A falácia do herói imbatível

Rodrigo Ortiz Vinholo
16 min readNov 16, 2020
“Three Studies for Portrait of George Dyer (on Light Ground),” a painting by Francis Bacon.Credit…2014 Estate of Francis Bacon/Artists Rights Society (ARS), New York/DACS, London

Eu gostaria, aqui, de expor algumas ideias que tive observando o comportamento das pessoas no decorrer da história e em especial recentemente. Esse é um comportamento que se aplica em diversas áreas, mas é especialmente mais forte em um cenário político. Eu chamo esse comportamento de “A falácia do herói imbatível”.

Resumidamente, a falácia pode ser definida na seguinte frase: se um indivíduo é escolhido como um “herói imbatível”, todas as circunstâncias ao seu redor, positivas e negativas, bem como suas ações e as respostas a elas, servirão àqueles que o escolheram como um herói como reforço de sua figura.

Se entrarmos em detalhes, a conversa é um pouco mais longa, e entendo que ela faça mais sentido se a analisarmos a partir do ponto de vista de um tipo de universo mitológico próprio. Vamos lá:

A partir do momento em que as pessoas escolhem um herói, passam a acreditar naquilo que sustenta a tese de que um indivíduo é um herói, não nos fatos em si ou qualquer elemento contraditório à tese. O mundo dessas pessoas e suas relações de causa e efeito passam a ser orientadas por isso, e não pelo que a realidade aponta.

Ou seja, nada conseguirá dissuadi-los da realidade que desejam ver. Sempre pensarão que tudo que o herói faz:
1- é para derrotar um inimigo, ou ao menos é justo, moral e bom de alguma outra maneira;
2- é sempre certo;
3- é bem pensado;
4- representa a justiça e a moralidade e todos que o apoiam;
5- mesmo que estranho, inexplicável ou reprovável à primeira vista, pode ser explicado de uma maneira que siga beneficiando sua imagem;
6- é sincero e, simultaneamente, pode ter um significado e/ou intenção oculta (sempre positiva).

Dentro desse viés, se algo acontecer com o herói, sempre ocorre por um ou mais desses fatos:
1- há um inimigo (ou mais) agindo contra o herói;
2- o inimigo é ardiloso, inteligente e poderoso (exceto quando não é);
3- se algo não deu certo no plano do herói, a culpa foi do inimigo, e não do herói ou seus aliados;
4- trata-se da manifestação de uma força de imoralidade e injustiça, porque o herói sempre representa moralidade e justiça;
5- pode ser explicado de uma maneira que siga beneficiando a imagem do herói e piorando a do inimigo.

Com tudo isso, invariavelmente surgem alguns outros pressupostos comportamentais da relação das pessoas com o herói:
1- se você é contra algo que o herói fez, você é contra a justiça e a bondade;
2- se você é contra algo que o herói fez, você é a favor do inimigo;
3- o herói é inquestionável e o inimigo só pode errar, e qualquer pensamento diferente disso ou é ignorância, ou maldade e, claro, traição.
4- qualquer tentativa de explicação diferente das narrativas aceitas será entendida como questionamento e, portanto, apoio do inimigo e traição do herói.

O herói, com esse conjunto de preceitos normalmente não escritos, se torna imbatível e moralmente superior não importam as circunstâncias.

O herói, ainda, por vezes assume a faceta da “vítima superpoderosa”, porque ao mesmo tempo que é entendido como imbatível, perfeito, à prova de questionamentos e ideal para todos, ele é sempre alvo de todas as forças possíveis de oposição e, sempre que conveniente, é vítima delas. O herói, assim, simultaneamente é superpoderoso — quando é relevante, se torna imune a todas essas forças, derrota qualquer inimigo, mantém sua superioridade moral, sabe mais que todos e tem as decisões mais acertadas — , e é uma vítima, cujo fracasso só pode ser atribuído a ações externas — quando é relevante, é perseguido, atacado e, se não consegue agir ou algo que fez não deu certo, a culpa é sempre dos outros.

É importantíssimo para o herói imbatível que ele seja também uma vítima superpoderosa. Isso porque tal aspecto é o que reforça sua mitologia. O mundo não é prefeito — ou seja, feito à imagem do herói e seus ideais — apenas porque as outras pessoas não são iguais ao herói, ou ao menos não tentam se alinhar com ele. O plano do herói não dá certo sempre por conta dos outros, e nunca por conta dele.

Quando se deparam com o fato que o herói não pode fazer tudo, especialmente não tudo que quer fazer, seja porque não tem capacidade ou porque não lhe é permitido (pelo inimigo, pelas leis, ou mesmo pela própria realidade), a visão dele como vítima se intensifica, e os esforços para que o inimigo, as leis e a realidade se dobrem à sua vontade aumentam, porque é necessário manter a lógica circular de que ele tudo pode.

(Vale um adendo, aqui, apontando que é possível aos apoiadores do herói se sentirem também vítimas, pois qualquer percepção de injustiça a ele é refletida em cada um, através da identificação com ele. Todos são igualmente vítimas do inimigo, assim, mesmo que suas vidas nunca tenham sido diretamente afetadas por suas ações.)

Desse modo, como o herói é à prova de cobranças, a ausência dessas tem que ser justificada adequadamente, porque isso não acontece com mais ninguém. O que se faz, então, é cobrar mais o inimigo e elogiar o herói constantemente. Aqueles que adoram o herói, então, além de idolatrá-lo e desprezar o inimigo, devem elogiá-lo constantemente a um nível de infantilização. Qualquer pequeno ato do herói é admirado e forma um código que é replicado pelos seguidores, independentemente de coesão e coerência com atos passados ou com sua função como um todo. Isso serve tanto para que aqueles que adoram o herói possam identificar os que não aderem à idolatria rapidamente, quanto para manter reforçada a imagem da missão constante de proteção do ídolo.

Aqui, claro, entra outra característica importante: o povo escolhido. Os seguidores do herói são recompensados com, como acontece na maior parte dos grupos humanos, uma sensação de pertencimento. Mas isso, aqui, é reforçado e passa a ganhar um contexto mais amplo e pretensamente profundo, quase místico e/ou religioso. Os apoiadores do herói imbatível buscam atingir em si mesmos a perfeição que atribuem ao herói imbatível, desprezar e perseguir os que não o fazem, só que simultaneamente se colocam em posição servil. Ao mesmo tempo que fazem o possível para se identificar com características do herói, permanecem abertos para que sejam alimentados por insumos divinizados dele. Tal como em algumas linhas religiosas, o alinhamento com a doutrina, a fé e a anuência total são a chave, com as explicações surgindo posteriormente — primeiro acredita-se e aceita, e depois justifica-se. Observando-se o reforço positivo pela participação, aqueles que aderem ao culto do herói entram em um estado de graça.

O povo escolhido, ao colocar-se como passivo em relação ao herói, busca servi-lo e indiretamente o coloca como uma figura mítica e, em alguns aspectos, inalcançável. Mesmo se o herói se travestir de parte do povo escolhido e utilizar-se das características que o povo enxerga nele (reais ou não), ele nunca deixa de ter o aspecto de ídolo ou salvador.

Dentro da hierarquia do povo escolhido surgem, assim, outras castas. Ao redor do herói se organiza um panteão por ele selecionado, que passa a ser idolatrado pelo povo como extensões do herói, e logo abaixo dele — ou, por vezes, de modo intercambiável com um papel de membro do panteão — existem as autoridades eleitas. Essas autoridades são, seja por reconhecimento do povo eleito ou do herói (se pelo povo, é por alinhamento total ao herói, de todo modo), indivíduos que servem como guias ou intermediários ao povo em sua relação com o herói, e se dividem em duas classes: especialistas e profetas.

Os especialistas são indivíduos que se apresentam como tendo notório saber em uma ou mais áreas de interesse da atuação do herói, e são reconhecidos como tal — sendo tais credenciais confiáveis ou não — e, apresentando interpretações do universo sob o ponto de vista que mais agrada o povo, o herói, e que melhor garante a continuidade das características de imbatível/vítima superpoderosa desse, incluindo, claro, a negação e perseguição de qualquer outro especialista e conhecimento que seja percebido como alinhado ao inimigo. Eles são a visão pretensamente racional e científica que alimenta e faz o intermédio da relação do povo com o herói, dizendo que é lógico e racional adorar o herói. Dentro da função de elogiar o herói, estes reforçam sua inteligência, capacidade estratégica e seu poder físico.

Os profetas são indivíduos que apresentam ao povo (e por vezes até ao herói) informações sobre o herói, a vida, o universo e especialmente sobre o inimigo, discorrendo sobre a realidade e o futuro, sobre o que deve ser feito e diversos tópicos direta ou indiretamente místicos e/ou religiosos. É comum a eles discorrer em termos de moralidade e filosofia, podendo ou não existir a apropriação de um universo semântico e temático religioso. Naturalmente, eles também servem para reforçar a contraposição desses elementos na figura do inimigo, e manter a rejeição desses presente em um nível mais subjetivo e emocional, dizendo que é moral e divino adorar o herói. Eles são a visão pretensamente religiosa que alimenta e faz o intermédio da relação do povo com o herói. Dentro da função de elogiar o herói, estes reforçam sua moralidade, justiça, superioridade espiritual e seu poder divino (ou alinhamento com um poder já existente, sendo um “escolhido”).

Os especialistas e profetas muitas vezes tem funções combinadas ou alternantes, com indivíduos que representam as duas frentes. Naturalmente, também, existem diferentes linhas que se formam dentro da base de apoio do herói, do mesmo modo que se formam diferentes denominações em uma mesma religião, mas a base de adoração da figura central permanece.

Entende-se, assim, que já que cada ato do herói é acompanhado, interpretado como algo maior do que é, reinterpretado conforme for conveniente, invariavelmente surge uma outra faceta do herói. Além de “herói imbatível” e “vítima superpoderosa”, o herói também se torna um “ídolo performático”. A certo ponto, as ações do herói passam a ser tanto sobre o que elas realmente são, quanto a existirem por algo muito maior que elas mesmas.

O herói, assim, passa a ser esperado pelo povo em diversas situações, geralmente expressadas por repetição ritualística e caráter personalista. Em outras palavras, criam-se apresentações recorrentes e similares da figura do herói apenas para agradar a seu público, que passa a ser retroalimentado pelas interpretações dos especialistas e profetas. O panteão também acompanha essas atividades e busca emulá-las sempre que possível, deixando claro que são referências ao herói, que é o ponto focal mesmo quando estão atuando separadamente.

O herói, junto disso, tem um universo temático: um conjunto de ideias e símbolos que traduzem sua presença e o que ele representa. Ainda que sejam perecíveis e possam ser substituídos, eles são ferramentas importantes para manter a presença do herói constante e para servir como modo rápido de comunicação e identificação dentre os que aderem à sua adoração. Isso pode ser refletir também em gestos, expressões linguísticas, vestuário e vários outros elementos.

A adesão do povo escolhido aos rituais, seja em pessoa ou através da busca de informações, se torna por si só um símbolo de poder, pois reforça a percepção de aceitação e adoração do herói e do que ele representa. O herói, assim, faz tal atos porque além deles serem eles mesmos e aumentarem sua presença mitológica, se tornam uma demonstração de força. Ele faz tanto porque pode quanto porque é esperado.

Interessantemente, depois que tais atividades são padronizadas, se o herói falhar com elas ou abandoná-las haverá um estranhamento, mas pela força das figuras que o cercam (panteão, especialistas, profetas) não haverá cobrança pela performance e, mais, haverá uma justificativa para demonstrar que essa decisão também é correta, voltando a reforçar tal aspecto como um ato de poder, indiretamente indicando que qualquer migalha de atenção fornecida pelo herói deve ser absorvida como bênção e que a negação dessas é culpa não dele, mas do inimigo ou até do povo se posicionando de algum modo indigno.

Nas dinâmicas de poder que se formam ao redor do herói, há sempre a chance de que membros do panteão sejam promovidos ou rebaixados, quando não até mesmo exilados e identificados com o inimigo. A adesão é simples: basta o alinhamento com o herói e a aprovação desse (ou de outros que sejam enxergados como autoridades altas o suficiente), e haverá uma transformação instantânea desse indivíduo: pecados do passado serão perdoados e ações do presente e do futuro, também, mesmo que elas representem uma contradição ao código de valores e mensagem do herói.

É comum, aliás, que o próprio herói e todos que o apoiem não estejam agindo dentro do código moral e das ações-protótipo que pregam. Isso se dá tanto pela já mencionada percepção do universo como imperfeito (em oposição ao herói) quanto porque, também como dito antes, o alinhamento que interessa é com o herói e qualquer ato ou característica correlata é apenas um meio de chegar a isso. Agir de maneira alinhada com a moral do herói não necessariamente é um fato de adesão, apenas a aparência de adesão é necessária. A cobrança de moralidade é vista como um ataque, portanto ela ocorre unicamente ao inimigo, se tornando, assim, um elogio e reforço ao herói.

O rebaixamento de um membro do panteão, assim, só ocorre quando há concordância do herói, mesmo que o povo escolhido, o resto do panteão, os especialistas, os profetas e o inimigo tenham apontado, cobrado e rejeitado anteriormente. Se o herói manifestar-se negativamente sobre a figura, toda a estrutura se volta para ela, independentemente disso representar uma concordância com o inimigo e seus valores — nesse ponto, não há medo de adesão porque é um raro ponto de concordância, mas ainda assim haverá um realinhamento de discurso mesmo que se diga a mesma coisa — , e se o herói não se manifestar, a figura controversa manterá seu status, os apoiadores realinharão suas narrativas, e é capaz que o quase-pária ainda seja promovido dentro das castas do grupo do herói.

Vale outra observação, caso não tenha ficado claro: note que não há, dentro da mitologia do herói imbatível, grupos que não representem o herói ou o inimigo. A isenção ou a dubiedade é vista como adesão ao inimigo, e o silêncio é visto como concordância e apoio ao herói.

No caso de abandono, traição ou expulsão de algum membro do grupo do herói, todas as faltas e problemas antes ignorados — fosse por omissão consciente, reinterpretação, pretensão de ignorância ou disfarce de todos que estavam interessados em fazê-lo — voltam a ser graves e problemáticos, passando a ser identificados com o inimigo, mesmo que os acusados ainda o desprezem e não estejam alinhados com eles em qualquer maneira.

Aqui, finalmente, vale falarmos do próprio inimigo com mais destaque. Um primeiro grande ponto para entendermos é que dentro dessa mitologia, a rejeição ao inimigo é um fator de alinhamento com o herói, mas em muitos casos, em si, isso não basta. A adoração ao herói e tudo mais que isso pede ainda são necessários.

O povo escolhido, bem como outras figuras de apoio do herói, constantemente devem ter o inimigo em mente para pautarem suas ações em oposição e ele e desprezarem cada um de seus movimentos e representações. Naturalmente, assim, a adesão ao inimigo é entendida como um ou mais destes elementos:
1- ruína moral consciente;
2- incapacidade intelectual;
3- doutrinação ideológica;
4- interpretação errônea do mundo;
5- interesse financeiro e/ou de poder de alguma outra forma.

Inclusive, interessantemente, toda narrativa é construída de modo que esses mesmos elementos sejam pretensamente negados na adesão ao herói e, se forem identificados, são reinterpretados prontamente com alguma diferença subjetiva, pois esses elementos são passíveis de uso apenas pelo inimigo.

A mensagem, assim, é simples: só pessoas ruins, ignorantes ou com interesses bem específicos teriam interesse no inimigo ou em qualquer coisa que o herói e seus asseclas definirem como correlatas a ele.

O inimigo é, assim, em oposição à vítima superpoderosa, o incompetente superpoderoso. Ele tem recursos praticamente infinitos, convence a todos que desejar, consegue manipular mentes e o estado das coisas com planos de longuíssimo prazo e sem nenhuma resistência, mas ele ao mesmo tempo é completamente desqualificado, destinado a ser vencido e completamente imoral. Nunca fica claro como ele consegue ser simultaneamente mais poderoso e menos poderoso que o herói, e ter sucesso em seus planos mesmo quando está perdendo, mas é um mistério que os seguidores do herói não questionam, e levam como pressuposto para todas suas ações.

O inimigo se torna também um símbolo maior que ele mesmo e, assim, é caracterizador. Como arqui-inimigo, ele é considerado o oposto do que o herói representa e, por generalização, a luta do herói contra ele é arquetípica. Toda característica ou ação similar ao inimigo é igual ou pertencente ao inimigo. Toda característica ou ação do herói é, portanto, anti-inimigo, mesmo que possa ser de algum modo equivalente a ele.

Ou seja, como já mencionado anteriormente, seus atributos são idolatrados por si só e, sendo relevantes, são idolatrados porque eles são entendidos como o oposto do inimigo. Isso é passível de observação tanto pelo modo como qualquer crítica se torna identificada com o inimigo (“se criticou é inimigo”, “se criticou está fazendo o jogo do inimigo”), mas também pelo modo como, frente à apresentação de uma falha ou ação repreensível do herói, existe uma comparação imediata com as falhas e ações do inimigo (“do inimigo você não fala”, “e o inimigo, hein?”).

Dentro da relação de atos versus moralidade, há uma peculiaridade interessante: o inimigo é capaz de tudo, mas o herói não. O herói é limitado por sua própria moralidade e limitação de recursos e, assim, tem um papel trágico que reforça sua posição como vítima superpoderosa. É possível, dessa maneira, que os profetas e especialistas apontem atos completamente impensáveis e os atribuam ao inimigo, fazendo com que o povo aceite tais afirmações sem questionamento, porque se torna um pressuposto que apenas o inimigo seria capaz de fazer tais coisas.

Se em alguma ocasião o herói ou qualquer um ligado a ele que permanecer sob suas graças realizar qualquer um dos atos reprováveis, será justificável. Será o momento em que a imperfeição do mundo e das circunstâncias serão novamente evocados, dessa vez como justificativa para alguma ação drástica.

Chega a um ponto em que aquele que se envolve com o Herói não aceita a realidade se ela se parece com o inimigo, ou se nega o suficiente o herói. É assim que o herói se torna imbatível. Se o herói perder, houve alguma trapaça. Se o herói perder, é temporário, porque é impossível que ele perca totalmente. Se o herói perder, a culpa nunca é dele, e provavelmente ele não perdeu, mas as mentes pouco esclarecidas que observaram a ação que interpretaram erroneamente dessa forma, porque o herói é um estrategista perfeito e está a vários passo a frente de todos. Do mesmo modo, se o inimigo fizer algo que seja benéfico, mesmo aos apoiadores do herói, não será aceito. O inimigo é sempre ruim, porque essa é sua natureza enquanto inimigo.

Nessa lógica, o que surgir de negativo contra o inimigo é crível, e o que surgir de positivo é suspeito e, portanto, também negativo. É o oposto do que acontece com o herói, naturalmente, onde tudo tende ao positivo.

Finalmente, então, cabe a este texto levantar algumas hipóteses para tentar entender tais análises. A primeira, mais óbvia, é: como as pessoas chegaram nisso?

Geralmente, do que é possível enxergar, foi através da criação de um inimigo. Um inimigo gera um herói, que gera mitologia, que tem inimigos. Quando não há inimigo, o herói perde a função, então ele — e seus apoiadores — continuamente seguem em um estado de vigilância e pregam esse espírito para que se identifiquem sempre inimigos e o herói continue como está.

A sobrevivência da mitologia depende disso, a paz não é uma opção, mas um objetivo sempre a ser alcançado, sempre a alguns passos de distância. Se não há paz, o que há? Há glória e honra. Percebidas que sejas, elas são o que justifica a luta e o apoio ao herói. Ninguém quer (ou pode) chegar no resultado, ele é inalcançável, frequentemente sendo identificado como tal como uma falha não no herói, mas no mundo e/ou circunstâncias. Assim, a luta constante é o objetivo dela mesma e se valida.

A partir do momento em que as causas e efeitos estão orientadas ao herói e ao inimigo, qualquer caminho para um ou outro se torna viável. O que vale é o universo lógico desse conflito. É por isso que as pessoas conseguem acreditar em grandes teorias conspiratórias, grupos secretos e segundas intenções em toda e qualquer ação. Tudo é manipulado e manipulável pelo inimigo, e tudo que o herói faz tem um plano inteligente secreto por trás. O segredo protege a percepção negativa e sempre coloca o público em uma posição de submissão, o que reforça a vigilância dos atos do inimigo e a confiança inquestionável no herói.

Chegamos, então, à última questão: como um herói imbatível poderia ser vencido e até deixar de ser herói? Quatro cenários principais se destacam, todos com suas peculiaridades e diferentes níveis de complexidade.

1- O rebaixamento do herói como herói: se existir uma ocasião em que o herói perde o poder de maneira significativa ou se tornar desinteressante para a estrutura que o mantém, ele poderá ser derrotado. Algumas maneiras disso acontecer: o conhecimento de um ato moralmente reprovável feito de maneira inquestionável pelo herói, uma insatisfação alta o suficiente para que sua mitologia não garanta o ânimo do povo escolhido, um enfraquecimento do universo temático suficiente para que o povo escolhido consiga questionar. Raramente uma ação do inimigo, por melhor que seja, será capaz de surtir qualquer efeito se ela não atuar em alguma dessas frentes.

Observe que a derrota não se refere à morte do herói. A morte mantém todos seus símbolos e estruturas, apenas transferindo o poder para outros e imortalizando-o como mártir. Matar um herói não o derrota, ainda que em raras ocasiões possa enfraquecer ou forçar uma reestruturação de seu universo.

2- A derrubada da estrutura de apoio do herói: correlata de certo modo ao ponto acima, há a chance de um herói perder sua capacidade de influência. Ele ainda segue sendo herói, mas apela a uma minoria e de modo ineficaz. Geralmente isso se dá pelo enfraquecimento, perda ou destruição de sua base de apoio, seja através da inviabilização de sua mensagem, da ausência de intermediários eficientes, da ausência de poder político/administrativo/social/econômico ou qualquer outro meio que acabe fazendo com que sua mensagem não seja atingida, compreendida ou aceita pela mesma base de antes.

3- A eliminação do inimigo e impedimento de surgimento de outro: como mencionado anteriormente, o herói precisa de um inimigo para existir como tal, porque a manutenção de seu poder é marcada por um estado de vigilância. Se não há inimigo, não há motivo para manter o herói, especialmente em um público onde essa é a expectativa de funcionamento do universo e das relações humanas e de poder. A tendência é que o grupo de apoio passe a se canibalizar em busca de um purismo de representatividade dos elementos determinantes da mitologia do herói, levando a um enfraquecimento de seu apoio e, por fim, do próprio.

4- O surgimento de um novo herói: se algum outro indivíduo conseguir a percepção de ser uma força superior da representação da luta contra o inimigo, ele pode tomar os holofotes e se tornar o herói principal. Em alguns casos, pode ser que o herói atual se torne um coadjuvante, mas continue em uma posição de poder, ainda que relativamente menor. Em outras, caso haja um conflito direto entre o novo herói e o herói antigo, pode ser que o conflito de poder o enfraqueça e faça com que ele seja identificado com o inimigo, ou ao menos visto como ineficaz, e assim derrotado e substituído.

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Rodrigo Ortiz Vinholo
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Written by Rodrigo Ortiz Vinholo

Publicitário, jornalista, escritor, professor e pessoa estranha.

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