro @_ribeiro_luciano — PIX 74101951004

Marcelo Grisa @brisagrisa — PIX marcelogrisa@gmail.com

Rafa Fritz @angulodevista — PIX contato.fritz@outlook.com

Tai Editora @tai.editora — PIX 51993576776

Talita Grass @toda.tali — PIX talitagrass@gmail.com

--

--

Rodrigo Ortiz Vinholo
Rodrigo Ortiz Vinholo

Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

No responses yet